Desviou o olhar para um retrato de rapariga, colocado em cima da cómoda.
O rosto abriu-se-lhe numa expressão alegre e o pensamento esvoaçou em
recordações.
............................................................................................................................................
Fora numa noite fria,
descendo a Avenida a caminho do quarto....
Os automóveis corriam
velozes e o ruído dos motores ficavam suspensos, quebrando a noite. A
luz dos candeeiros estendia-se pelos passeios molhados. Grupos de
rapazes passavam, ruidosos, e mulheres meneando as ancas, com malinhas
presas nas mãos, deitavam-lhes olhares, Os sons melodiosos de uma
orquestra, saindo duma cave, vinham até à rua.
Sérgio parou,
examinando as fotografias das artistas colocadas num quadro. As luzes do
reclame luminoso manchavam-lhe o rosto. A orquestra continuava atirando
os seus gritos lânguidos e ritmados. Uma confusão de vozes e gargalhadas
ecoava pela escada, chegando à rua.
Nascera-lhe, então, o
desejo de se rodear de gente, de ouvir rir e falar. Desceu as escadas em
passos lentos e entrou... Nuvens de fumo envolviam a sala. Um cheiro a
suor e perfume entrou-lhe pelo nariz. Sentados junto das mesas, homens e
mulheres bebiam e debatiam-se em conversas sem fim. Num círculo, a meio
da sala, vários pares enlaçados bamboleavam-se em movimentos
cadenciados, ao som ritmado da orquestra.
Escolheu uma mesa ao
fundo, encostada à parede.
— Faz favor... —
solicitou-lhe o criado, um rapaz alto, corcovado e de profundas olheiras
rodeando-lhe os olhos.
— Queria uma cerveja.
— respondeu, espraiando o olhar pelos pares que dançavam.
Um homem obeso
apertava nos braços uma rapariga franzina, de faces macilentas e tranças
caídas sobre os ombros nus. Mais além, uma mulher de vestido verde,
cingido ao corpo, sacudia as ancas ao compasso da música, e, rindo-se
para o par, deitava olhares de soslaio aos outros homens. Noutra mesa,
uma mulher com o rosto manchado de pó de arroz atirava para o ar fortes
lufadas de fumo. Os seus olhos vagavam pela sala, mirando os homens.
Junto de uma mesa, um criado disparava para o ar a rolha de uma garrafa
de espumoso. Duas raparigas de vestidos decotados enlaçavam um homem
idoso que fazia trejeitos amorosos com os lábios.
— Buenas noches. —
dissera-lhe uma rapariga, debruçando-se nas costas da cadeira.
— Boas noites...
— No me invita usted
a tomar algo?
O seu rosto
avermelhou-se. Nunca tinha entrado num cabaré. Ouvira os companheiros de
trabalho dizerem, no escritório, que nos cabarés havia espanholas que
abordavam as pessoas com sorrisos e meneios graciosos e levavam os
homens a fazer grandes despesas... Fugira sempre a todos os convites que
os amigos lhe faziam. E agora... agora tinha-se decidido a entrar. Fora
ele que /página
26/ tomara aquela resolução, levado pela
curiosidade e pelo forte desejo de se misturar num ambiente ruidoso e
alegre que o separasse, por momentos, das suas preocupações...
Defronte, a rapariga
sorria-lhe, mostrando os dentes brancos e os olhos negros e brilhantes.
— Não Compreendo... —
balbuciou.
— No hablas español?
— perguntou-lhe, ao mesmo tempo que afastou as saias rodadas do vestido
e se sentou junto dele. Um perfume suave espalhou-se em redor do seu
rosto. Na orquestra um homem inclinou-se sobre o microfone e cantou numa
voz doentia:
« — Dónde vienes,
corazon...»
— Não. Não sei...
— Tomar algo,
entiendes?
—Sim, sim... — disse
Sérgio, sentindo as mãos da rapariga poisar nas suas. Uma sensação
fresca invadiu-lhe o corpo.
— Llamo el camarero?
— Não! Não... —
exclamou, afastando as mãos num repente: — Sinto muito, mas não tenho
dinheiro...
A rapariga fixou-o,
por momentos, com um sorriso nos lábios vermelhos.
— No hay duda... — e,
olhando-o nos olhos,
— Tu no te marchas,
no?
Sérgio sentira aquele
olhar penetrar-lhe no peito e respirou o perfume que se desprendia dos
ombros da rapariga.
— Ainda estou mais um
pouco. — balbuciou.
— Si. Un poco más...
— e poisando, de novo, as mãos nas de Sérgio, estendidas em cima da meas:
— Te quiero hablar.
Rodou nos calcanhares
e com um sorriso quente afastou-se.
Desde aí, consumiram
dias e noites sem conta junto ao mar, vendo as fragatas de velas
enfunadas subir o Tejo e os barcos de Cacilhas despejar multidões no
Cais ou nos parques, perdendo-se nos ramagens cerradas das árvores, por
entre as quais os seus braços se enlaçavam e os lábios se encontravam em
beijos sem fim.
Perdiam-se em
conversas, de mãos coladas. Ela fizera-se bailarina, para vir a Portugal
— ganar dinero. Tinha um irmão em Madrid, muito novo e doente.
