À estética da mais retardatária das artes, a sétima, falta-lhe um
passado longo e dignificante que lhe dê austero prestígio e nobreza.
Foi, quando nasceu, considerada como que apócrifa, irmã espúria das
outras geniais 6 artes, a maioria destas com milénios de glória. Nascera
na idade mecânica. Vivia de apropriações que fazia às outras artes.
Anatole chamou aos cinemas «antros escuros donde se sai com vergonha de
ser homem» — e Anatole não era um pudico moralista, nem, decerto, lhe
deram, então, nenhum conhaque inebriante que se parecesse ao ardor
escaldante de «Le Diable au corps» ou «Les Amants». Bergson disse em
1914: «Fui ao cinema. Nada deve deixar o filósofo indiferente» — como
quem se desculpa, pois nada, nem mesmo essa cousa «degradante », que é o
cinema, deve ser indiferente ao filósofo. Depois, alguns intelectuais
leram complacentemente o que diziam os Delluc, os Canudo e outros
pioneiros do ensaísmo da nova estética. Os futuristas terçaram armas
pela nova arte, Marinetti, Apollinaire, Cocteau. Vouillermoz comparou os
seus ritmos aos da música, de que era autorizado crítico. René Schwob,
em 1929, procurou, com audácia, surpreender a filosofia da originalidade
da nova arte. Esta, porém, baseava-se, disse, exactamente em ela ser
muda. O seu livro, de resto um ensaio muito belo de crítica de arte,
chamou-se mesmo «Uma Melodia Silenciosa». Pelo seu ritmo de plástica em
movimento, transmitia aos olhos uma melodia de sensibilidade paralela à
dos sons musicais aos ouvidos. Não deveria ser mesquinhamente directa,
«fotográfica», narrativa, mas alusiva, como o são a música ou a poesia.
Assim, a sua razão de ser era, como todas as artes, de ordem subjectiva.
No entanto, sempre oposta ao palco. Schwob asseverou mesmo: «o cinema
não vale senão pela sua oposição irredutível ao teatro». Bernard Shaw
foi, como Anatole, inimigo confessado dos tais «antros escuros». Na
palavra, escrita ou falada, é que estava o génio humano. O cinema de
então era formado por imagens intercaladas de legendas. Ele, portanto,
só seria suportável quando... constituído unicamente por esses
letreiros! Parecia uma «boutade», mas ele era sincero no seu desprezo.
Tivemos, então, os estetas do cinema
«puro», os grandes artistas como Vertoff, Ruttmann, etc., para os quais
a independência do cinema se degradava quando ele descia» a contar uma
historieta. Isso era para os romances, para o palco. Deveria ser apenas
uma sinfonia plástica.
Mas o advento do cinema sonoro chegou e
teve o seu êxito total: deixou de haver cinema mudo. As restrições de
Eisenstein e até a heróica obstinação de mudez, mantida longamente por
Chaplin, foram vencidas. Bernard Shaw, quando o cinema se tornou canoro
e palrador, deixou, finalmente, adaptar as suas obras. Asquit e Leslie
Howard fizeram de «Pigmaleão» um êxito memorável. E ele pôde dizer,
logicamente, que não tinha mudado. O cinema é que viera ao seu encontro.
Irrompeu, então, uma enxurrada de
mesquinho teatro filmado, horrível, palavroso, idiota. Os doutrinadores
de teatro rejubilaram. Mesmo os mais lúcidos, como o grande crítico
português de teatro Eduardo Scarlatti, reivindicaram uma vez mais a
primazia do palco, chamando a esse cinema «teatro mecanizado». Scarlatti
afirmou mesmo: «o cinema não é mais que a satisfação do espírito sem
necessidade de cultura. É a sucessão de imagens pelo mecanismo
eléctrico, em vez de mecanismo intelectual».
Serenada a avalanche (e esquecendo
propositadamente a boa influência que teve o choque da «improvisação» do
neo-realismo italiano com o demasiado «tecnicismo de estúdio» de
Hollywood) surgiu um outro cinema sonoro digno de ser observado e
meditado, que veio tornar oportuno, uma vez que nos passou a dar belos
filmes magnífica (embora imensamente) dialogados, que se reveja o
problema de termos estado, ou não, errados quando buscávamos nos valores
plásticos das imagens em movimento e no ritmo do seu alternamento a
razão de ser da arte do cinema.
