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Artes - Letras - Ciências
Suplemento do n.º 271 do "Litoral"
Dezembro de 1959, Ano I, n.º 4
págs. 31 e 32

 

Concerto do silêncio

Silêncio. Silêncio profundo. É tão grande o silêncio, que até sinto o vibrar das coisas à minha volta. A cama fétida onde estou deitado, o cobertor que me aquece os joelhos, a mesinha ao lado, os livros sujos, o chão de pedras frias, a cadeira desmantelada, tudo parece arfar surdamente duma vida desconhecida, parece respirar a medo como que com receio de denunciar a sua existência dentro da escuridão. E o silêncio é enorme, imenso. Mas não é perfeito. Não se ouvem vozes nem ruídos de gestos humanos. Não se ouve a presença humana. Não há automóveis a passar lá fora nem tacões batendo a calçada, nem sussurros de conversas distantes. Nem o ladrar dum cão, nem o cantar dum galo. Nem o trilar do grilo. Nada. Nada lá fora que seja contrário ao silêncio. Até o vento morreu. O ar está parado como num caixão debaixo da terra. O ar é agora bocados de coisas. Concentrou-se nas coisas. É ruas e árvores e pernas e braços. E olhos também, porventura.Mas olhos fechados. Olhos mortos. Olhos e sangue. O ar gelou-se em coisas. E lá fora tudo é silêncio.


de Mário Pinho


Talvez caiam folhas das árvores, pois agora é Outono. Contudo elas não caiem: desprendem-se dos ramos e pousam suavemente no chão. Pousam suavemente, irremediavelmente, num ritual de silêncio. A carícia das suas faces rugosas e torcidas no pó é como lábios aveludados de amantes. Por isso lá fora tudo é silêncio. Cá dentro, no meu quarto, também é silêncio. Mais ainda. Tudo está escuro. Um silêncio escuro cá dentro, no meu quarto. Não vejo nada à minha volta. Além disso tenho os olhos fechados. Por isso o silêncio parece maior. Mas não é perfeito. Não, porque corre uma vibração estranha no ar que parece desprender-se das coisas que me cercam. Talvez que essa vibração faça parte do silêncio. Mas é estranha. E é estranho ouvir o silêncio. E eu ouço-o, ouço-o nitidamente e faço esforço para o ouvir. Por isso fecho os olhos, esqueço os vagos contornos das coisas que me rodeiam e concentro toda a minha atenção nos ouvidos. E ouço-o: um sussurro levíssimo, misterioso, uma espécie de poeira de ruídos, imperceptível quase. Talvez seja do sangue a embeber-me as veias da cabeça. Mas ele parece nascer de fora de mim, de fora da minha carne, de fora da minha cabeça. É como se os objectos falassem numa linguagem de sopros leves, distantes, quase humanos. Como o rumor longínquo de conversas trazidas pela brisa numa tarde calma...

Abro os olhos. A escuridão continua. O silêncio continua imenso, trémulo. E, de repente, pronuncio uma palavra. É como se tivesse atirado uma pedra num abismo e ficasse à espera de ouvi-la bater no fundo. E eu espero. Espero ansioso. Com raiva quase. Mas não tenho sequer a certeza de ter aberto a boca e proferido a palavra. Sinto-a ainda a revolver-se no meu cérebro, subir pela garganta e picar-me a língua. Grito-a. Primeiro para mim depois para as paredes. A conversa pára. A conversa das coisas. O sussurro do silêncio. Os meus gritos golpeiam o ar como uma chicotada, espalham-se pelo quarto, vão de encontro às paredes e saltam a fresta gradeada da porta, furam o corredor e morrem.

Desenho de Gaspar Albino

Ouço passos. Tap, tap. Passos pesados como se quem os desse usasse sapatos de chumbo. Aproximam-se fazendo cada vez mais barulho. Depois param de repente diante da minha porta. As grades da fresta iluminam-se. A sombra delas projecta-se na parede em forma de cruz! E atrás surge o bocado retalhado duma cara. Dois olhos brilhantes vasculham o canto onde estou deitado. Eu sinto-os. Percorrem-me o corpo como dedos finos, viscosos, hábeis. /página 32/ Estremeço. «Que é que você quer» — rosna a voz através da grade. Finjo que durmo. Depois ouço o tilintar das chaves e uma praga. O dono dos olhos e da voz afasta-se. Tap, tap. Os seus passos soam com um estrondo que ecoa soturnamente ao longo do corredor. E a escuridão e o silêncio voltam. Sinto-me libertado. Quase feliz. A pele da minha face retrai-se num sorriso. Abro os olhos e espero. Espero com os ouvidos atentos. O coração bate-me desalmadamente. Aperto as mãos contra o peito. Um gozo indizível penetra-me o ser e o meu corpo estremece, aos esticões. Aquilo vai começar. O concerto do silêncio. Shut...

Atenção. Já vai. Está quase, quase. Assim que fechar os olhos. Pronto. Vai principiar. Já estou a ouvi-lo. Meu Deus! Estou a ouvi-lo! Primeiro muito baixinho, depois subindo gradualmente de volume como o zumbido de uma mosca que se aproxima. Ei-lo! Tão nítido! Tão nítido que até parece que posso segurá-lo com as mãos. Mas não devo fazer gestos. Sei que não devo. Tenho que me desaparecer no silêncio, tornar-me coisa. E ouvi-lo. Aquele murmúrio, tão belo!... O murmúrio da alma a separar-se do corpo! O murmúrio da morte... Mas não tenho medo. Nenhum medo. Quero estar assim quieto, rígido, imóvel como os ídolos dos altares, e gozá-lo, penetrar-me nele como as sombras se misturam com o vento. Nem posso pensar. Ouvi-lo somente. Como agora. Assim. Escutem. O silêncio... De súbito um grito lancinante corta o ar. Uma ânsia enorme revolve-me o peito. Sinto fogo. Fogo na cabeça a querer-me sair pelos buracos dos olhos, do nariz, dos ouvidos. Tapo a boca com as mãos, com toda a força. Mordo-lhe as polpas, furioso. Ouço outro grito. È do fundo do corredor que ele vem. Não é meu. Não é da minha boca. Juro que não é. É do fundo do corredor. Tenho a certeza. Eu não poderia, gritar com a boca cheia de sangue e de ódio. E não é do silêncio também. O silêncio não grita. O silêncio desliza. O silêncio... Não, não meu Deus! Não pode ser o silêncio. Outro! Outro grito. Sim desta vez vem do lado oposto. São vozes de homens. Homens como eu. E agora um guincho. Horrível E um ruído de pancadas. Um ecoar de gemidos e coisas a desfazerem-se. E de novo gritos. Mais e mais. Um coro. Um coro infinito de berros. E barulho de passos. Passos, muitos passos. O corredor estremece, Sombras rápidas fogem através das grades. Sons de choro. Lamentos. E gargalhadas estrondosas embrulhando palavras obscenas. E uma voz furiosa que ordena de repente num trovão: «Silêncio!» Então o meu corpo ergue-se da cama num salto e põe-se a gritar com toda a força, as goelas quase a rebentar. Vejo o grito cheio de sangue sair-me da boca e enrolar-se nas grades duras e lisas, como cobras vermelhas. O fogo cresce dentro de mim e os meus olhos parece quererem soltar das órbitas. E grito de novo. Grito até o fogo me devorar de vez a cabeça e os olhos e as paredes avançarem para mim enormes, oscilantes, silenciosas...

Mário Pinho

 

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