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Artes - Letras - Ciências
Suplemento do n.º 271 do "Litoral"
Dezembro de 1959, Ano I, n.º 4
pág. 3 e 4

 

as imagens têm voz...

por ROBERTO NOBRE


À estética da mais retardatária das artes, a sétima, falta-lhe um passado longo e dignificante que lhe dê austero prestígio e nobreza. Foi, quando nas­ceu, considerada como que apócrifa, irmã espúria das outras geniais 6 artes, a maioria destas com milénios de glória. Nascera na idade mecânica. Vivia de apropriações que fazia às outras artes. Anatole chamou aos cinemas «antros escuros donde se sai com vergonha de ser homem» — e Anatole não era um pudico moralista, nem, decerto, lhe deram, então, nenhum conhaque inebriante que se parecesse ao ardor escaldante de «Le Diable au corps» ou «Les Amants». Bergson disse em 1914: «Fui ao cinema. Nada deve deixar o filósofo indiferente» — como quem se desculpa, pois nada, nem mesmo essa cousa «degradante », que é o cinema, deve ser indife­rente ao filósofo. Depois, alguns intelectuais leram complacentemente o que diziam os Delluc, os Canudo e outros pioneiros do ensaísmo da nova estética. Os futuristas terçaram armas pela nova arte, Marinetti, Apollinaire, Cocteau. Vouillermoz comparou os seus ritmos aos da música, de que era autorizado crítico. René Schwob, em 1929, procurou, com audácia, surpreender a filosofia da originalidade da nova arte. Esta, porém, baseava-se, disse, exactamente em ela ser muda. O seu livro, de resto um ensaio muito belo de crítica de arte, chamou-se mesmo «Uma Melodia Silenciosa». Pelo seu ritmo de plástica em movimento, transmitia aos olhos uma melodia de sensibilidade paralela à dos sons musicais aos ouvidos. Não deveria ser mesquinhamente directa, «fotográfica», narrativa, mas alusiva, como o são a música ou a poesia. Assim, a sua razão de ser era, como todas as artes, de ordem subjectiva. No entanto, sempre oposta ao palco. Schwob asseverou mesmo: «o cinema não vale senão pela sua oposi­ção irredutível ao teatro». Bernard Shaw foi, como Anatole, inimigo confessado dos tais «antros escuros». Na palavra, escrita ou falada, é que estava o génio humano. O cinema de então era formado por imagens intercaladas de legendas. Ele, portanto, só seria suportável quando... cons­tituído unicamente por esses letreiros! Parecia uma «boutade», mas ele era sincero no seu desprezo.

Tivemos, então, os estetas do cinema «puro», os grandes artistas como Vertoff, Ruttmann, etc., para os quais a independência do cinema se degradava quando ele descia» a contar uma historieta. Isso era para os romances, para o palco. Deveria ser apenas uma sinfonia plástica.

Mas o advento do cinema sonoro chegou e teve o seu êxito total: deixou de haver cinema mudo. As restrições de Eisenstein e até a heróica obstinação de mudez, mantida longamente por Chaplin, foram vencidas. Bernard Shaw, quando o cinema se tornou canoro e palrador, dei­xou, finalmente, adaptar as suas obras. Asquit e Leslie Howard fizeram de «Pigmaleão» um êxito memorável. E ele pôde dizer, logicamente, que não tinha mudado. O cinema é que viera ao seu encontro.

Irrompeu, então, uma enxurrada de mesquinho teatro filmado, horrível, palavroso, idiota. Os doutrinadores de teatro rejubilaram. Mesmo os mais lúcidos, como o grande crítico português de teatro Eduardo Scarlatti, reivindicaram uma vez mais a primazia do palco, chamando a esse cinema «teatro mecanizado». Scarlatti afirmou mesmo: «o cinema não é mais que a satis­fação do espírito sem necessidade de cultura. É a sucessão de imagens pelo mecanismo eléc­trico, em vez de mecanismo intelectual».

Serenada a avalanche (e esquecendo propositadamente a boa influência que teve o choque da «improvisação» do neo-realismo italiano com o demasiado «tecnicismo de estúdio» de Hollywood) surgiu um outro cinema sonoro digno de ser observado e meditado, que veio tornar oportuno, uma vez que nos passou a dar belos filmes magnífica (embora imensamente) dialogados, que se reveja o problema de termos estado, ou não, errados quando buscávamos nos valores plásticos das imagens em movimento e no ritmo do seu alternamento a razão de ser da arte do cinema.

