WILLIAM CARLOS WILLIAMS, nascido em
1883, é um dos poetas norte-americanos que mais acentuadamente tem
cultivado, ao longo da sua obra, o experimentalismo. Nisto se aproxima
da linhagem dos seus confrades cosmopolitas, tais como aqueles seus
compatriotas que em Londres, em sua companhia, impulsionaram o lmagismo
— nomeadamente H. D. (Hilda Doolittle) e Pound, antigos condiscípulos
seus na Universidade de Pensilvânia.
Os seus primeiros poemas, de 1909, são
marcadamente influenciados por Keats e por Shelley. Já “The Tempers”,
volume para o qual em 1913 Pound encontrou editor em Londres, assinala a
depuração imposta pelo novo movimento, que Williams mais tarde
rememoraria como “um sistema: um sistema de limpeza, que veio a ser
adoptado quando o poema atingira o empastamento e se tornara rectórico”
(1).
A divergência surgiu, poucos anos
depois, por Williams continuar apegado ao verso-librismo (que só mais
tarde repeliria, aliás in nomine) e por considerar que “a
poesia devia ser trazida para o mundo em que vivemos, em vez de estar
tão recôndita, tão afastada do povo”
(2).
Por trás da naturalidade dos seus
poemas, do emprego corrente de palavras usuais, está um propósito quase
científico, anatómico — não será certamente coincidência a sua profissão
de médico —, por isso que atingiu “a gradual convicção de que a obra
literária, e especialmente a poesia, tem partes componentes,
precisamente como as tem o corpo humano; e, se uma pessoa quiser
conhecer o conjunto, cumpre-lhe conhecer aquelas intimamente”
(3).
Os poemas da maioria dos seus volumes
subsequentes, designadamente aqueles mais comprimidos, que reputo os
melhores de Williams, têm uma qualidade sobretudo visual, que nos faz
lembrar instantâneos, poses, color-slides projectados.
Precisamente pela condensação — cada palavra torna-se dificilmente
substituível por equivalentes — é-me extremamente custoso traduzir
poemas como, por exemplo, “The Red Wheelbarrow”:
so much depends
upon
a red wheel
barrow
glazed with rain
water
beside the whíte
chickens
— porque lhe não corresponderia, por
certo,
tanto depende
dum
carro de mão
vermelho
…etc.
É essa trabalhada ingenuidade que, no
poema «Tribute to the Painters», ele acentua ser subjacente à aparente
facilidade de Klee, Picasso, Gris:
não pode ser-se
artista
por mera inépcia.
O sonho
está na procura!
— procura que incansavelmente tem
prosseguido, de estádio para estádio carpinteiral da sua “construção
de poemas” pelo uso de “palavras correntes em maneiras raras”
— o que, efectivamente, é uma difícil “luta — mas para que vivemos
nós senão para lutar?”
(4).
Porque Williams, como aliás o seu
literariamente odiado Elliot, sabe que de palavras são feitos os poemas
e tem para uso pessoal um outro “objectivo correlativo”. Na sua própria
frase: “Um poema é uma máquina pequena (ou grande) feita de palavras.
O seu movimento é intrínseco, tem um carácter mais físico do que
literário” (5).
Nos meados da década de 1920 procurava
já algumas regras prosódicas que pudessem adaptar-se à cadência da fala
americana de todos os dias; esta é que interessava manter no poema, /página
8/ e não a fidelidade às coisas ou aos objectos sem nexo ou
relação imediata com o homem, que os lmagistas haviam postulado:
e julgávamos ter fugido à rima
ao imitarmos a ordem sem sentido dos objectos selvagens
o que afinal é a rima mais estúpída de todas.
Abandonara as formas victorianas da
poesia inglesa; a imagem; a rima — mas não captara ainda um modo de
exprimir, satisfatoriamente para ele, o ritmo conversacional. Continuava
à procura: apercebera-se já de que havia algumas regras, “regras
antigas, profundamente verdadeiras, mas praticamente esquecidas há muito
tempo (...); só me falta re-descobri-las. Um país jovem, não atravancado
das ruínas dos séculos, deu-me essa oportunidade”
(6).
