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Artes - Letras - Ciências
Suplemento do n.º 271 do "Litoral"
Dezembro de 1959, Ano I, n.º 4
págs. 15 e 16

 
considerações

gerais

sobre

“factos” (conclusão)

por LOBO VILELA

2 Dada o impossibilidade de confrontarmos as percepções com os objectos a que se referem, o único meio de que dispomos para aferir do valor objectivo dos juízos que sobre eles se formam consiste em confrontá-los com outros que resultem duma actuação intencional sobre o mundo físico, orientada pelos juízos cuja validade pretendemos verificar. A verificação constitui um meio de controlo necessário, porque na passagem da percepção para o juízo é sempre possível errar-se. Nem todos os juízos referentes a factos são, porém, susceptíveis de verificação experimental e a sua validade só pode ser estabelecida por um critério de coerência lógica ou de fecundidade.

O critério da coerência lógica, sem ser garantia suficiente da objectividade, porque os mesmos factos podem ser interpretados e explicados dentro de diferentes esquemas lógicos, tem a vantagem de obedecer a princípios universalmente válidos e está de acordo com o postulado da racionalidade do mundo, cuja validade objectiva parece confirmada pelo êxito da ciência. Por isso a indução está na base da passagem da percepção dos factos à sua relacionação teorética. O pensamento especulativo procura suprir as insuficiências da experimentação e do raciocínio apelando para a imaginação. É neste ponto que a investigação e a arte se encontram. A lógica só intervém para regular o emprego de noções já elaboradas e não contribui para a sua criação; a experiência pode sugeri-las mas não criá-las.

A análise imparcial dos factos sobre os quais incide o juízo e a concordância de juízos formulados por diferentes indivíduos suficientemente aptos para se pronunciarem acerca deles podem servir de indícios de objectividade, mas fica sempre larga margem para o arbitrário na apreciação da imparcialidade e da competência que, por sua vez, precisa de ser objectiva, donde resulta cair-se num círculo vicioso insolúvel.

A universalidade é tomada como critério de objectividade, porque se presume que a aceitação universal dum facto pode constituir uma prova da sua realidade, visto ultrapassar o carácter privado da percepção; mas facilmente reconhecemos a insuficiência deste critério se notarmos que a aceitação unânime dum erro não pode ser garantia de verdade. A dificuldade que encontram as novas ideias para vencer a inércia dos preconceitos consagrados mostra bem quanto esse critério é precário. Só em relação aos objectos ideais, criados pelo espírito e rigorosamente definidos, a universalidade pode constituir um critério de validade.

Resta-nos o critério prático de verificação do acordo dos nossos tipos de interpretação com outros factos cujas características aqueles tipos permitam prever e sejam susceptíveis de observação. A verificação experimental constitui o único meio de que dispomos para aferir da adequação do conhecimento ao sector da realidade a que ele se refere e, portanto, desempenha o papel dum critério de objectividade. A experiência, escreve Claude Bernard, é o «único processo que temos para nos instruirmos acerca da natureza das coisas que estão fora de nós». Todavia o êxito é mais um critério de utilidade do que de veracidade. Os êxitos alcançados por uma hipótese ou teoria não impedem que ela se mostre inadequada e seja substituída por outra mais fecunda; contudo, o valor objectivo da ciência só pode ser aferido pelo êxito das suas previsões e pela eficácia das suas aplicações.

De qualquer modo, um facto é sempre produto do nosso espírito quanto à forma que apresenta, ainda que implique um conteúdo objectivo. Federico Enriques (1) salienta esta característica: «Um facto não é nunca o encontro bruto de certos dados sensíveis, mas sim a reunião de vários dados numa certa ordem, dominada por uma ideia: a sua afirmação implica sempre o reconhecimento de dados objectivos e /página 15/ subjectivos, separáveis até certo ponto, mas nunca num sentido absoluto».

A observação incide sobre factos particulares, sobre um «aqui» e «agora», mas a sua fecundidade consiste nas relações universais que sugere, válidas em qualquer lugar e tempo. A passagem dos enunciados de Percepção para os de tipo legal implica a identificação do diverso (que só é possível por meio da abstracção) e a crença na regularidade da natureza. O enunciado das leis relaciona conceitos abstractos, de modo que a indução aparece-nos associada à generalização, embora se não confunda com ela. Uma lei científica é um resumo de relações constantes inferidas a partir dos factos e uma previsão de que eles se repetem no futuro. Os factos que não se repetem com regularidade ou não são susceptíveis de repetidas observações, carecem de valor científico. Enquanto os factos observados são certos, os factos previstos são simplesmente prováveis, porque a indução não permite mais do que enunciar probabilidades.

Na apreciação dum facto concreto há, em primeiro lugar, um conjunto de percepções, mas delas só aproveitamos alguns elementos que, por qualquer motivo, julgamos mais importantes e tomamos como caracteres essenciais do facto. É à custa dos elementos assim abstraídos que formamos noções gerais. A escolha desses elementos pode depender da frequência com que eles se encontram associados em percepções diferentes, das analogias que estas possam apresentar ou que vislumbramos na maneira de interpretá-los. As nossas predilecções ou o sistema das nossas ideias e crenças também influem nela: quaisquer que sejam os factos observados, a sua interpretação é sempre afectada, em maior ou menor grau, por ideias e juízos preconcebidos, mas um investigador consciencioso nunca esquece que não pode impor arbitrariamente à realidade uma estrutura que ela não tem, e que o homem só exerce influência no mundo que o rodeia integrando-se no condicionalismo dos fenómenos.

O que caracteriza o espírito científico é a meticulosidade que põe na observação dos factos, a argúcia com que descobre analogias e relações pouco aparentes, a disciplina com que submete as suas interpretações à verificação experimental, o sentido estético da harmonia interna do mundo, o amor desinteressado da verdade. Para os objectos independentes do pensamento, o conceito da verdade significa apenas uma forma satisfatória de concordância da ordem lógica e da ordem real: todo o conhecimento é simplesmente provável, e a verdade só pode ser concebida como um limite de probabilidades. Só conhecemos directamente os factos passageiros que constituem os fenómenos, mas dispomos de princípios de ordenação do material da experiência suficientemente eficazes para lhe darem coerência lógica e fecundidade prática. As relações constantes que observamos entre esses fenómenos constituem outra espécie de factos, nos quais podemos ainda distinguir dois tipos, conforme exprimem relações empíricas ou lógica.

Lobo Vilela

___________________

(1)O significado da história do Pensamento Científico, trad. port., pág. 16.

 

NATAL


     desenho de antónio


Ao Eduardo Valente da Fonseca

Sento-me contigo à tua mesa
E serves-me no prato a tua fome
E pedes que beba o mesmo vinho
Com que mitigas a sede de Beleza...

— Não quero mais — te digo. Vou-me embora.

Mas já uma estranha sensação de angústia
Me faz sentar, de novo à tua mesa!...

pinto da costa

 

 

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