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Artes - Letras - Ciências
Suplemento do n.º 271 do "Litoral"
Dezembro de 1959, Ano I, n.º 4
págs. 33 e 34

 

Do infinitamente pequeno ao

INFINITAMENTE GRANDE

por Vasco Branco
 

Há dias, um analista nosso amigo dizia-nos que hoje um grande número de bactérias patogénicas, como certos pneumococos e estreptococos, estendem velozmente as suas colónias sobre certas zonas carregadas de soluções de antibióticos com o mesmo à-vontade com que o fariam em meio ideal para o seu desenvolvimento. Tempos atrás, processos idênticos serviam para determinar a concentração destas drogas, calculada pelo comprimento do raio da zona circular limpa de bactérias.

Hoje, os microorganismos adquiriram novas características que os tornam resistentes aos ataques da medicamentação considerada milagrosa. Pouco tempo faltará para que todo o mundo patogénico calque com soberano desprezo os obstáculos que o homem tão bem forjara para a sua defesa.(1) Outros medicamentos com renovada eficácia surgirão, todavia, obrigando os microorganismos a novo ciclo de adaptações.

Este facto serve-nos apenas para ilustrar o extraordinário poder de adaptação dos seres vivos às modificações do meio em que vegetam. Muitos outros exemplos poderíamos citar, mas preferimos este em virtude da sua indiscutível actualidade. Esta espécie de reacção defensiva à hostilidade do meio parece ser muito mais acentuada nos seres inferiores. Ou então esta adaptação processar-se-á talvez através dum determinado número de gerações sucessivas que nos seres superiores não nos é possível observar por via da sua muito mais longa duração. A velocidade de multiplicação das bactérias é de tal ordem que nos permite assistir a essa espécie de mitridatização transmissível. Se o homem pudesse reduzir a sua duração normal à escala das durações dos seres inferiores — com excepção do observador — talvez este se espantasse também com o poder de adaptação de seus semelhantes, então nitidamente visível. A capacidade de adaptação a meios hostis é, portanto, um facto mais do que verificado. O que não sabemos é se esta capacidade vai até ao extremo de poder prescindir de determinadas condições que alguns cientistas consideram indispensáveis à vida. Vimos atrás o extraordinário equilíbrio mantido por um sem número de factores, equilíbrio que desfeito de chofre arrastaria na queda toda a vida, tal como a concebemos. Podemos destacar dessas condições essenciais a existência de água, da atmosfera e de uma temperatura adequada.

Evidentemente que podemos imaginar outros seres mais ou menos fantásticos com uma vida (?) relacionada com as condições de outros planetas do nosso sistema solar, ou até de outros sistemas intra ou extra-galácticos. Não será também de desprezar a hipótese do acaso de outros planetas com características telúricas, perdidos na imensidade cósmica. No nosso sistema solar, exceptuando a Terra, parece mais que provada a ausência de condições que permitam a vida, sobretudo se restringirmos a noção de vida ao modelo fornecido pelas suas manifestações terrenas. Mas — repetimos — ninguém nos impede de imaginar, nesses planetas, novos padrões de vida condicionados pelo meio para nós tão proibitivo. Imaginar, todavia, é talvez envolver-nos nas malhas da ficção a que tentámos subtrair-nos ao longo de todo o nosso trabalho. Há quem se insurja contra os imaginativos, como há quem se irrite com a prudência excessiva. O mundo é dos que se arriscam — dizem. Quanto a nós não menosprezaremos os poetas da ciência, nem desdenharemos dos seus rígidos adversários. Julgamos que a humanidade necessita dos dois temperamentos: um, para fazer explodir a estreiteza de certos dogmas; outro, para comedir os excessos do primeiro.

De imaginativos como Leonardo de Vinci, Júlio Verne /página 34/ e outros é que saiu o fermento que havia de levedar o mundo de realizações, na altura consideradas utopia. A própria Teoria da Relatividade foi considerada de início um simples delírio de poeta. E, no entanto, as deflagrações monstruosas, que devem a sua energia à desintegração atómica, muito devem a esse magnífico prurido poético.

Após a entrada do homem na cidadela nuclear e consequente devassa no reino do infinitamente pequeno, o homem prepara-se para a conquista dos espaços interplanetários e conquista do infinitamente grande. Os foguetões ultrapassam já zonas consideradas inatingíveis e conduzem os aparelhos dos homens. Os satélites artificiais marcam um período preparatório que nos permitirá o avanço até aos planetas que só conhecíamos através dos nossos algarismos e dos nossos aparelhos imperfeitos. O já conseguido, contudo, apesar de insignificante, é o suficiente para que possamos encarar o futuro com mais optimismo. É possível que na altura em que as paragens telúricas se transformem para o homem em túmulo iminente, este já esteja preparado e em condições de poder transitar para outro planeta que lhe assegure a estabilidade e paz por que sempre suspirou.