E assim — conforme expõe Thirlwall —
abandonou também o versilibrismo e o ritmo que empregara: o iambo já não
era a acentuação natural da fala americana; e, como a poesia é a
purificação da fala quotidiana, o ritmo da poesia americana deveria ser
o mesmo ritmo da fala americana diária. O verso-livre, portanto, é uma
contradição nos seus próprios termos: não há verso inteiramente livre;
existe ou a métrica tradicional ou a medida relativa. Os Estados Unidos
já não se exprimem em iambos, mas a sua linguagem não deixa por isso de
ser cadenciada, medida. “Não pode ser-se inteiramente livre na forma,
porque se perderia a medida. E a única coisa que um homem pode fazer à
sua vida é medi-la. Se o pudermos medir, torna-se uma verdade. Assim na
ciência. Assim na poesia. Assim na vida”
(7).
Daí a flexibilidade que a poesia de
Willliams mais e mais passou a apresentar, num fluxo palpitante, quase
fisiológico.
O seu longo poema “Paterson” — cujos
Livros I a IX foram publicados de 1946 a 1951 e o V só em 1958 apareceu
— já tem este respirar mais amplo e profundo.
Paterson é uma cidade da Nova-Jersey —
uma cidade que é um homem:
Paterson; estendido no chão, no vale.
Sob as cataratas.
As águas circundantes desenham-lhe o costado. Ei-lo,
Deitado sobre a direita. A cabeça, junta à trovoada
Da água que lhe enche os sonhos. Sempre a dormir.
Os sonhos esses é que passeiam na cidade em que ele insiste.
Incógnito. As borboletas pousam-lhe na orelha em pedra.
E nos Livros subsequentes é este gigante
que traduz a vida física e anímica daquela cidade; os seus movimentos,
no sono ou acordado, correspondendo ou provocando as solicitações
factuais dessa amostragem urbana da América do Norte.
A sua técnica era já a do emprego de um
pé variável ou relativo(8):
“O pé já não pode ser considerado fixo, mas relativo. Quando
compreendermos o pé, seremos capazes de controlar o verso.”
Esta compreensão crê finalmente tê-la
atingido Williarns em 1952, quando estudou os poetas gregos —
especialmente Teócrito, no qual encontrou a confirmação do que já
tenteara em “Paterson“ — “um pé flexível, com três acentuações
em cada verso. Fiquei tremendamente excitado (...) e decidi que era isso mesmo
o que eu queria fazer. E tenho-o usado desde essa altura”(9).
Uma análise mais demorada demonstraria
quanto ao carácter exógeno de WiIliam Carlos Wílliams — fílho dum inglês
e duma porto-riquenha de origem basca —, por um lado, e ao seu reiterado
amor pelo homem comum, por outro, devem essa re-invenção da linguagem
poética e o seu desdém ideológico, que nada tem a ver com a constância
das suas amizades pessoais, por aqueles outros seus confrades que da
América se alienaram.
José
Palla e Carmo
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NOTAS:
(1) e
(2) - Transcrito por John C.Thirlwall,
in «New Directions 16», p. 8.
(3) -
Cit. por Vivienne Koch, in «Perspectives 13», p. 146.
(4) - Transc. por Thirwall, Ioc. cit.
(5) - Transc. por Randall Jarrell.
“Poetry and the Age”, p. 223.
(6) - ln Vivienne Koch, Ioc. cit.
(7) -
ln Thirlwall, loc. cit.
(8) -
A base da prosódia inglesa não é a sílaba, mas sim o pé, conjunto de
sílabas sobre uma das quais recai a acentuação.
(9) - ln Thirlwall, loc. cit.
POETA CASMURRO
Tudo quanto faço
Tudo quanto escrevo
Sempre me aliena
Os que amor me têm
Minha obra é boa
Ficam confundidos
Minha obra é má
Logo se envergonham
Para grave risco
Desse amor por mim
Só piso descalço
Movediça areia.
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mulher nova à janela
sentada com
lágrimas na
face e a face
fixa na mão
na mão e o filho
o filho ao colo
ao colo o filho
cujo nariz
nariz espremido
de encontro ao vidro
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DEFESA
Vou dizer-te o que deves fazer
Tu que me censuras pelo ilícito
Prazer da nova poesia,
Tu que insinuas que sou um pervertido
De sentidos embotados,
Tu que me acusas de buscar
O gosto masoquista do chicote
Por não reagir já ao normal.
Faz isto;
Extasia-te perante faces flácidas,
Rugas, manchas de fígado amarelas,
Dentes enegrecidos ou,
Se preferes, branquíssimos e falsos
Leva a tua bela a passear
Numa tarde de domingo
Para um canto do parque, beija-a —
Pega na mãozinha dela com a tua
Trémula; e, trémulo, discute
Os íntimos meandros da sua alma —
Enquanto eu e os garotos insolentes
Te apuparemos escondidos nos arbustos.
Poemas traduzidos por
José Palla e Carmo |