BOLETIM   CULTURAL   E   RECREATIVO   DO   S.E.U.C.  -   J.  ESTÊVÃO


PÁGINA 1
Editorial
Alcino Carvalho
PÁGINA 2
Gaudi, o
o arquitecto do
imaginário

Claudete Albino
PÁGINA 3
Contos tradicionais portugueses
PÁGINA 4
O Ensino Recorrente e o
acesso ao ensino
superior

João Paulo C. Dias
PÁGINA 5
Dos registos
às flores

Duarte José F. Morgado
PÁGINA 6
Napoleão
não foi assassinado
Henrique J. C. Oliveira
PÁGINA 7
Sociedade Psi
Isabel Bernardino
PÁGINA 8
A aventura literária de
Almada Negreiros 

Paula Tribuzi
PÁGINA 9
A escrita da
casa
PÁGINA 10
A propósito do
Halloween
Dois contos
PÁGINA 11
Da Filosofia e
seu papel

Alcino Cartaxo
PÁGINA 12
Castanhas e
Jeropiga e
S. Martinho

Henrique J. C. Oliveira
PÁGINA 13
Hora do Recreio
HJCO
PÁGINA 14
Fac-símile da versão impressa
 

Da Filosofia e seu papel
Breve extracto de uma longa reflexão

Permitam-me que lembre algumas “dicas” sobre este território já de cabelos brancos, mas em rejuvenescimento permanente, que foram pronunciadas por celebridades:

● Platão afirmou, um dia, que “o filósofo tagarela com o bico no ar”;
● Marx dizia que “o homem vulgar pensa que não diz nada de extraordinário, quando afirma que as maçãs e as pêras existem. Ora, o filósofo, ao exprimir essa existência de forma especulativa, disse algo de extraordinário. Fez um milagre”;
● O ”filósofo, para as elites, é um comerciante de sono”, dizia Alain.
● Nietzche afirmava: ”o padre despadrado, o filósofo”;
● “A filosofia continuará a ser por muito mais tempo, ainda, um labor feminino, um bordado de solteirona estéril?”, afirmava Paul Nizan (filosofia chique);
● E Montesquieu avançava com esta: “ex-traordinário que qualquer sistema filosófico assente nestas três palavras: «estou-me nas tintas»”;
● “Poderemos resumir toda a filosofia na laboriosa procura daquilo que conhecemos de modo natural”, afirmava Paul Valéry;
● E Schopenhauer declarava: “os professores de filosofia não têm tempo para se instruir, por que se têm de dispersar por demasiadas actividades. São funcionários, fazem política, viajam. Quem quiser, de facto, aprender algo, tem de levar uma vida mais controlada”, numa imagem do filósofo como cábula.

Foram filósofos a falar do seu espaço e do seu ofício. Não sei se poderemos, hoje, adoptar a mesma linguagem e o mesmo estilo. Alguns estudos feitos sobre o estado da “nação” filosófica, no ensino secundário, revelam dados curiosos:

     ● A sua inutilidade;
     ● O seu carácter demasiado teórico e abstracto;
     ● A sua incapacidade para resolver os problemas da vida;
     ● O seu discurso vago;
     ● A sua linguagem algo hermética;
     ● A ausência de espaço para o saber e a reflexão numa
        mentalidade tecnocientífica.

Estas representações ou imagens que foram ganhando espaço nas mentalidades, transformando-se, em certo sentido, em norma institucionalizada, continuam a percorrer os nossos corredores cerebrais. Marcas do tempo, de um tempo subordinado a uma tecnologização acelerada do quotidiano humano. Não pretendemos, com isto, expulsar a técnica do universo humano. Ela veio, de alguma forma, emancipar o homem da sua subjugação às circunstâncias da natureza. No entanto, a obsessão pelo cronómetro e a tirania do imediato e do instantâneo deixam escassas alternativas para outras profundidades de pensamento e para outras ocupações do quotidiano. Hoje, estamos mergulhados numa espécie de orfandade do tempo, não obstante a nossa obsessão por ele, somos invadidos e submergidos pelos problemas da gestão do tempo. A consciência do tempo vai-se diluindo nos diferentes espaços pessoais e sociais que constituem a nossa agenda quotidiana. Urge repensar a velocidade louca dos nossos dias. É por aqui que poderá avolumar-se a “arena” dos excluídos de toda a espécie. O fazer tornou-se o ideário dos dias que passam, uma ideologia mesmo. Os projectos e as cidadanias constroem-se nas experiências que pudermos partilhar, constroem-se na consciência do tempo/dos tempos que interiorizarmos, constroem-se na consciencialização da duração, para que o instantâneo e o imediato não nos abafe.

No entanto, a palavra Filosofia abunda nos discursos feitos nas mais diversas situações e em múltiplas circunstâncias. Exemplos: filosofia da OPEP, filosofia de jogo, filosofia do orçamento, filosofia da guerra das estrelas, filosofia do projecto, filosofia de formação do governo, filosofia táctica, filosofia disto e daquilo. Este recurso ao substantivo “filosofia” poderá significar a sua sacralização como a sua banalização. Inclinamo-nos mais para a segunda hipótese.

Neste nosso tempo, em que a cultura, o saber e as emoções se transformaram numa mercadoria, num tempo marcado por um individualismo egoísta, a presença da Filosofia poderá constituir uma oportunidade para reflexões e para a construção de consciências eventualmente disponíveis para ensaios de reflexão, de interpretação e de acção. Não falamos de soluções milagrosas, mas tão só de formações e de cidadãos mais atentos à realidade que passa por aqui, cidadãos que reservem um lugar para os questionamentos e as problematizações sugeridas pelos acontecimentos. Ela poderá revelar-se benéfica para a sociedade humana, sobretudo na nossa civilização técnica, em que o indivíduo se encontra, sem defesas, à mercê das forças económicas e sociais. De passagem, diga-se que não se trata, necessariamente, de uma catástrofe de sentido. Não se trata do grau zero dos valores. Os debates e a necessidade de uma assunção de responsabilidades e de compromissos conservam, em muitos lugares da sociedade de hoje, os seus púlpitos. (...)

Alcino Cartaxo


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