por ALBERTO
PIMENTA
As adaptações têm uma existência longa,
um lugar quantitativa e qualitativamente importante e são, em si, um
problema constantemente aberto. Refiro-me, muito determinadamente, às
adaptações dramáticas ou para Teatro, que se realizam por processos
próprios, apartados dos processos literários usuais — porque, enquanto o
Lírico é comummente uma construção desencantada da pura imaginação
criadora, e o Épico é susceptível de construção baseada também na
imaginação criadora, o Dramático, que pela essência contém a acção pura
e pela aparência a enforma, constrói-se sobre a realidade vivida e
expressa-se em uma realidade vivida, e, em tal caso, a imaginação
criadora existe apenas como processo de ligação e de condensação ou vive
no momento das soluções simbólicas. O Dramático, que por natureza,
portanto, deve ser tomado não tanto como um género mas como um processo
determinado pela vontade activa, vem a revelar-se, por existência, um
resultado de um constante processo de adaptação. Ordenemos então essa
constante segundo três categorias:
I — Adaptações dramáticas de episódios
vividos (normalmente históricos)
II — Adaptações dramáticas de episódios
literários
III — Adaptações dramáticas de outros
dramas
Um aspecto da representação de «Jedermmann»
de Hofmannsthal, na praça da catedral de Salzburg. |
Esta classificação não deixa um lugar
para as criações puras, totais e independentes, porque, pelo que já
foi apontado, é impossível a criação dramática com tais qualidades,
entendendo-se por puro o liberto de experiências, por total o
completamente liberto de escolas e normas e por independente o
liberto de influências sociais e morais. O Teatro é a realização
artística mais sublimemente próxima da vida e da sua realidade, mas
como a vida e a sua realidade hão-de ser sempre funções da
subjectividade, da época, das escolas e dos conceitos morais, isto
é, interpretações, o Teatro tem de ser sempre uma contínua
adaptação, ou, então, propositada desadaptação, o que em si contém a
mesma atitude básica de dependência de uma realidade actual. |
Analisemos então a primeira categoria.
O Teatro clássico grego começa por ser a
mais perfeita adaptação de desenvoltura dramática das grandes lendas
(tidas como episódios vividos) onde a acção se passa entre os heróis dos
grandes ciclos. Não considerando essas lendas como episódios já em si
artísticos, pela redução simbólica, está explicado que o primeiro Teatro
europeu se constitui por adaptação de episódios vividos: os grandes
conflitos de família, os graves conflitos humanos acontecidos na vida de
este ou de aquele herói, as dissidências das cidades e o seu grande
esforço por não sucumbir são os elementos com que o autor dá o nó na
acção; a arquitectura dramática, desde a linguagem até certos
pormenores de representação, é o desenvolvimento novo de certas
atitudes hieráticas; há nobreza e estilização; expressão simbólica e
artística de factos consagrados, com a pureza de todas as coisas que
nascem; por isso mesmo, hoje, a representação desse Teatro exige aquela
alta e difícil tarefa de desaprendizagem de que se respira um paralelo
mais geral em Alberto Caeiro: é necessário, além de o aprender,
desaprender tudo /página 18/
o que de então para cá foi adaptado e dogmatizado pelo Teatro, porque
aquela nobre pureza inicial raramente reaconteceu. As adaptações
deixaram de ser simbolizações da vida vivida para a ascenção; ou
retomaram fruta já colhida, ou caíram, então, na maior parte das vezes,
naquele engendro de reprodução fictícia e artificial, talhada e
determinada por correntes que impunham ao homem e à acção o seu dogma em
vez de tirarem dele o seu ensino. Passemo-las. Do Teatro de hoje,
(convém entender que eu não identifico Teatro de hoje com
Teatro moderno, e uso a designação muito restritamente para aquele
Teatro, e bem pouco é, que satisfaz em beleza os problemas do homem de
hoje) entretanto, é impossível deixar passar em branco algumas das
construções de Brecht — o seu Teatro é afinal urna grande e simples e
sublime adaptação, adaptação e humanização actualizante de lendas, de
temas, de episódios vividos e de episódios ou nomes da história a quem
ele dá a vida mais real que as crónicas tinham esquecido. O «Processo de Luculo» é dos mais perfeitos exemplos de um tal tipo de construção,
orientada no desenvolvimento por uma imaginação activa, limpa de peles
sujas e de excrescências como só no primeiro Teatro tinha havido. Sobre
o nome verdadeiramente real de Luculo, Brecht constrói uma fábula
dramática onde certos elementos clássicos se combinam com outros da
sociedade moderna para atingir um resultado inesperadamente trágico; é
um episódio inventado, mas tão sincero e próprio, que depois de
inventado se torna vivido, e porque vivido, adaptado, e, por isso mesmo,
pela dificuldade e raridade das grandes adaptações, ainda mais belo.
