Concerto do silêncio
Silêncio.
Silêncio profundo. É tão grande o silêncio, que até sinto o vibrar
das coisas à minha volta. A cama fétida onde estou deitado, o
cobertor que me aquece os joelhos, a mesinha ao lado, os livros
sujos, o chão de pedras frias, a cadeira desmantelada, tudo parece
arfar surdamente duma vida desconhecida, parece respirar a medo como
que com receio de denunciar a sua existência dentro da escuridão. E
o silêncio é enorme, imenso. Mas não é perfeito. Não se ouvem vozes
nem ruídos de gestos humanos. Não se ouve a presença humana. Não há
automóveis a passar lá fora nem tacões batendo a calçada, nem
sussurros de conversas distantes. Nem o ladrar dum cão, nem o cantar
dum galo. Nem o trilar do grilo. Nada. Nada lá fora que seja
contrário ao silêncio. Até o vento morreu. O ar está parado como num
caixão debaixo da terra. O ar é agora bocados de coisas.
Concentrou-se nas coisas. É ruas e árvores e pernas e braços. E
olhos também, porventura.Mas
olhos fechados. Olhos mortos. Olhos e sangue. O ar gelou-se em
coisas. E lá fora tudo é silêncio. |
de Mário Pinho |
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Talvez caiam folhas das árvores, pois agora é Outono. Contudo elas não
caiem: desprendem-se dos ramos e pousam suavemente no chão. Pousam
suavemente, irremediavelmente, num ritual de silêncio. A carícia das
suas faces rugosas e torcidas no pó é como lábios aveludados de amantes.
Por isso lá fora tudo é silêncio. Cá dentro, no meu quarto, também é
silêncio. Mais ainda. Tudo está escuro. Um silêncio escuro cá dentro, no
meu quarto. Não vejo nada à minha volta. Além disso tenho os olhos
fechados. Por isso o silêncio parece maior. Mas não é perfeito. Não,
porque corre uma vibração estranha no ar que parece desprender-se das
coisas que me cercam. Talvez que essa vibração faça parte do silêncio.
Mas é estranha. E é estranho ouvir o silêncio. E eu ouço-o, ouço-o
nitidamente e faço esforço para o ouvir. Por isso fecho os olhos,
esqueço os vagos contornos das coisas que me rodeiam e concentro toda a
minha atenção nos ouvidos. E ouço-o: um sussurro levíssimo, misterioso,
uma espécie de poeira de ruídos, imperceptível quase. Talvez seja do
sangue a embeber-me as veias da cabeça. Mas ele parece nascer de fora de
mim, de fora da minha carne, de fora da minha cabeça. É como se os
objectos falassem numa linguagem de sopros leves, distantes, quase
humanos. Como o rumor longínquo de conversas trazidas pela brisa numa
tarde calma...
Abro os olhos. A escuridão continua. O
silêncio continua imenso, trémulo. E, de repente, pronuncio uma palavra.
É como se tivesse atirado uma pedra num abismo e ficasse à espera de
ouvi-la bater no fundo. E eu espero. Espero ansioso. Com raiva quase.
Mas não tenho sequer a certeza de ter aberto a boca e proferido a
palavra. Sinto-a ainda a revolver-se no meu cérebro, subir pela garganta
e picar-me a língua. Grito-a. Primeiro para mim depois para as paredes.
A conversa pára. A conversa das coisas. O sussurro do silêncio. Os meus
gritos golpeiam o ar como uma chicotada, espalham-se pelo quarto, vão de
encontro às paredes e saltam a fresta gradeada da porta, furam o
corredor e morrem.
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Ouço passos. Tap, tap. Passos
pesados como se quem os desse usasse sapatos de chumbo. Aproximam-se
fazendo cada vez mais barulho. Depois param de repente diante da
minha porta. As grades da fresta iluminam-se. A sombra delas
projecta-se na parede em forma de cruz! E atrás surge o bocado
retalhado duma cara. Dois olhos brilhantes vasculham o canto onde
estou deitado. Eu sinto-os. Percorrem-me o corpo como dedos finos,
viscosos, hábeis. /página
32/ Estremeço. «Que é que você quer» — rosna a voz através da
grade. Finjo que durmo. Depois ouço o tilintar das chaves e uma
praga. O dono dos olhos e da voz afasta-se. Tap, tap. Os seus
passos soam com um estrondo que ecoa soturnamente ao longo do
corredor. E a escuridão e o silêncio voltam. Sinto-me libertado.
Quase feliz. A pele da minha face retrai-se num sorriso. Abro os
olhos e espero. Espero com os ouvidos atentos. O coração bate-me
desalmadamente. Aperto as mãos contra o peito. Um gozo indizível
penetra-me o ser e o meu corpo estremece, aos esticões. Aquilo vai
começar. O concerto do silêncio. Shut... |
Atenção. Já vai. Está quase, quase.
Assim que fechar os olhos. Pronto. Vai principiar. Já estou a ouvi-lo.
Meu Deus! Estou a ouvi-lo! Primeiro muito baixinho, depois subindo
gradualmente de volume como o zumbido de uma mosca que se aproxima.
Ei-lo! Tão nítido! Tão nítido que
até parece que posso segurá-lo com as mãos. Mas não devo fazer gestos.
Sei que não devo. Tenho que me desaparecer no silêncio, tornar-me coisa.
E ouvi-lo. Aquele murmúrio, tão belo!... O murmúrio da alma a separar-se
do corpo! O murmúrio da morte... Mas não tenho medo. Nenhum medo. Quero
estar assim quieto, rígido, imóvel como os ídolos dos altares, e
gozá-lo, penetrar-me nele como as sombras se misturam com o vento. Nem
posso pensar. Ouvi-lo somente. Como agora. Assim. Escutem. O silêncio...
De súbito um grito lancinante corta o ar. Uma ânsia enorme revolve-me o
peito. Sinto fogo. Fogo na cabeça a querer-me sair pelos buracos dos
olhos, do nariz, dos ouvidos. Tapo a boca com as mãos, com toda a força.
Mordo-lhe as polpas, furioso. Ouço outro grito. È do fundo do corredor
que ele vem. Não é meu. Não é da minha boca. Juro que não é. É do fundo
do corredor. Tenho a certeza. Eu não poderia, gritar com a boca cheia de
sangue e de ódio. E não é do silêncio também. O silêncio não grita. O
silêncio desliza. O silêncio... Não, não meu Deus! Não pode ser o
silêncio. Outro! Outro grito. Sim desta vez vem do lado oposto. São
vozes de homens. Homens como eu. E agora um guincho. Horrível E um ruído
de pancadas. Um ecoar de gemidos e coisas a desfazerem-se. E de novo
gritos. Mais e mais. Um coro. Um coro infinito de berros. E barulho de
passos. Passos, muitos passos. O corredor estremece, Sombras rápidas
fogem através das grades. Sons de choro. Lamentos. E gargalhadas
estrondosas embrulhando palavras obscenas. E uma voz furiosa que ordena
de repente num trovão: «Silêncio!» Então o meu corpo ergue-se da cama
num salto e põe-se a gritar com toda a força, as goelas quase a
rebentar. Vejo o grito cheio de sangue sair-me da boca e enrolar-se nas
grades duras e lisas, como cobras vermelhas. O fogo cresce dentro de mim
e os meus olhos parece quererem soltar das órbitas. E grito de novo.
Grito até o fogo me devorar de vez a cabeça e os olhos e as paredes
avançarem para mim enormes, oscilantes, silenciosas...
Mário
Pinho |