1ª página

N.º 18

Junho 2006

Ver e ouvir / Ler e escrever


O processo de alunização e a crise da Escola *

Margrit Günther Noneli (professora aposentada
 desde Janeiro de 2006)

Da democratização/massificação da Escola

à heterogeneização da população escolar

 

Porque é bom parar e ouvir o que os outros têm para nos dizer, sobretudo quando, por força do nosso trabalho, somos geralmente nós a falar para que os outros nos ouçam, pensámos que seria bom trazer à escola alguém experiente, numa dupla dimensão prática e teórica e com um percurso que abrange todos os graus de ensino; alguém que nos ajudasse a encontrar um pouco de sentido neste quebra-cabeças em que se transformou a Escola, hoje.

Para que serve o saber escolar, hoje?


Manuel Matos, licenciado em Filosofia pela Universidade de Coimbra, Mestre e Doutor em Ciências de Educação, iniciou a sua actividade profissional na Escola Preparatória Fernando Caldeira, em Águeda, em 68/69. Foi professor no Liceu de Aveiro, hoje Escola Secundária José Estêvão, Director e professor na Escola do Magistério Primário de Aveiro e é, actualmente, professor na Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação na Universidade do Porto. A sua preocupação, profundamente humana, pelo "aluno" remonta aos seus primeiros anos como professor do "Ciclo", quando foi lançada a reforma Veiga Simão e com ela foram dados os primeiros passos no sentido da "democratização/massificação" da Escola.
 

 

A reforma Veiga Simão e com ela os primeiros passos no sentido da "democratização/massificação" da Escola foi precisamente o ponto de partida para a contextualização do tema anunciado: o processo de alunização e a crise da Escola, ressalvando logo no início que a crise pode ser, também ela, geradora de criatividades.

Partindo dos princípios fundadores da Escola, MM traçou uma panorâmica das grandes transformações que se têm vindo a verificar, e das tensões que elas geram entre família e escola, entre ser jovem e ser aluno, entre ideia de presente e de futuro. Referiu as estratégias pedagógicas que decorrem destas diferentes concepções de Escola e terminou com uma questão: Para que serve o saber escolar, hoje?

Neste último ponto, aquilo que pareceu gerar maior perplexidade e consequente vontade de ver mais largamente desenvolvido diz respeito às diferentes tipologias de alunos, de acordo com um estudo que está a ser realizado pela Universidade do Porto junto de diferentes escolas da cidade.

Assim, chegaram à conclusão que hoje, apenas uma pequena percentagem de jovens chega "alunizada" ao ensino secundário:

– Os que são portadores de uma herança cultural obtida no seio da família, para quem o discurso da escola está em perfeita consonância com o discurso de casa e que acreditam que a concretização das expectativas em relação ao futuro depende do sucesso escolar;

– Outros, ainda que, embora não portadores desta herança, apresentam características de determinação e vontade de aceder às oportunidades abertas pela escola, o que facilmente lhes permite identificar-se com o papel que ela lhes propõe.

Mas, por razões sócio-políticas diversas, de que resultam medidas pedagógicas e administrativas várias e referidas nos momentos iniciais da palestra, a rápida expansão do ensino obrigatório e, por extensão, do Ensino Secundário, fez e faz chegar às escolas "vagas de jovens para quem não é ainda muito claro como dar sentido ao seu trabalho".

É neste contexto que se fala de "experimentação social e estranheza escolar por parte de uma grande percentagem de alunos deste grau de ensino, alunos que não cumpriram o percurso, difuso e flutuante, de vivências de situações que se consideram indispensáveis ao trabalho de "alunização". Sendo esta "estranheza uma modalidade de relação que tende ao não reconhecimento mútuo entre o mundo do outro (que ainda não é aluno ou nunca chegará a sê-lo) e o mundo da escola".(1)

É nesta trivalência – professor/ aluno/ saber (dependendo de onde se coloca o enfoque) que se joga o papel da Escola. Esse jogo é tanto mais complexo quanto é certo que, em nome da autonomia, lhe é atribuída a responsabilidade de solucionar todo o tipo de problemas, definindo estratégias e práticas ajustadas a condicionalismos únicos e irrepetíveis. E, todavia, paradoxalmente, quanto mais elevado e "democrático" é o poder que o Estado simula conferir aos professores, mais se reserva o direito de os controlar externamente através de "rankings", exames e outros processos que parecem, afinal, desaconselhar essas mesmas práticas.

Curiosamente, num curto período de intervenções a encerrar a palestra, foi recordado que um passo essencial para o reconhecimento mútuo, concretamente do professor para o aluno (embora não fosse desaconselhável da administração para os professores) está na capacidade de não falhar nas promessas que se fazem. Na verdade, a condição necessária para que se estabeleça a cumplicidade suscitadora do desejo de conhecer e de saber, é que esta confiança não seja traída.

Em Outubro, se for possível e tal como nos foi prometido, cá estaremos para ouvir mais e, certamente, fazermo-nos ouvir mais, também.

Nota: Foi precisamente em Águeda, que conheci o Professor Manuel Matos e com ele comecei a aprender o ofício de professora. Trinta e seis anos decorridos, agradeço, de coração, à Escola e ao seu jornal o privilégio de lhe poder dedicar estas linhas e, publicamente, dizer-lhe: obrigada! n

Aveiro, Junho de 2006

Os alunos portadores de uma herança cultural obtida no seio da família, para quem o discurso da escola está em perfeita consonância com o discurso de casa, acreditam que a concretização das expectativas em relação ao futuro depende do sucesso escolar.

Outros, não portadores desta herança, apresentam características de determinação e vontade de aceder às oportunidades abertas pela escola, o que facilmente lhes permite identificar-se com o papel que ela lhes propõe.
 

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* Palestra realizada pelo Professor Doutor Manuel Matos, em 31-05-2006.
1 - in: Manuel Matos, Jornal a "Página da Educação", Ano 14, n.º 146, Junho 2005, pág. 8.
                  http://www.apagina.pt/arquivo/FichaDeAutor.asp?ID=174


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