2 Dada o
impossibilidade de confrontarmos as percepções com os objectos a que se
referem, o único meio de que dispomos para aferir do valor objectivo dos
juízos que sobre eles se formam consiste em confrontá-los com outros que
resultem duma actuação intencional sobre o mundo físico, orientada pelos
juízos cuja validade pretendemos verificar. A verificação constitui um
meio de controlo necessário, porque na passagem da percepção para o
juízo é sempre possível errar-se. Nem todos os juízos referentes a
factos são, porém, susceptíveis de verificação experimental e a sua
validade só pode ser estabelecida por um critério de coerência lógica ou
de fecundidade.
O critério da coerência lógica, sem ser
garantia suficiente da objectividade, porque os mesmos factos podem ser
interpretados e explicados dentro de diferentes esquemas lógicos, tem a
vantagem de obedecer a princípios universalmente válidos e está de
acordo com o postulado da racionalidade do mundo, cuja validade
objectiva parece confirmada pelo êxito da ciência. Por isso a indução
está na base da passagem da percepção dos factos à sua relacionação
teorética. O pensamento especulativo procura suprir as insuficiências da
experimentação e do raciocínio apelando para a imaginação. É neste ponto
que a investigação e a arte se encontram. A lógica só intervém para
regular o emprego de noções já elaboradas e não contribui para a sua
criação; a experiência pode sugeri-las mas não criá-las.
A análise imparcial dos factos sobre os
quais incide o juízo e a concordância de juízos formulados por
diferentes indivíduos suficientemente aptos para se pronunciarem acerca
deles podem servir de indícios de objectividade, mas fica sempre larga
margem para o arbitrário na apreciação da imparcialidade e da
competência que, por sua vez, precisa de ser objectiva, donde resulta
cair-se num círculo vicioso insolúvel.
A universalidade é tomada como critério
de objectividade, porque se presume que a aceitação universal dum facto
pode constituir uma prova da sua realidade, visto ultrapassar o carácter
privado da percepção; mas facilmente reconhecemos a insuficiência deste
critério se notarmos que a aceitação unânime dum erro não pode ser
garantia de verdade. A dificuldade que encontram as novas ideias para
vencer a inércia dos preconceitos consagrados mostra bem quanto esse
critério é precário. Só em relação aos objectos ideais, criados pelo
espírito e rigorosamente definidos, a universalidade pode constituir um
critério de validade.
Resta-nos o critério prático de
verificação do acordo dos nossos tipos de interpretação com outros
factos cujas características aqueles tipos permitam prever e sejam
susceptíveis de observação. A verificação experimental constitui o único
meio de que dispomos para aferir da adequação do conhecimento ao sector
da realidade a que ele se refere e, portanto, desempenha o papel dum
critério de objectividade. A experiência, escreve Claude Bernard, é o
«único processo que temos para nos instruirmos acerca da natureza das
coisas que estão fora de nós». Todavia o êxito é mais um critério de
utilidade do que de veracidade. Os êxitos alcançados por uma hipótese ou
teoria não impedem que ela se mostre inadequada e seja substituída por
outra mais fecunda; contudo, o valor objectivo da ciência só pode ser
aferido pelo êxito das suas previsões e pela eficácia das suas
aplicações.
De qualquer modo, um facto é sempre
produto do nosso espírito quanto à forma que apresenta, ainda que
implique um conteúdo objectivo. Federico Enriques (1) salienta esta
característica: «Um facto não é nunca o encontro bruto de certos dados
sensíveis, mas sim a reunião de vários dados numa certa ordem, dominada
por uma ideia: a sua afirmação implica sempre o reconhecimento de dados
objectivos e /página 15/
subjectivos, separáveis até certo ponto, mas nunca num sentido
absoluto».
A observação incide sobre factos
particulares, sobre um «aqui» e «agora», mas a sua fecundidade consiste
nas relações universais que sugere, válidas em qualquer lugar e tempo. A
passagem dos enunciados de Percepção para os de tipo legal implica a
identificação do diverso (que só é possível por meio da abstracção) e a
crença na regularidade da natureza. O enunciado das leis relaciona
conceitos abstractos, de modo que a indução aparece-nos associada à
generalização, embora se não confunda com ela. Uma lei científica é um
resumo de relações constantes inferidas a partir dos factos e uma
previsão de que eles se repetem no futuro. Os factos que não se repetem
com regularidade ou não são susceptíveis de repetidas observações,
carecem de valor científico. Enquanto os factos observados são certos,
os factos previstos são simplesmente prováveis, porque a indução não
permite mais do que enunciar probabilidades.
Na apreciação dum facto concreto há, em
primeiro lugar, um conjunto de percepções, mas delas só aproveitamos
alguns elementos que, por qualquer motivo, julgamos mais importantes e
tomamos como caracteres essenciais do facto. É à custa dos elementos
assim abstraídos que formamos noções gerais. A escolha desses elementos
pode depender da frequência com que eles se encontram associados em
percepções diferentes, das analogias que estas possam apresentar ou que
vislumbramos na maneira de interpretá-los. As nossas predilecções ou o
sistema das nossas ideias e crenças também influem nela: quaisquer que
sejam os factos observados, a sua interpretação é sempre afectada, em
maior ou menor grau, por ideias e juízos preconcebidos, mas um
investigador consciencioso nunca esquece que não pode impor
arbitrariamente à realidade uma estrutura que ela não tem, e que o homem
só exerce influência no mundo que o rodeia integrando-se no
condicionalismo dos fenómenos.
O que caracteriza o espírito científico
é a meticulosidade que põe na observação dos factos, a argúcia com que
descobre analogias e relações pouco aparentes, a disciplina com que
submete as suas interpretações à verificação experimental, o sentido
estético da harmonia interna do mundo, o amor desinteressado da verdade.
Para os objectos independentes do pensamento, o conceito da verdade
significa apenas uma forma satisfatória de concordância da ordem lógica
e da ordem real: todo o conhecimento é simplesmente provável, e a
verdade só pode ser concebida como um limite de probabilidades. Só
conhecemos directamente os factos passageiros que constituem os
fenómenos, mas dispomos de princípios de ordenação do material da
experiência suficientemente eficazes para lhe darem coerência lógica e
fecundidade prática. As relações constantes que observamos entre esses
fenómenos constituem outra espécie de factos, nos quais podemos ainda
distinguir dois tipos, conforme exprimem relações empíricas ou lógica.
Lobo Vilela
___________________
(1) — O significado da
história do Pensamento Científico, trad. port., pág. 16.
NATAL
desenho de antónio |
Ao Eduardo Valente da Fonseca
Sento-me contigo à tua mesa
E serves-me no prato a tua fome
E pedes que beba o mesmo vinho
Com que mitigas a sede de Beleza...
— Não quero mais — te digo.
Vou-me embora.
Mas já uma estranha sensação de
angústia
Me faz sentar, de novo à tua mesa!...
pinto da costa
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