BOLETIM   CULTURAL   E   RECREATIVO   DO   S.E.U.C.  -   J.  ESTÊVÃO


PÁGINA 1
Editorial
Alcino Carvalho
PÁGINA 2
Gaudi, o
o arquitecto do
imaginário

Claudete Albino
PÁGINA 3
Contos tradicionais portugueses
PÁGINA 4
O Ensino Recorrente e o
acesso ao ensino
superior

João Paulo C. Dias
PÁGINA 5
Dos registos
às flores

Duarte José F. Morgado
PÁGINA 6
Napoleão
não foi assassinado
Henrique J. C. Oliveira
PÁGINA 7
Sociedade Psi
Isabel Bernardino
PÁGINA 8
A aventura literária de
Almada Negreiros 

Paula Tribuzi
PÁGINA 9
A escrita da
casa
PÁGINA 10
A propósito do
Halloween
Dois contos
PÁGINA 11
Da Filosofia e
seu papel

Alcino Cartaxo
PÁGINA 12
Castanhas e
Jeropiga e
S. Martinho

Henrique J. C. Oliveira
PÁGINA 13
Hora do Recreio
HJCO
PÁGINA 14
Fac-símile da versão impressa
 

A aventura literária de Almada Negreiros

 



O prazer de ler

De uma leitura fugaz da biografia de Almada Negreiros, duas ideias serão colhidas. Por um lado, o artista produziu uma obra vastíssima, dentro do espírito com que intercalou, no volume “A invenção do Dia Claro”, uma citação do pintor Henri Matisse:
«Je travaille tant que je peux et le mieux que je peux, toute la journée. Je donne toute ma mesure, tous mes moyens. Et après, si ce que j’ai fait n’est pas bon, je n’en suis plus responsable; c’est que je ne peux vraiment pas faire mieux...».

 Por outro lado, tal obra retrata uma figura multifacetada, abarcando diversas formas de expressão: o desenho, a pintura, a poesia, o romance, a novela, o conto, o ensaio, a conferência, o teatro e a dança. Através do convívio de diferentes domínios da arte, Almada Negreiros protagonizou o Modernismo na cultura portuguesa do século XX. De facto, o contágio entre literariedade e plasticidade singularizou o grupo do “Orpheu”, de acordo com as tendências mais avançadas da Europa. O Modernismo representa uma ruptura com a estagnação da mentalidade portuguesa do fim de século e a sua evasão saudosista, visionando uma dimensão mais alargada das potencialidades do Homem. Mesclada de esoterismo, a arte apropria-se de um tom da audácia, extravagância e requinte, criando, subtilmente, a emoção estética.

Apreciando globalmente a obra literária de Almada, por duas facetas enveredam os seus textos em prosa e poesia. A primeira vertente, dominada pelo Sensacionismo, congrega as tendências futurista e interseccionista.

No “Manifesto Anti-Dantas”, escrito em 1915, o autor identifica-se como “poeta d’Orpheu futurista” e assume uma atitude satírica relativamente à cultura académica portuguesa, corporizada na figura de Júlio Dantas.

Na qualidade de “poeta sensacionista”, Almada assina o longo poema intitulado “A Cena do Ódio”, que apresenta também uma intensa crítica social, sobretudo da classe burguesa, mas abrangendo todos os grupos, de natureza intelectual ou popular, de origem rural, marinha ou citadina. Além do valor documental do poema como amplo retrato da sociedade, ele denuncia a percepção artística dos quadros típicos, colorindo o pitoresco ou ridicularizando pela caricatura. Esse texto testemunha ainda várias afinidades estéticas entre Almada Negreiros e Álvaro de Campos na partilha da experiência enérgica do Futurismo.

Em “Mima Fataxa”, outro texto de Almada, sobressai o programa vanguardista ao nível formal, com a introdução de diversos tipos de letra de acordo com uma visão estética do espaço gráfico e a valorização dos efeitos sensoriais de certos recursos fénicos como a aliteração, a assonância ou a rima interna.

A obra “K4, o Quadrado Azul” ilustra igualmente o gosto futurista no ataque agressivo ao Saudosismo e na apologia gritante da força mecânica. Como particularidade, a introdução do processo de intersecção cinética na visão do mundo confere ao texto urna nota de excentricidade e fantasia. Numa passagem curiosa, a imaginação desmembra a integridade do corpo humano e sugere uma consciência retalhada da personalidade.

