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Artes - Letras - Ciências
Suplemento do n.º 266 do "Litoral"
Novembro de 1959, Ano I, n.º 3
págs. 15 e 16

 


O problema não é novo, mas não deixou ainda de ser actual. Quando no passado mês de Setembro, lonesco chegou a Lisboa para apresentar no III Festival de Sintra as suas peças «la Leçon» e «les Chaises», inter­rogado pelos jornalistas sobre a mensagem da sua obra, respondeu: — «Não tenho, em absoluto, nenhuma mensagem, ao contrário do que afirmam outros autores. A minha «mensa­gem», se assim lhe quiser chamar, é criar teatro para responder às necessidades interiores e Im­periosas de criação. Não tenho mensagem a dar ao mundo, porque não me creio nem um Mes­sias, nem um grande profeta, nem um professor, nem um filósofo... Escrevo e crio teatro por ser uma testemunha do meu tempo, que procura ser útil aos homens, na rebusca da compreensão humana... Nada mais...»

Uma das propriedades da arte é a gratui­dade. O artista, como tal, não visa, na feitura da sua obra, senão o acabamento do que lhe sai das mãos por um impulso independente de toda a regulação externa. Os elementos estranhos, extrínsecos ao processo criador, não agindo sobre a obra por meio dum hábito artístico, mas justapondo-se a ele como forças que orientam e conduzem a produção, tornam-se numa impu­reza intrusa que a genuidade da arte não tolera. É uma dualidade que se estabelece entre a inte­ligência e a sensibilidade do artista, que a boa arte sempre quer unidas.

A arte deve ser apenas arte, o que não im­pede que o artista não seja apenas artista, pois este, no ser humano em que se enraíza e do qual se alimenta, jamais pode ser um compar­timento estanque. «La passion frénétique de l’art — escreveu já Baudelaire — est un chancre qui dévore le reste... La spécialisation excessive d’une faculté aboutit au néant.»

 Oconteúdo da obra literária, a coisa artís­tica, porém, não é em si mesma um estorvo ou uma impureza que seja necessário eliminar. A arte não existe para mais nada além dela pró­pria, mas jamais pode existir sobre o nada.

Contra um esteticismo idealista, tão cul­tivado, por exemplo, pelos simbolistas ou pelos parnasianos, admite-se hoje como que um «desprezo pela beleza». Esta, sem deixar de ter o seu valor próprio, foi ultrapassada, mas não suprimida, por uma outra aspiração que, quando realizada validamente, dá à for­ma artística uma profundidade enriquecedora, penetrando o valor estético da obra com um poder comunicativo amplamente humano. Desta sorte, o pensamento atinge um matiz e um calor que, por natureza, não tem, e a arte é envolta por um frémito de vida que alarga indefinidamente a sua órbita.

Nem para isto é preciso que a literatura se comprometa, como o exige o Sartre de «Les Temps Modernes», postulando que o escritor tome, como tal, uma posição definida nos casos actuais e por eles milite. Para ele é intolerável a indiferença de Balzac frente às jornadas revolucionárias de 1848 e a in­compreensão timorata de Flaubert ante a Comuna. «Que o escritor não falte em nada ao seu tempo.» O escritor já não é o artista que recria o mundo, mas o soldado que de­fende uma posição. As palavras deixam de ser sinais; passam a ser coisas.

Por sua vez, Julien Benda, — o autor de «La trahison des clercs», onde propugna também uma «literatura de compromisso», (mas diferente do sartreano, que exige que a obra se empenhe toda no presente), pelo qual os escritores defendam os valores eternos e desinteressados.— Li­berdade, Justiça, Razão... — e não os atraiçoem em proveito de interesses práticos — adverte que este militar pelo presente faz surgir uma nova apreciação das obras do espírito. «Assim — /página 16/ escreve ele — uma obra admirável no ponto de vista da psicologia experimental ou do direito romano, a qual evidentemente não compromete o seu autor na luta da hora que passa, merecerá escassa admiração, enquanto que outra, despro­vida de verdadeiras ideias eternas, toda ela care­cida de arte mas na qual o autor clama violen­tamente o seu partidarismo, será tratada como urna criação de alto valor.»

Por reacção contra estas preocupações de ordem «utilitária», exige-se pois, não a extinção da matéria artística, mas a eliminação de toda a finalidade interessada. Esta gratuidade da arte como tal, pode, no entanto, coexistir na alma do artista com toda a sua exuberância humana, todas as suas intenções subconscientes, suas adorações íntimas e seus secretos amores, que se podem repercutir na obra sem que esta deixe de sair espontaneamente para ser amarfanhada ou conduzida.

Qualquer obra de arte brota de profundas regiões desconhecidas e nem sempre o seu autor tem consciência das forças que a fazem desenvolver e evoluir, embora, como nota W. Kaiser, também por vezes o processo genético se realize à clara luz da observação e com o olhar fixo num ponto ideal. Mais do que deter­minar, a consciência acompanha a obra, e o influxo da Vontade exerce-se mais sobre o aperfeiçoamento da produção («ajustamento das partes ao todo e dos pormenores ao central») do que sobre a existência das características fundamentais. Por isso com razão pôde escrever Valéry: — «J’estime qu’une oeuvre, une fois publiée, l’auteur n’a plus d’autorité que qui que ce soit entre ses lecteurs pour in­terpréter ce qu’il a écrit».

Por esta arracionalidade, por este fatalismo da obra de arte, porque esta raramente parte do abstracto, nem sempre ao pro­cesso criador presidirá uma ideia que venha dar unidade às diver­sas partes do todo ou que ponha um dado problema existencial e o equacione na sua satisfatória reso­lução final.

Por outro lado, esta mesma involunta­riedade confere à obra produzida o poder duma comunicação e o valor duma since­ridade de que não se pode duvidar infun­dadamente. E assim, pela obra do artista transvasa a vida (sua ou alheia) do homem concreto. «A literatura, além do que ela pode ser por acréscimo, não é outra coisa senão esta vida que toma consciência de si mesma quando na alma de um homem de génio al­cança sua plenitude de expressão. A suposta oposição ou contradição entre a vida e a lite­ratura não se apoia sobre nada e é, com toda a força do epíteto, absurda. Não só é absur­da, — continua Charles du Bos em «Qu’est-ce que la littérature?» — senão que a verdade é precisamente o contrário. A vida e a literatura estão unidas entre si; elas são interdependen­tes, cada uma tem necessidade da outra ao ponto de não poder passar sem ela. Sem a vida, a literatura careceria de sentido; mas sem a literatura, que seria da vida — a vida considerada, agora, como um todo, como dis­tinta do processo por que se formam as al­mas, a vida do indivíduo?»

Nesta ordem de ideias, Du Bos pôde definir a literatura como o encontro de duas almas. A leitura, segundo ele, era uma segun­da criação artística e a crítica autêntica só era possível numa sintonia espiritual pela qual o escritor fosse apreciado em si mesmo e não pelo critério exclusivo dum padrão único, seja ele de gosto privado ou de reco­nhecimento universal.

Em síntese luminosa, quase no fim da sua extensa obra «Une Histoire vivante de la Littérature d’Aujourd’hui», Píerre Boisdeffre afirma que «si la littérature est la conscience de la vie, la critique est la conscience de la littérature. Elle ne saurait donc se borner à constater et à classer, elIe joue le rôle d’un phare et quelquefois celui d’un moteur.» Ora esta missão jamais a crítica a realizará se, além da análise técnica estético-estilística, não atender também ao conteúdo humano da obra literária, pelo qual o artista é não só artífice, mas criador.

Mário  da Rocha

 

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