Era a única pessoa que restava da família...
Ele ouvia-lhe o ritmo
acalorado do coração e apertava-a contra si.
— Nunca
pensé que me podria gustar alguien más.
— Porquê?
— Mi vida
ha sido muy mala...
Um desejo amoroso e
protector brotava-lhe do coração. Gostaria de ser rico e poder
presenteá-la... Não a deixaria voltar a Madrid. Casariam. Sim, casava
com ela e retirava-a daquela vida. Nunca mais ela diria: «Veni a
Portugal para ganar dinero.»
— aquela frase seca
que o arrepiava. Ser-lhe-ia dedicada e fiel. Possuía bons sentimentos.
Ele tinha-a estudado. Auscultara-a até ao mais pequeno pormenor. Não
tinha nada de novo. Tudo o que possuía tinha-o trazido de Espanha. As
outras não... Já tinham vestidos novos, que nunca mais acabavam, e os
dedos carregados de anéis... Só não a via quando estava no escritório.
De resto, durante a noite, após o jantar, quando saíam juntos,
encontravam-se no café. Na mesa do canto, que o criado já reservava para
eles. Depois, acompanhava-a ao cabaré, despediam-se, com um longo beijo,
no escuro do vão de uma porta e, altas horas, voltavam a ver-se quando
ela, cansada, saía do Clube. Lá dentro, no Cabaré, fazia somente seu
trabalho de artista. Dançava e nada mais. Sim! Era-lhe fiel. A má vida é
que leva as pessoas a cometer erros.
Sentia-se bem a seu
lado. Alegre e radioso com as suas conversas, enquanto a vida, até aí
fora um marasmo de horas mortas: os passeios pela cidade... O café com
os amigos, repetindo conversas já gastas... Não! Agora tinha um vida
nova para viver... e era feliz.
............................................................................................................................................
O ruído do motor de
um automóvel, passando na rua, despertou-o dos pensamentos.
Voltou a ver as horas
no relógio de pulso
«— Cinco horas...» —
e ficou sobressaltado Não era costume ela vir tão tarde. Antigamente
chegava sempre cinco minutos depois do cabaré fechar. Ele esperava-a, um
pouco afastado da porta, junto à parede, enrolado na gabardine. Mais
tarde dera-lhe a chave do quarto. Era melhor que a esperasse aí. Não
apanharia frio e o dono do Cabaré não o veria. Já a tinha advertido: —
Tu estás aqui para trabalhar, ouviste? Contratei-te para isso e não para
andares a fazer namoro... — Uma revolta interior nasceu dentro dele —
ganas de o esbofetear. Mas ela conteve-o, cobrindo-lhe o rosto com
beijos.
Mas nem por isso
chegava mais tarde. Gastava apenas dez minutos no trajecto... e agora
eram cinco e vinte e ela sem aparecer!
Levantou-se da cama e
foi espreitar à janela. De rosto fechado pegou na roupa e começou a
vestir-se. Uma aragem matinal batia suavemente os vidros da janela. No
cérebro atropelavam-se-lhe pensamentos sem fim. Uma angústia enervante
abafava-lhe o peito. O bater da porta de um automóvel, na rua, fez
ressonância nas paredes do quarto. Ficou à escuta, de respiração
suspensa, sentindo o coração num desusado bater de ansiedade. Ouviu a
porta da rua abrir-se e uns passos abafados soaram no escuro do
corredor. De pé, no meio do quarto, as mãos nos bolsos das calças, o
olhar fixo na porta, aguardava-a, remoendo desconfianças. E ela
apareceu, enfim, de cabelo amachucado, forçando um sorriso. Fitou-o, com
os olhos negros, sem brilho, e exclamou:
— Um poco tarde... —
e dirigindo-se para a cómoda continuou: — El dueño me ha estado pagando
el porcentage.
Sérgio, imóvel,
ouvia-a. Reparou, então, que ela tirava um objecto do bolso do casaco e
pretendia ocultá-lo na caixa das jóias, em cima da cómoda.
— O que é isso!? —
exclamou, agarrando-lhe a mão.
— No és nada. —
replicou, introduzido de novo o objecto no bolso do casaco.
— Oh, não, não
mintas! Tens qualquer coisa, aí, que me queres esconder!
Ela aproximou-se e abraçou-o, deixando pender a
cabeça no ombro.
/página
27/
— No te
quiero hacer daño...
— Mas que tens tu no
bolso? — insistia Sérgio, num tom áspero.
Ela ergueu a cabeça
do ombro e mirou-o com os olhos pálidos.
—
Comprendeme, Sérgio. He venido a Portugal paro ganar dinero... Pero te
amo y amaré siempre...
— Mostra-me o que
tens no bolso! — exclamou resoluto.
Levando a mão ao
bolso do casaco, ela retirou um fio de ouro, que ficou estendido, preso
da mão, frente ao seu rosto, enquanto o medalhão oscilava, num vaivém
contínuo...
Sérgio sentira uma
angústia trespassar-lhe o peito. Os olhos marejaram-se-lhe. Num repente
brusco, voltou-se e saiu do quarto, atirando com a porta.
Augusto Sereno |