Em “Saltimbancos”, a percepção é motivada por um desfile de imagens descontínuas, que se encadeiam ou repetem, num delirante enquadramento espacial e temporal. A experiência da sexualidade é perspectivada como um espectáculo de “contrastes simultâneos”.

Um outro exemplo de interseccionismo é desenhado na novela “A Engomadeira”. Como experiência de delírio e de liberdade criativa, é também uma situação de transfiguração do real. Através de um fecundo processo de recordação, observação ou sonho, as imagens cruzam-se e entrelaçam-se sem coerência semântica ou gráfica. As relações humanas emaranham-se em cenas amorais e absurdas; a vivência da sexualidade é envolvida, uma vez mais, numa rede complexa ao nível do subconsciente.

A segunda faceta da obra literária de José de Almada Negreiros é identificada no título do texto doutrinário “Elogio da Ingenuidade”. O mundo da criança é valorizado pela sua intuição, espontaneidade e pureza, em oposição à estéril experiência dos adultos. Estas ideias são retomadas no “Prefácio a Qualquer Poeta”, ainda sob a forma pedagógica.

“A Invenção do Dia Claro” é uma novela que aplica, literariamente, os princípios acima mencionados. A apologia da ingenuidade resulta da aprendizagem na vida de um filho que regressa desencantado à casa materna, depois de uma busca enganadora da atmosfera cosmopolita. O convívio afectivo com a mãe, frequentemente num tom de lirismo confidencial, incita à recuperação da candura. O mesmo ideal é realçado no romance “Nome de Guerra”, com a vivência de um jovem provinciano no mundo citadino. O trajecto percorrido é o da descoberta pessoal, emancipada e criativa.

As vertentes delineadas na obra literária de Almada correspondem às duas características principais do seu universo estético: a sensibilidade para uma sondagem da infância como forma exemplar de aprendizagem, original e eterna; a captação humorística da sociedade, com os seus tipos e ambientes representativos.

Em vários textos doutrinários é abordada a dialéctica da existência individual e da integração social. O título “Direcção Única” sugere a via da unidade, mas esta é procurada na multiplicidade. É neste âmbito filosófico que se movimenta uma parte significativa do teatro de Almada, também enriquecido pela magia do artista plástico.

O problema da definição de uma unidade diversificada e da busca da plenitude individual representa um centro de interesse, comum aos membros do grupo do “Orpheu”, com a sua expressão mais fecunda no desdobramento de Fernando Pessoa em heterónimos. A personalidade pode assumir, deste modo, uma forma complexa de expansão de tendências divergentes. Um exemplo de tensão ao nível da análise dos sentimentos está patente no poema intitulado “Homem transportando o cadáver de uma mulher!”:

Quis-te tanto que gostei de mim!
Tu eras a que não serás sem mim!
Vivias de eu viver em ti
e mataste a vida que te dei
por não seres como eu te queria.
Eu vivia em ti o que em ti eu via.
E aquela que não será sem mim
tu viste-a como eu
e talvez para ti também
a única mulher que eu vi!

A obra de Almada Negreiros é um misto de irracionalismo (pela recuperação da infantilidade e entrega ao sonho) e lucidez (através do rigor da percepção artística e da visão irónica do mundo). Esta dualidade, combina a vocação mistificadora e a consciência crítica da realidade. Para David Mourão-Ferreira, o melhor da obra de A.N. vive precisamente da tensão entre estes dois extremos da intuição e da análise”. Recentemente falecido, Eleutério Correia de Melo, um vulto das Letras que privou com Almada, legou do artista a visão de “um ser genial, cheio de paradoxos”.

Jorge de Sena, apreciando a arte de A. N., retratou-o do seguinte modo: «uma extrema capacidade de visionarismo plástico, aliada a uma nitidez linear de estilo, que equilibra o mais saboroso coloquialismo popular com um poder de abstraccionismo geometrizante muito concorde com as orientações predominantes do seu entendimento plástico do mundo».

No polimorfismo da sua arte cruzam-se influências múltiplas: a herança familiar afroasiática; o contacto com a estética vanguardista em Paris e Madrid; o convívio artístico com Amadeo de Souza-Cardoso e Santa-Rita Pintor; a partilha do ideário futurista de Marinetti; a camaradagem com Fernando Pessoa no Modernismo do “Orpheu” e, sobretudo, o projecto pessoal de renovação constante da cultura portuguesa num sentido de universalidade.

A aventura estética de Almada Negreiros prenunciou ainda, no seu visionarismo espontâneo e intuitivo, a linha imaginativa do Surrealismo.

Ana Paula Cabrita Dias Tribuzi


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