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Artes - Letras - Ciências
Suplemento do n.º 271 do "Litoral"
Dezembro de 1959, Ano I, n.º 4
págs. 25, 26 e 27

 
Desenho de Zé Penicheiro.

ilusões

conto

de

AUGUSTO SERENO

SÉRGlO debruçou-se na cama e estendeu a mão para o relógio de pulso, colocado em cima da mesinha de cabeceira.

« — Quatro e dez da manhã».,. — pensou, enquanto o rosto se contraía numa expressão de ansiedade.

Acendeu o cigarro e olhando o fumo que se diluía contra as paredes, deixou descair o tronco. O ruído de uma chave introduzindo-se na fechadura da porta da rua sobressaltou-o. Ajeitou-se, cobriu-se com a roupa e ficou à escuta, fixando a porta do quarto. Uns passos ligeiros vinham pisando suavemente o corredor. Pararam, por momentos, e avançaram de novo, fazendo ranger algumas tábuas do soalho. Sérgio sentiu os músculos do corpo descontraírem-se e a sua respiração normalizou-se.


Desviou o olhar para um retrato de rapariga, colocado em cima da cómoda. O rosto abriu-se-lhe numa expressão alegre e o pensamento esvoaçou em recordações.

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Fora numa noite fria, descendo a Avenida a caminho do quarto....

Os automóveis corriam velozes e o ruído dos motores ficavam suspensos, quebrando a noite. A luz dos candeeiros estendia-se pelos passeios molhados. Grupos de rapazes passavam, ruidosos, e mulheres meneando as ancas, com malinhas presas nas mãos, deitavam-lhes olhares, Os sons melodiosos de uma orquestra, saindo duma cave, vinham até à rua.

Sérgio parou, examinando as fotografias das artistas colocadas num quadro. As luzes do reclame luminoso manchavam-lhe o rosto. A orquestra continuava atirando os seus gritos lânguidos e ritmados. Uma confusão de vozes e gargalhadas ecoava pela escada, chegando à rua.

Nascera-lhe, então, o desejo de se rodear de gente, de ouvir rir e falar. Desceu as escadas em passos lentos e entrou... Nuvens de fumo envolviam a sala. Um cheiro a suor e perfume entrou-lhe pelo nariz. Sentados junto das mesas, homens e mulheres bebiam e debatiam-se em conversas sem fim. Num círculo, a meio da sala, vários pares enlaçados bamboleavam-se em movimentos cadenciados, ao som ritmado da orquestra.

Escolheu uma mesa ao fundo, encostada à parede.

— Faz favor... — solicitou-lhe o criado, um rapaz alto, corcovado e de profundas olheiras rodeando-lhe os olhos.

— Queria uma cerveja. — respondeu, espraiando o olhar pelos pares que dançavam.

Um homem obeso apertava nos braços uma rapariga franzina, de faces macilentas e tranças caídas sobre os ombros nus. Mais além, uma mulher de vestido verde, cingido ao corpo, sacudia as ancas ao compasso da música, e, rindo-se para o par, deitava olhares de soslaio aos outros homens. Noutra mesa, uma mulher com o rosto manchado de pó de arroz atirava para o ar fortes lufadas de fumo. Os seus olhos vagavam pela sala, mirando os homens. Junto de uma mesa, um criado disparava para o ar a rolha de uma garrafa de espumoso. Duas raparigas de vestidos decotados enlaçavam um homem idoso que fazia trejeitos amorosos com os lábios.

— Buenas noches. — dissera-lhe uma rapariga, debruçando-se nas costas da cadeira.

— Boas noites...

— No me invita usted a tomar algo?

O seu rosto avermelhou-se. Nunca tinha entrado num cabaré. Ouvira os companheiros de trabalho dizerem, no escritório, que nos cabarés havia espanholas que abordavam as pessoas com sorrisos e meneios graciosos e levavam os homens a fazer grandes despesas... Fugira sempre a todos os convites que os amigos lhe faziam. E agora... agora tinha-se decidido a entrar. Fora ele que /página 26/ tomara aquela resolução, levado pela curiosidade e pelo forte desejo de se misturar num ambiente ruidoso e alegre que o separasse, por momentos, das suas preocupações...

Defronte, a rapariga sorria-lhe, mostrando os dentes brancos e os olhos negros e brilhantes.

— Não Compreendo... — balbuciou.

— No hablas español? — perguntou-lhe, ao mesmo tempo que afastou as saias rodadas do vestido e se sentou junto dele. Um perfume suave espalhou-se em redor do seu rosto. Na orquestra um homem inclinou-se sobre o microfone e cantou numa voz doentia:

« — Dónde vienes, corazon...»

— Não. Não sei...

— Tomar algo, entiendes?

—Sim, sim... — disse Sérgio, sentindo as mãos da rapariga poisar nas suas. Uma sensação fresca invadiu-lhe o corpo.

— Llamo el camarero?

— Não! Não... — exclamou, afastando as mãos num repente: — Sinto muito, mas não tenho dinheiro...

A rapariga fixou-o, por momentos, com um sorriso nos lábios vermelhos.

— No hay duda... — e, olhando-o nos olhos,

— Tu no te marchas, no?

Sérgio sentira aquele olhar penetrar-lhe no peito e respirou o perfume que se desprendia dos ombros da rapariga.

— Ainda estou mais um pouco. — balbuciou.

— Si. Un poco más... — e poisando, de novo, as mãos nas de Sérgio, estendidas em cima da meas: — Te quiero hablar.