Quando surgiram os fonofilmes, foi René
Clair, creio, quem melhor pôs o problema — o cinema não deveria servir
os diálogos, portanto o teatro, mas utilizar a dicção, a música, os
ruídos para sublinhar, para completar a linguagem do cinema «como
cinema». Eisenstein surgiu com o «contraponto» sonoro, como complemento
alusivo e não sincrónico. Mas, depois disso, muita água correu sob as
pontes do Sena. Apareceu por automática decantação, foi amadurecendo a
actual «terceira via», em que o diálogo é persistente e brilhante, mas o
jogo de movimentos da câmara, o alternamento de planos, a mutação de
lugares, o ritmo de imagens, são, no entanto, perfeitamente
cinematográficos. Lembro-lhes, entre outros, a «Eva» (All about Eva),
de Mackienvicz, o «Hamlet», de Laurence Olivier, e as «Noites Brancas»,
de Visconti.
Não só esses, mas muitos outros
trouxeram dignidade ao sistema. Serão obras híbridas, plenas de cenas
dialogadas, mas (aqui é que está a singularidade dessa dignificação)
também o cinema está intimamente presente em tudo aquilo. Temos que
confessar que isso tem a sua beleza, atingindo /página
4/ notável nível Intelectual, e que é, sem dúvida, boa arte,
venha donde vier.
Vejamos. Esses filmes são realmente bons
exactamente quando transcendem «o teatro em conserva». Os diálogos
estão lá e, se são espirituosos ou emotivos, se têm elevação, eles
correspondem à sua missão de servir o cinema. É claro que não falo nos
filmes que são mau cinema e mau teatro. Mas, se analisarmos essas boas
películas sonoras, veremos que elas não contêm os tais diálogos de
teatro. Mesmo no caso, muito especial, de Shakespeare (e isso levantou
escândalo) tiveram os maravilhosos diálogos de ser «aparados à
tesoura». Se fizéssemos a experiência de levar, por exemplo,
integralmente as falas da película «Eva» (que julgo poder apontar
significativa do prestígio do género) para serem ditas num palco, como
se fossem uma peça teatral, verificaríamos que se tornavam absolutamente
deficientes. É que o cinema, mesmo nesses filmes, anda por tudo aquilo
como um diabinho solto, olhando de frente, de lado, por detrás, focando
de cima, saltando de rosto para rosto, perseguindo as personagens nas
suas andanças, enquadrando sucessivamente as situações e narrando-as
com o milagre criado do seu ritmo — o ritmo do cinema, que é onde está a
genialidade peculiar da sua arte.
O facto do cinema ter passado a conter
diálogos, mesmo quando belos diálogos, sóbrios, talentosos, não
modificou a sua essência divergente da do teatro. Decerto ambos são
espectáculo, ambos utilizam hoje a palavra dita, ambos se destinam a
ser vistos por uma plateia. Mais, em ambos é primordial a encenação.
Isso os Identifica? Não. Não é só nos diálogos, é exactamente no acto de
encenar que eles se opõem.
É simplificar absurdamente o problema
supor que a diferença fundamental entre as duas artes está apenas em
ter, ou não, diálogos. O cinema não é apenas um hábil aglutinador de
todas as outras artes, plásticas e ficcionistas. Ele tem profundas
características peculiares, uma filosofia de arte própria. É claro que
o cinema não está apenas no encanto das imagens, enquadramentos,
ângulos, «travelings», etc. que, tendo beleza em si próprios, constituem
antes a sua técnica, pois a sua estética está em servir-se
oportunamente desses elementos como um meio alusivo, todo feito de
subtileza e intenções. Com isso se atinge em cinema uma linguagem, um
estilo, tão dúctil e subjectivo como o duma bela prosa ao serviço do
romancista.
Em todos os tempos, desde Platão, se tem
perguntado o que é Arte. Há quase 60 anos que se vem perguntando o que é
cinema. Uma verdade me parece evidente, tão clara e elementar como as
puras e excessivas verdades que celebrizaram Mr. de la Palisse: — as
noções de estética são evolutivas, não saberemos dizer, em absoluto, o
que é, ou não é, cinema. Mas nós, que o vimos nascer no nosso tempo e
tornar-se grande, podemos garantir que é, quando feito com dignidade,
uma arte magnífica e, mesmo quando sonoro e dialogado, não é teatro.
Roberto Nobre
paisagem sonora
Vaga sonata
De prata
Num vago
Lago
Nefelibata...
Por entre folhagem
Verde
Que, em canções de cor, se
[perde,
Desliza,
Qual brisa-brisa,
A tua Imagem
De aragem
E perde a cor
Na folhagem. |
(Tamborilar de folguedos
E arremedos
De bricar,
Em transparências de Lago
No vago
Tamborilar...)
Uma cantiga selvagem,
Numa vertigem
De festa,
Rasga a virgem
Folhagem
Da floresta...
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E a tua Imagem
De prata,
Nesse compasso
Lasso
De sonata,
Arremessada
E tombada
No Lago nefelibata,
Tem sonâncias de arremedos
Ao luar,
— Tamborilar de folguedos
Em transparências de Lago,
No vago
Tamborilar.
pedro zargo-1932
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