BOLETIM   CULTURAL   E   RECREATIVO   DO   S.E.U.C.  -   J.  ESTÊVÃO


PÁGINA 1
Editorial
Alcino Carvalho
PÁGINA 2
Gaudi, o
o arquitecto do
imaginário

Claudete Albino
PÁGINA 3
Contos tradicionais portugueses
PÁGINA 4
O Ensino Recorrente e o
acesso ao ensino
superior

João Paulo C. Dias
PÁGINA 5
Dos registos
às flores

Duarte José F. Morgado
PÁGINA 6
Napoleão
não foi assassinado
Henrique J. C. Oliveira
PÁGINA 7
Sociedade Psi
Isabel Bernardino
PÁGINA 8
A aventura literária de
Almada Negreiros 

Paula Tribuzi
PÁGINA 9
A escrita da
casa
PÁGINA 10
A propósito do
Halloween
Dois contos
PÁGINA 11
Da Filosofia e
seu papel

Alcino Cartaxo
PÁGINA 12
Castanhas e
Jeropiga e
S. Martinho

Henrique J. C. Oliveira
PÁGINA 13
Hora do Recreio
HJCO
PÁGINA 14
Fac-símile da versão impressa
 

Registos ou Registros, ou Resistos, Maquinetas, Lapelas, Saudades, Santinhos, Lâminas, Caixinhas, Medalhas, tantos nomes para designar um trabalho com carácter popular ou erudito, onde os materiais são sempre sobras ou aproveitamentos, que vão dos pequenos papelinhos e pratinhas até aos riquíssimos paramentos bordados a ouro e prata.

Um Registo implica acção, por isso, quando se realiza um Registo, marca-se uma lembrança, factos especiais ou uma devoção. Foram e devem ser feitos por devoção própria ou de outrem que os pedem aos mais habilidosos, sempre agradecendo auxílios implorados, vazando no Homem o retrato fiel da eterna e mítica carência do Divino. A maior parte destas pequenas obras obriga-nos a reparar que existe sempre uma intenção escondida, inquieta-nos num acto de vigília que sai do Homem para o Divino e vice-versa.

Importante será sublinhar que considero que a minha pesquisa, nos supracitados assuntos, conseguiu alcançar algumas metas de certo valor. Concluí ter encontrado Registos apelidados forçosamente de Religiosos (reflexos de devoção religiosa e amor espiritual), e outros que os quero designar como Registos não Religiosos (reflexos de amor terreno).

Antes de passar à minha designação das espécies e seus respectivos géneros, estrutura taxológica ou classificação, aconselho todos os que se interessam por esta matéria a não ficarem pelo que os livros dizem, pois só dessa forma me poderão compreender em relação às divisões classificativas que estipulei. Visitem museus, falem com quem ainda possa transmitir saberes de antanho e analisem as razões das formas e materiais.

Registo da autoria de António Monteiro.

Facilitou-me já ter alguma fundamentação genérica vinda de Escola. Durante os estudos universitários, pude constatar que o trabalho criativo é sempre uma tentativa de fazer "transpirar" emoções das obras. Um efeito técnico, por si só, tem um valor relativo se não for portador de conteúdo/mensagem. Por isso, fui sempre tentado a descobrir o que a natureza me devolve, a subjectividade perturbadora da cor, as pessoas que me escutam atentamente e o mar que me rodeia. As obras, quando ainda estão nas mãos dos criadores, são sempre segredos à espera de quem os consiga desvendar, ou mesmo o desejo de mãos desavergonhadas que marcam encontro com formas e volumes. Não é só o desejo de retratar a face certa de nós, mas também um jogo de comunicação num esconde-esconde de prazer e desafio. Aqui, os restauros de trabalhos degradados são sempre pérolas que me deliciam os sentidos.

Tento fazer os meus trabalhos de uma maneira pensada e rigorosa, para apresentarem um conjunto de formas, que vão do plano à estrutura volumosa e saliente, com linhas e texturas várias. Assim, chamam a atenção do leitor para se deixarem levar no jogo de elementos que referenciam as devoções, provocando contrastes ou harmonias nas formas e nas cores com ou sem ligação. A temática dos elementos leva-nos sempre a reflectir sobre os caminhos que o Homem percorreu e percorre, para chegar tanto ao "mais alto e sublime" como ao mais "baixo e profundo". E creio que tudo isto está bem patente em todos os trabalhos por mim realizados, desde Tapeçarias aos Registos, dos Acrílicos às Flores, da Colagem à Cenografia, da Coreografia à Encenação.

Registo da autoria de António Monteiro.