Outro tipo de adaptação de episódios
vividos é aquele que se apropria de uma acção real e depois a enforma
com mais ou menos inovações imaginativas e com mais ou menos
actualidade. É o caso, por exemplo, da tragédia «Castro» de António
Ferreira: o episódio da morte de Inês e as suas consequências, já eram,
em si, dramáticos e senhores de uma acção bem dividida.
O processo de representação,
naturalmente dentro da pureza exigida, é, nestes casos, diverso:
enquanto nas adaptações construídas sobre uma acção real há a
incessável busca de concordância com o autor do texto, (porque este já
assim procedeu para a concordância geral com a acção vivida) no Teatro
adaptado ou nascido de um mero episódio sem acção ou construído sobre um
nome real, mas de dramatização aplicada ou de construção simbólica, a
representação é um edifício todo próprio, todo subjectivo, todo
independente de qualquer realidade pronta na memória do espectador.
Passemos entretanto ao segundo tipo de
adaptação dramática. — E aqui começarei pela afirmação de Nicasio
Gallego: «em literatura só é lícito o roubo acompanhado de assassínio»;
ora, dando a roubo o largo sentido de apropriação de ideias ou
formas, tinha parcial razão o sacerdote espanhol; e parcial, porque a
adaptação dramática é válida quando repleta de novo vigor, o que não
implica, de resto, a obrigação de ofuscar completamente a origem-mãe. O
Teatro medieval, adaptação de lendas e de certa doutrina dos textos
bíblicos (embora em certos casos de tradição oral) é dos primeiros
exemplos de adaptação ou dramatização de episódios evidentemente
literários, e, sem os ter ofuscado, revelou-se uma das mais válidas
expressões dramáticas; aliás, algumas das cenas do Velho e do Novo
Testamento continham um sagrado furor dramático apenas à espera do
casulo mais próprio. O problema de certos mistérios e certas histórias
morais vieram a ser encarnados e comoventemente humanizados, de uma
maneira que a nossos olhos se afigura quase atrevida, como em certos
autos franceses e ingleses ou no nosso Gil Vicente. Há uma adaptação de
género a processo e, simultaneamente, uma adaptação de conceitos pela
expressão e uma corrente de realismo imediato quase em choque com a
transcendência atribuída aos episódios glosados. As adaptações
sucedem-se, e adaptações de adaptações. Em vez do divórcio obstinado dos
autores, a pretenderem impor uma originalidade sempre duvidosa depois
de séculos de arte grande, há então quase que o trabalho conjunto dos
autores para aperfeiçoamento dos temas.
Depois deste Teatro vem o fluxo vivo das
grandes reconstruções históricas e lendárias que culmina com
Shakespeare. A altíssima invenção das suas dramatizações é o acordo e o
equilíbrio exacto entre a situação e a psicologia da personagem, e, por
outro lado, entre a preparação da nova situação e o desenvolvimento
psicológico ocultamente preparado de verso para verso. O crítico inglês Malone chegou à conclusão que de entre 6.043 versos de Shakespeare,
1.777 foram tomados integralmente de outros autores; 2.373 foram
modificados, e que só os restantes 1.899 pertenceram inteiramente a
Shakespeare. Mas qual é o interesse de assim ter sido, se esses 1.777
versos estavam dispersos por conjuntos tornados quase inúteis, e pela
mão de um homem se transformaram em desenvolvimento arrebatador? O
grande fim é criar uma realidade válida, não importa de que realidades
vividas ou expressas. Fausto tem uma certa tradição pesada, que parece /página
19/ esvair-se nas mãos de Goethe para renascer em novidade mais
densa, em verdade mais larga e eterna.
Depois, temos as doenças de certos
«ratos» que, à falta de outro tema, se entretêm pelas influências, às
vezes tão duvidosas como eles. Os dados citados de Malone ainda podem
ter alguma importância, mas qual é, por exemplo, a base para a certeza
que certos senhores têm de «Le Bourgeois Gentilhomme» de Molière ser
adaptação, senão mera cópia de «O Fidalgo Aprendiz»? Esquecem-se que
depois do Renascimento, com alguns intervalos válidos do primeiro
Romantismo, do primeiro Realismo e de algumas construções mais novas, o
Teatro, como de resto a Literatura, foi sempre uma moda, com autores e
figurinos e processos cunhados.
