O problema não é novo, mas não deixou ainda de ser actual. Quando no
passado mês de Setembro, lonesco chegou a Lisboa para apresentar no III
Festival de Sintra as suas peças «la Leçon» e «les Chaises»,
interrogado pelos jornalistas sobre a mensagem da sua obra, respondeu:
— «Não tenho, em absoluto, nenhuma mensagem, ao contrário do que afirmam
outros autores. A minha «mensagem», se assim lhe quiser chamar, é criar
teatro para responder às necessidades interiores e Imperiosas de
criação. Não tenho mensagem a dar ao mundo, porque não me creio nem um
Messias, nem um grande profeta, nem um professor, nem um filósofo...
Escrevo e crio teatro por ser uma testemunha do meu tempo, que procura
ser útil aos homens, na rebusca da compreensão humana... Nada mais...»
Uma das propriedades da arte é a
gratuidade. O artista, como tal, não visa, na feitura da sua obra,
senão o acabamento do que lhe sai das mãos por um impulso independente
de toda a regulação externa. Os elementos estranhos, extrínsecos ao
processo criador, não agindo sobre a obra por meio dum hábito artístico,
mas justapondo-se a ele como forças que orientam e conduzem a produção,
tornam-se numa impureza intrusa que a genuidade da arte não tolera. É
uma dualidade que se estabelece entre a inteligência e a sensibilidade
do artista, que a boa arte sempre quer unidas.
A arte deve ser apenas arte, o que não
impede que o artista não seja apenas artista, pois este, no ser humano
em que se enraíza e do qual se alimenta, jamais pode ser um
compartimento estanque.
«La passion frénétique de
l’art — escreveu já Baudelaire — est un chancre qui dévore le reste...
La spécialisation excessive d’une
faculté aboutit au néant.»
Oconteúdo da obra literária, a coisa
artística, porém, não é em si mesma um estorvo ou uma impureza que seja
necessário eliminar. A arte não existe para mais nada além dela
própria, mas jamais pode existir sobre o nada.
Contra um esteticismo idealista, tão
cultivado, por exemplo, pelos simbolistas ou pelos parnasianos,
admite-se hoje como que um «desprezo pela beleza». Esta, sem deixar de
ter o seu valor próprio, foi ultrapassada, mas não suprimida, por uma
outra aspiração que, quando realizada validamente, dá à forma artística
uma profundidade enriquecedora, penetrando o valor estético da obra com
um poder comunicativo amplamente humano. Desta sorte, o pensamento
atinge um matiz e um calor que, por natureza, não tem, e a arte é
envolta por um frémito de vida que alarga indefinidamente a sua órbita.
Nem para isto é preciso que a literatura
se comprometa, como o exige o Sartre de «Les Temps Modernes», postulando
que o escritor tome, como tal, uma posição definida nos casos actuais e
por eles milite. Para ele é intolerável a indiferença de Balzac frente
às jornadas revolucionárias de 1848 e a incompreensão timorata de
Flaubert ante a Comuna. «Que o escritor não falte em nada ao seu tempo.»
O escritor já não é o artista que recria o mundo, mas o soldado que
defende uma posição. As palavras deixam de ser sinais; passam a ser
coisas.
Por sua vez, Julien Benda, — o autor de
«La trahison des clercs», onde propugna também uma «literatura de
compromisso», (mas diferente do sartreano, que exige que a obra se
empenhe toda no presente), pelo qual os escritores defendam os valores
eternos e desinteressados.— Liberdade, Justiça, Razão... — e não os
atraiçoem em proveito de interesses práticos — adverte que este militar
pelo presente faz surgir uma nova apreciação das obras do espírito.
«Assim — /página 16/
escreve ele — uma obra admirável no ponto de vista da psicologia
experimental ou do direito romano, a qual evidentemente não compromete o
seu autor na luta da hora que passa, merecerá escassa admiração,
enquanto que outra, desprovida de verdadeiras ideias eternas, toda ela
carecida de arte mas na qual o autor clama violentamente o seu
partidarismo, será tratada como urna criação de alto valor.»
Por reacção contra estas preocupações de
ordem «utilitária», exige-se pois, não a extinção da matéria artística,
mas a eliminação de toda a finalidade interessada. Esta gratuidade da
arte como tal, pode, no entanto, coexistir na alma do artista com toda a
sua exuberância humana, todas as suas intenções subconscientes, suas
adorações íntimas e seus secretos amores, que se podem repercutir na
obra sem que esta deixe de sair espontaneamente para ser amarfanhada ou
conduzida.
Qualquer obra de arte brota de profundas
regiões desconhecidas e nem sempre o seu autor tem consciência das
forças que a fazem desenvolver e evoluir, embora, como nota W. Kaiser,
também por vezes o processo genético se realize à clara luz da
observação e com o olhar fixo num ponto ideal. Mais do que determinar,
a consciência acompanha a obra, e o influxo da Vontade exerce-se mais
sobre o aperfeiçoamento da produção («ajustamento das partes ao todo e
dos pormenores ao central») do que sobre a existência das
características fundamentais.
Por isso com razão pôde
escrever Valéry: — «J’estime qu’une oeuvre, une fois publiée, l’auteur
n’a plus d’autorité que qui que ce soit entre ses lecteurs pour
interpréter ce qu’il a écrit».
Por esta arracionalidade, por este
fatalismo da obra de arte, porque esta raramente parte do abstracto, nem
sempre ao processo criador presidirá uma ideia que venha dar unidade às
diversas partes do todo ou que ponha um dado problema existencial e o
equacione na sua satisfatória resolução final.
Por outro lado, esta mesma
involuntariedade confere à obra produzida o poder duma comunicação e o
valor duma sinceridade de que não se pode duvidar infundadamente. E
assim, pela obra do artista transvasa a vida (sua ou alheia) do homem
concreto. «A literatura, além do que ela pode ser por acréscimo, não é
outra coisa senão esta vida que toma consciência de si mesma quando na
alma de um homem de génio alcança sua plenitude de expressão. A suposta
oposição ou contradição entre a vida e a literatura não se apoia sobre
nada e é, com toda a força do epíteto, absurda. Não só é absurda, —
continua Charles du Bos em «Qu’est-ce que la littérature?» — senão que a
verdade é precisamente o contrário. A vida e a literatura estão unidas
entre si; elas são interdependentes, cada uma tem necessidade da outra
ao ponto de não poder passar sem ela. Sem a vida, a literatura careceria
de sentido; mas sem a literatura, que seria da vida — a vida
considerada, agora, como um todo, como distinta do processo por que se
formam as almas, a vida do indivíduo?»
Nesta ordem de ideias, Du Bos pôde
definir a literatura como o encontro de duas almas. A leitura, segundo
ele, era uma segunda criação artística e a crítica autêntica só era
possível numa sintonia espiritual pela qual o escritor fosse apreciado
em si mesmo e não pelo critério exclusivo dum padrão único, seja ele de
gosto privado ou de reconhecimento universal.
Em síntese luminosa, quase no
fim da sua extensa obra «Une Histoire vivante de la Littérature
d’Aujourd’hui», Píerre Boisdeffre afirma que «si la littérature est la
conscience de la vie, la critique est la conscience de la littérature.
Elle ne saurait donc se borner à constater et à classer, elIe joue le
rôle d’un phare et quelquefois celui d’un moteur.»
Ora esta missão jamais a crítica a
realizará se, além da análise técnica estético-estilística, não atender
também ao conteúdo humano da obra literária, pelo qual o artista é não
só artífice, mas criador.
Mário da Rocha |