Quando surgiram os fonofilmes, foi René Clair, creio, quem melhor pôs o problema — o cinema não deveria servir os diálogos, portanto o teatro, mas utilizar a dicção, a música, os ruídos para sublinhar, para completar a linguagem do cinema «como cinema». Eisenstein surgiu com o «contraponto» sonoro, como complemento alusivo e não sincrónico. Mas, depois disso, muita água correu sob as pontes do Sena. Apareceu por automática decantação, foi amadure­cendo a actual «terceira via», em que o diálogo é persistente e brilhante, mas o jogo de movimentos da câmara, o alternamento de planos, a mutação de lugares, o ritmo de imagens, são, no entanto, perfeitamente cinematográficos. Lembro-lhes, entre outros, a «Eva» (All  about Eva), de Mackienvicz, o «Hamlet», de Laurence Olivier, e as «Noites Brancas», de Visconti.

Não só esses, mas muitos outros trouxeram dignidade ao sistema. Serão obras híbridas, plenas de cenas dialogadas, mas (aqui é que está a singularidade dessa dignificação) também o cinema está intimamente presente em tudo aquilo. Te­mos que confessar que isso tem a sua beleza, atingindo /página 4/ notável nível Intelectual, e que é, sem dúvida, boa arte, venha donde vier.

Vejamos. Esses filmes são realmente bons exactamente quando transcendem «o tea­tro em conserva». Os diálogos estão lá e, se são espirituosos ou emotivos, se têm eleva­ção, eles correspondem à sua missão de ser­vir o cinema. É claro que não falo nos filmes que são mau cinema e mau teatro. Mas, se analisarmos essas boas películas sonoras, veremos que elas não contêm os tais diálogos de teatro. Mesmo no caso, muito especial, de Shakespeare (e isso levan­tou escândalo) tiveram os maravilhosos diá­logos de ser «aparados à tesoura». Se fizéssemos a experiência de levar, por exemplo, integralmente as falas da película «Eva» (que julgo poder apontar significativa do prestígio do género) para serem ditas num palco, como se fossem uma peça teatral, verificaríamos que se tornavam absolutamente deficientes. É que o cinema, mesmo nesses filmes, anda por tudo aquilo como um diabinho solto, olhando de frente, de lado, por detrás, fo­cando de cima, saltando de rosto para rosto, perseguindo as personagens nas suas andan­ças, enquadrando sucessivamente as situa­ções e narrando-as com o milagre criado do seu ritmo — o ritmo do cinema, que é onde está a genialidade peculiar da sua arte.

O facto do cinema ter passado a conter diálogos, mesmo quando belos diálogos, só­brios, talentosos, não modificou a sua essên­cia divergente da do teatro. Decerto ambos são espectáculo, ambos utilizam hoje a pala­vra dita, ambos se destinam a ser vistos por uma plateia. Mais, em ambos é primordial a encenação. Isso os Identifica? Não. Não é só nos diálogos, é exactamente no acto de encenar que eles se opõem.

É simplificar absurdamente o problema supor que a diferença fundamental entre as duas artes está apenas em ter, ou não, diá­logos. O cinema não é apenas um hábil aglutinador de todas as outras artes, plásti­cas e ficcionistas. Ele tem profundas carac­terísticas peculiares, uma filosofia de arte própria. É claro que o cinema não está apenas no encanto das imagens, enquadra­mentos, ângulos, «travelings», etc. que, tendo beleza em si próprios, constituem antes a sua técnica, pois a sua estética está em ser­vir-se oportunamente desses elementos como um meio alusivo, todo feito de subtileza e intenções. Com isso se atinge em cinema uma linguagem, um estilo, tão dúctil e sub­jectivo como o duma bela prosa ao serviço do romancista.

Em todos os tempos, desde Platão, se tem perguntado o que é Arte. Há quase 60 anos que se vem perguntando o que é cine­ma. Uma verdade me parece evidente, tão clara e elementar como as puras e excessi­vas verdades que celebrizaram Mr. de la Pa­lisse: — as noções de estética são evolutivas, não saberemos dizer, em absoluto, o que é, ou não é, cinema. Mas nós, que o vimos nascer no nosso tempo e tornar-se grande, podemos garantir que é, quando feito com dignidade, uma arte magnífica e, mesmo quando sonoro e dialogado, não é teatro.

Roberto Nobre

  paisagem sonora
 

Vaga sonata
De prata
Num vago
Lago
Nefelibata...

Por entre folhagem
Verde
Que, em canções de cor, se
                   [perde,
Desliza,
Qual brisa-brisa,
A tua Imagem
De aragem
E perde a cor
Na folhagem.

(Tamborilar de folguedos
E arremedos
De bricar,
Em transparências de Lago
No vago
Tamborilar...)

Uma cantiga selvagem,
Numa vertigem
De festa,
Rasga a virgem
Folhagem
Da floresta...

 

E a tua Imagem
De prata,
Nesse compasso
Lasso
De sonata,
Arremessada
E tombada

No Lago nefelibata,
Tem sonâncias de arremedos
Ao luar,
— Tamborilar de folguedos
Em transparências de Lago,
No vago
Tamborilar.

pedro zargo-1932
 

 

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