Rodou nos calcanhares e com um sorriso quente afastou-se.

Desde aí, consumiram dias e noites sem conta junto ao mar, vendo as fragatas de velas enfunadas subir o Tejo e os barcos de Cacilhas despejar multidões no Cais ou nos parques, perdendo-se nos ramagens cerradas das árvores, por entre as quais os seus braços se enlaçavam e os lábios se encontravam em beijos sem fim.

Perdiam-se em conversas, de mãos coladas. Ela fizera-se bailarina, para vir a Portugal — ganar dinero. Tinha um irmão em Madrid, muito novo e doente. Era a única pessoa que restava da família...

Ele ouvia-lhe o ritmo acalorado do coração e apertava-a contra si.

— Nunca pensé que me podria gustar alguien más.

— Porquê?

— Mi vida ha sido muy mala...

Um desejo amoroso e protector brotava-lhe do coração. Gostaria de ser rico e poder presenteá-la... Não a deixaria voltar a Madrid. Casariam. Sim, casava com ela e retirava-a daquela vida. Nunca mais ela diria: «Veni a Portugal para ganar dinero.»

— aquela frase seca que o arrepiava. Ser-lhe-ia dedicada e fiel. Possuía bons sentimentos. Ele tinha-a estudado. Auscultara-a até ao mais pequeno pormenor. Não tinha nada de novo. Tudo o que possuía tinha-o trazido de Espanha. As outras não... Já tinham vestidos novos, que nunca mais acabavam, e os dedos carregados de anéis... Só não a via quando estava no escritório. De resto, durante a noite, após o jantar, quando saíam juntos, encontravam-se no café. Na mesa do canto, que o criado já reservava para eles. Depois, acompanhava-a ao cabaré, despediam-se, com um longo beijo, no escuro do vão de uma porta e, altas horas, voltavam a ver-se quando ela, cansada, saía do Clube. Lá dentro, no Cabaré, fazia somente seu trabalho de artista. Dançava e nada mais. Sim! Era-lhe fiel. A má vida é que leva as pessoas a cometer erros.

Sentia-se bem a seu lado. Alegre e radioso com as suas conversas, enquanto a vida, até aí fora um marasmo de horas mortas: os passeios pela cidade... O café com os amigos, repetindo conversas já gastas... Não! Agora tinha um vida nova para viver... e era feliz.

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O ruído do motor de um automóvel, passando na rua, despertou-o dos pensamentos.

Voltou a ver as horas no relógio de pulso

«— Cinco horas...» — e ficou sobressaltado Não era costume ela vir tão tarde. Antigamente chegava sempre cinco minutos depois do cabaré fechar. Ele esperava-a, um pouco afastado da porta, junto à parede, enrolado na gabardine. Mais tarde dera-lhe a chave do quarto. Era melhor que a esperasse aí. Não apanharia frio e o dono do Cabaré não o veria. Já a tinha advertido: — Tu estás aqui para trabalhar, ouviste? Contratei-te para isso e não para andares a fazer namoro... — Uma revolta interior nasceu dentro dele — ganas de o esbofetear. Mas ela conteve-o, cobrindo-lhe o rosto com beijos.

Mas nem por isso chegava mais tarde. Gastava apenas dez minutos no trajecto... e agora eram cinco e vinte e ela sem aparecer!

Levantou-se da cama e foi espreitar à janela. De rosto fechado pegou na roupa e começou a vestir-se. Uma aragem matinal batia suavemente os vidros da janela. No cérebro atropelavam-se-lhe pensamentos sem fim. Uma angústia enervante abafava-lhe o peito. O bater da porta de um automóvel, na rua, fez ressonância nas paredes do quarto. Ficou à escuta, de respiração suspensa, sentindo o coração num desusado bater de ansiedade. Ouviu a porta da rua abrir-se e uns passos abafados soaram no escuro do corredor. De pé, no meio do quarto, as mãos nos bolsos das calças, o olhar fixo na porta, aguardava-a, remoendo desconfianças. E ela apareceu, enfim, de cabelo amachucado, forçando um sorriso. Fitou-o, com os olhos negros, sem brilho, e exclamou:

— Um poco tarde... — e dirigindo-se para a cómoda continuou: — El dueño me ha estado pagando el porcentage.

Sérgio, imóvel, ouvia-a. Reparou, então, que ela tirava um objecto do bolso do casaco e pretendia ocultá-lo na caixa das jóias, em cima da cómoda.

— O que é isso!? — exclamou, agarrando-lhe a mão.

— No és nada. — replicou, introduzido de novo o objecto no bolso do casaco.

— Oh, não, não mintas! Tens qualquer coisa, aí, que me queres esconder!

Ela aproximou-se e abraçou-o, deixando pender a cabeça no ombro.

/página 27/ — No te quiero hacer daño...

— Mas que tens tu no bolso? — insistia Sérgio, num tom áspero.

Ela ergueu a cabeça do ombro e mirou-o com os olhos pálidos.

— Comprendeme, Sérgio. He venido a Portugal paro ganar dinero... Pero te amo y amaré siempre...

— Mostra-me o que tens no bolso! — exclamou resoluto.

Levando a mão ao bolso do casaco, ela retirou um fio de ouro, que ficou estendido, preso da mão, frente ao seu rosto, enquanto o medalhão oscilava, num vaivém contínuo...

Sérgio sentira uma angústia trespassar-lhe o peito. Os olhos marejaram-se-lhe. Num repente brusco, voltou-se e saiu do quarto, atirando com a porta.

Augusto Sereno

 

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