E, das adaptações dignas do tema-origem
chega-se às adaptações borralheiras, transplantações entre quintais
vizinhos ou enxertos em vasos de sala. De tipo flagrantemente
diferente, onde o predomínio de valor é em primeira-mão, é a adaptação
dramática de «O Diário de Anne Frank», exemplo moderno de peça em que os
adaptadores pouco mais foram que encenadores devotados a uma tragédia
já explicada e vivida. Há obras que pedem a devoção de as dramatizar,
porque contêm tudo o que é preciso, a construção genial e a essência que
as eterniza, mas pedem devoção e não amor-próprio; outras não
pedem nada a não ser o amor-próprio de não lhes tocar.
E chegamos então às discutidas
adaptações de Teatro para Teatro.
Tem sido notável e essencial para o
Teatro a permanência de certos temas, de que darei como exemplo a
personificação medieval «Todo-o-Mundo» que, desde certas formas
inglesas e flamengas, (possivelmente já com certa tradição) pelo mais
alto momento de todo o teatro português, se veio a consumar no drama de Hofmannsthal; tem sido triste a permanência de certa tragédia de intriga
e de certa comédia de costumes, que resultaram uma vez, em uma época e
por certas mãos, mas que se foram gastando de outras vezes, desadaptando
em outras épocas e murchando em outras mãos.
A adaptação só se justifica, primeiro,
quando tem necessidade de ser, segundo, quando em si vale a
pena ser — certas adaptações de Shakespeare que os norte-americanos
vêm realizando não têm necessidade de ser, porque Shakespeare
está muito perto de nós pela forma e pelo tema, e não valem em
si, porque se revelam simples subterfúgios de impotência. E certas
adaptações de certos encenadores (que também querem dedilhar os
clássicos) não são necessárias, porque nem os clássicos precisam desses
senhores, nem esses senhores passam de os arranhar.
Quando Brecht lança mão de Antígona para
a fazer reviver numa pujança de conteúdo renovado de acordo com certa
renovação da sociedade, é de estremecer perante a perenidade dum tema e
o encontro de dois homens fora das suas limitações; quando o Teatro
romano se revela o prolongamento acentuado da decadência grega é de
entristecer; quando Shakespeare, apenas por si, nos obriga a rever o
Teatro romano é de exaltar e reviver a fonte do grande rio.
Na interpretação das grandes adaptações
há-de atingir-se aquele resultado cénico de expressão simultaneamente
independente e presa por um fio a uma outra grande expressão que é
necessário ter sempre presente em segundo plano.
As adaptações, em Teatro, são uma grande
devoção e a maior e mais difícil afirmação de vigor, ou, então, a maior
monstruosidade.
Alberto
Pimenta
Balada de Annabel Lee
de Edgar Allan Poe
Há já muitos, muitos anos,
Num reino à beira do mar,
Vivia aquela donzela cuja nome era
Anabela
(De quem heis-de ouvir falar)
E que só pró nosso amor
Tinha viver e pensar.
Eu e ela inda crianças
Nesse reino ao pé do mar.
Mas era mais do que amor
O amor do nosso amar.
Amor que os anjos do céu
Nos queriam cobiçar.
Por isso que há muitos anos
Nesse reino ao pé do mar
Um vento frio gelou a minha bela
Anabela,
Donzela do meu amar.
Os nobres parentes dela
Quiseram-no sepultar
E pra longe ma levaram
Nesse reino ao pé do mar.
Que até os anjos do céu, vendo nossa
felicidade,
Nos houveram d’invejar!
E por isso o mundo sabe
Nesse reino ao pé do mar
Que à minha bela donzela, a bela, bela
Anabela,
O vento veio matar.
Maior era o nosso amor
Que dos homens os amores,
‘Té o dos mais sabedores.
Que nem os anjos do ar
Nem o demo sob o mar
A minh’alma d’alma dela, da bela, bela
Anabela,
Jamais podem apartar.
Porque a lua em seu brilhar traz-me
sonhos d’encantar
Da minha bela donzela, a bela, bela
Anabela.
E as estrelas ao nascer o olhar me fazem
ver
Da minha bela donzela, a bela, bela
Anabela.
E assim a noite inteira eu quedo e
repouso à beira
Da minha amada querida, minha noiva e
minha vida,
No sepulcro ao pé do mar,
Sua campa junto ao mar.
tradução de Alberto Pimenta
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