Por agora, procura-se resolver os problemas da locomoção nas camadas superiores da atmosfera e espaço interplanetário. Estudam-se, pois, aturadamente, essas camadas superiores; as condições de resistência dos aparelhos e dos homens a altas velocidades; o voo por inércia além da atmosfera; a acção dos raios cósmicos e ultravioletas nocivos, a grandes altitudes; a maneira de vencer a força da gravitação, de manter uma temperatura adequada nas astronaves, de armazenar o oxigénio, os mantimentos, o combustível; a aceleração que é necessário desenvolver o aparelho no momento da partida para atingir determinado ponto, a resistência do organismo humano a essas acelerações; as rotas mais viáveis; o processo de travagem à chegada.

De todos os tipos estudados, parece ser o foguete de reacção o modelo ideal para vencer o maior número de dificuldades criadas para estes voos.

Segundo alguns cientistas, a primeira fase do projecto para se visitarem os planetas mais próximos da Terra será o da colocação dum satélite artificial gigante, que nos divida o caminho em duas etapas e, por conseguinte, nos minore consideravelmente o peso de combustível e víveres a transportar de início. A partida para mais ambiciosas explorações, feita deste satélite, seria muitíssimo mais fácil em virtude de já não termos de contar com o duro problema da atmosfera nessa segunda parte da viagem. O satélite poderia ser montado por partes e funcionaria de primeiro apeadeiro no caminho que nos há-de conduzir ao aliciante desconhecido. A colocação dos satélites-miniaturas russos e americanos deixa-nos — repetimos — augurar o maior êxito a futuros e mais ambiciosos empreendimentos.

Por enquanto, estes satélites visam à solução de problemas mais modestos. Vejamos, em resumo feito pelo cientista russo A. G. Karpenko, alguma da aparelhagem de que vão munidas essas miniaturas:

«A parte superior do aparelho estará sempre voltada para o Sol, e os raios solares, passando pelas lentes, concentram-se na bateria solar, que fornece energia às células. A antena serve para o transmissor. Contém ainda sensíveis instrumentos para captar as radiações gama, ultravioletas, electrões livres e raios X. Há também um medidor e registador dos raios cósmicos. Todas as indicações são feitas numa fita magnética instalada num tambor rotativo comandado por engrenagens adequadas.»

Do programa previsto para as próximas sondagens a fazer por estes satélites destacaremos, novamente, as informações do Prof. Karpenko:

«Importantíssima também é a possibilidade de que sejam utilizados os futuros satélites para observar os movimentos gerais no Oceano Glacial. Isto permitirá dar mais precisão aos prognósticos do tempo e das condições de navegação do Norte. Podemos ainda estudar mais amplamente a ionosfera e as suas origens. Serão possíveis o estudo da influência do campo magnético do Sol sobre a intensidade dos raios cósmicos e a observação do campo magnético da Terra e de suas modificações, permitindo aos cientistas aprofundar-se mais num dos maiores enigmas da natureza, que é o segredo da origem do magnetismo terrestre...

A viagem interplanetária resolverá em definitivo um número imensurável de problemas, actualmente entregue a meras conjecturas. Teremos, assim, o ensejo de resolver aquele que esboçámos logo de início e se relaciona com as possibilidades de vida em condições diferentes das da Terra. Muitas hipóteses, consideradas insensatas, se transformarão em certezas; muitas afirmações, tidas como verdadeiras, serão desmentidas pela irreverência dos factos; muitos fenómenos, nunca sonhados, se observarão para nosso espanto.

Até aonde conduzirá os homens o seu pasmoso engenho? Que nos reservará o futuro? Se vivêssemos duzentos anos atrás e nos dissessem que os homens se atreveriam a devassar os céus com os seus veículos de velocidade supersónica, cingir-nos-íamos talvez a encolher os ombros com aquele mesmo desdém que hoje merecem a muita gente estes augúrios acerca das futuras viagens interplanetárias.

Que nos reservará o futuro? Quem não desejaria viver o suficiente para assistir à transformação do homem aeronauta em astronauta, dos já vulgares aviões em alucinantes cosmonaves?

Do livro no prelo «Do Ignoto aos Satélites Artificiais»

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(1) — «A neomicina muito eficaz, no ano anterior, sobre o E. coli O 111 B4, viu a sua acção atenuar-se progressivamente.» ln Medicina Universal.

 

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