Há Registos que são referência de determinados locais, tais como os de Marvão, feitos em pele de castanha e que se chamam "Saudades" ou "Memórias" pois a sua feitura teve como base uma fotografia de um ente querido. Como não possuem qualquer referência religiosa, julgo ser mais acertado incluí-los nos "não Religiosos". Os de Ílhavo, pelo contrário, são feitos em caixas de vidro com uma figura religiosa envolvida em conchas que o mar nos dá, e pinturas como agradecimento de promessas feitas. A "Caixa dos Amores" é um caso especial de Registo não Religioso. Refiro-me a uma caixa de madeira, composta por duas partes octogonais e diferentes na decoração interior. São unidas por dobradiças de metal. Os fundos são decorados com material vindo do mar, a gosto do artesão. Uma das duas partes, tem sempre um coração no meio das outras formas. Eram feitas por marinheiros Ilhavenses, no alto mar ou em terra. Separavam-na, para levarem só uma parte quando partiam de viagem, deixando a outra metade a um familiar, pelo que as duas partes da caixa só se uniam, só se voltavam a encontrar, aquando do regresso dos marinheiros. A única referência em relação à religiosidade, da qual não possuo provas, está ligada ao testemunho das pessoas mais idosas que, em conversa, me disseram ser usual oferecer esta caixa ao Senhor Jesus dos Navegantes de Ílhavo (como ex-voto), quando a safra ou a viagem eram coroadas de verdadeira fartura de pesca e saúde. Este era um objecto adorado e de contemplação, com um simbolismo afectivo forte, por parte de quem a possuía (quantas vezes se ficava pela metade, ficando a ser o que restava de alguém...).

Há Registos que eram usados como insígnias dos Círios, grupos de peregrinos, ou como uma identificação conferida ao seu portador num lugar hierárquico no funcionamento de uma Festividade ou Romaria. São as chamadas "Medalhas" que eram usadas pelos Festeiros e respectivas famílias e também pelo Fogueteiro nalgumas regiões do Ribatejo. Estas composições religiosas, com fantasias decorativas mais ou menos rebuscadas, comportavam sempre características estéticas do local ou das pessoas que a confeccionavam. Sabe-se que alguns Registos correspondiam à necessidade de confrarias, irmandades, mordomos e devotos, para angariarem verbas para o culto do santo exposto no registo. Neste caso, o registo era trocado no peditório antes e durante a festa. Quem adquirisse um Registo testemunhava a sua devoção, o que lhe traria um contacto quotidiano com o significado da imagem. Os Registos eram entendidos como objectos que patenteavam as indulgências que ganhavam, quem os possuía. Aplicavam-se (ainda hoje) conforme a sua estrutura de execução. Usavam-se como simples recordação que se guardava, como um marcador de livros devocionais, como um suporte principal para decorar um oratório, nas bandeiras dos círios, ao peito bem presos no vestuário de confrades, peregrinos ou dos pescadores, como o era em Ílhavo.

Símbolo carismático de oração em determinadas partes da casa, (em ricas salas e quartos de casas abastadas, ou na cozinha como os da aldeia do Pego), era ou é, sempre, um objecto de personalidade inalienável, mediadora entre o Céu e a Terra, ouvinte de súplicas a interceder pelos Homens junto do Divino.

No entanto, é imperioso lembrarmos que os Registos não têm um nascimento datado e específico. Existem alguns do Séc. XVI que se apresentam feitos a partir de pequenas figuras ou altos-relevos de carácter religioso e em cera pura. Quem sabe quando se começaram a fazer? Uma Pintura Rupestre não será um Registo? Porém, não me interessa unicamente a execução de trabalhos só dentro dos contextos culturais da sua proveniência, e quem conhece o meu trabalho certamente o sabe. Teria limitações se assim fosse, e um criador não gosta muito de limites. Sempre se fizeram Registos em muitas terras, e essas habilidades nasceram porventura em conventos de amor e dedicação. E Ílhavo não fugiu à regra: Em Abril de 1876, Ílhavo foi a terra escolhida, em Portugal, pelas primeiras Franciscanas Missionárias de Nossa Senhora. Foi nesta terra de gentes do mar que a Congregação fundou, de raiz, em Portugal, a primeira casa, onde funcionou o Noviciado e uma escola onde era ministrada gratuitamente a educação a meninas, sobremaneira filhas de pescadores. Poucas peças destas obreiras chegaram até aos nossos dias ... Todavia, coube-me a mim a herança feliz de ter conhecido "resultados" da sua missão em Ílhavo. Agora, crio e recrio outras composições e formas, incluindo as minhas colagens a que chamei PROMESSAS, destinados a novos contextos para outras leituras, desviando-me de um perfil técnico fixo, ancestral, sem desrespeitar os grandes valores do passado. Tento ser criterioso na escolha de materiais, formas, imagens, sem descuidar as técnicas de desenho, recorte, colagem, modelagem, vincagem e bordado. Continuo a (re)criá-los... umas vezes fiel a referências específicas, outras personalizando as obras com formas, materiais, técnicas e estéticas novas. Penso estar em constante procura de vida que sinto em cada pedaço realizado, ultrapassando o que em mim é vulnerável, frágil e doloroso, estando sempre a ser alertado, implacavelmente, para querer "ser e estar na vida" com amor. Procuro sempre que os meus registos sejam jogos perturbantes de comunicação num prazer e desafio de conteúdo.

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