Da obra de Joaquim Lagoeiro, somente conhecíamos «Viúvas de Vivos» —
romance que, multo embora patenteando animadoras virtudes, pecava pela
ausência duma estrutura narrativa capaz de responder fortemente à
coragem da tese, ao paradoxo do título, em suma: às ambições reveladas.
«Mosca na Vidraça», porém, é um livro perfeitamente adulto,
garantindo-nos que o autor já se pode realizar com uma sinceridade que
não venha adulterada por incipiências técnicas. Lançando mão dum naipe
vocabular extremamente simples e detendo-se nos pormenores apenas um
instante — mas com fotográfica exactidão — Lagoeiro continua a
entremostrar as influências que terá recebido dos titãs da moderna
literatura norte-americana e dos nossos neo-realistas mais válidos; o
seu processo, apesar disso, desenrola-se maduramente, seguramente, em
função de constantes muito pessoais e marcadas. Ocorre-nos, por
exemplo, a importância concedida ao factor «sexo», limitando o
comportamento das personagens de maneira a propiciar, aqui e ali,
situações tão lógicas intrinsecamente quanto imprevistas na aparência;
e a criação de tipos que, em vez de reais no plano individual, o são por
reduzirem proporções de classe a uma rápida e violenta caricatura
singular. O futebolista Ernesto e o seleccionador Cabrita Redondo não
existirão de facto — mas aglutinam todo um descalabro ético e toda uma
inversão social que determinado meio possibilita ou gera.
Noutro pólo de concepção, ainda que
também cumprindo uma relativa ideia de simbolismo, ergue-se a figura
magistralmente traçada de Dona Generosa — que chegaria, sozinha, para
abonar um sereno talento de ficcionista. A partir duma comezinha e
descolorida mulher, igual a tantas que o dia-a-dia nos oferece
despiciendamente, seria problemática a obtenção dum vulto que
impressionasse pela naturalidade e, ao mesmo tempo, exprimisse
fluentemente o jogo temático proposto. Joaquim Lagoeiro saiu-se bem da
tarefa e, assim, conseguiu uma robusta percentagem daquilo que
pretendia: localizar na cidade fervilhante um espectador desavisado
(Amadeu Gorjão) e submetê-lo, com gradual dramatismo, ao contacto duma
verdade que é toda significativa de malogro, de renúncia, de
isolamento, de sarcasmo, de impotência, de raiva.
No termo de vários apontamentos
habilmente encadeados, que pouco a pouco dessoram a esperança do herói,
a queda de D. Generosa parece destinada a funcionar como típico remate.
Mas não. Reagindo como as grandes comunidades perante um cataclismo
iminente, o Gorjão mobiliza todo o seu potencial de jovens anseios e
procura sobreviver: Ainda estou novo, tenho tempo de recomeçar. Por que
não hei-de sacudir esta coisa que arrasto e me embaraça? Por que não
hei-de sacudir de mim a Ermelinda? Neste propósito de enjeitar
definitivamente a noiva convencional, representação última dum passado
vazio de autenticidade, colhe-se a resultante do conflito medular — e a
silhueta psicológica do protagonista, momentaneamente esvaída, aparece
refeita, sazonada, pronta para uma decisão liberta de atavismos. Há,
logo a seguir, um bosquejo de ressaca, uma saudade ingénua da Ermelinda
«boa rapariga». Amadeu, todavia, espoliado da antiga fé, vai-se
radicando com progressiva intensidade numa posição moral onde caiba o
seu amor irregular mas coerente, pecaminoso mas perdoável; e verte o seu
ódio sobre um estado de coisas aniquilante: Ambos à margem da
sociedade, mas por culpa desta. Quem nos atirará a primeira pedra?
Afinal, tudo se resolve — ou, mais
adequadamente, se dissolve — num clima de fatalismo nitidamente caro a
Lagoeiro: D. Generosa regressa a casa e o Gorjão volta a subir as
escadas da repartição, «como na véspera». São estas as palavras finais
de «Mosca na Vidraça» e, claramente, a síntese dum romance que há-de
chamar a atenção do público e da critica para a personalidade criadora
de J. L. — personalidade muito espontânea, muito aberta, muito firme,
que a adesão a certas formas literárias actualmente generalizadas não
diluiu nem perverteu. Poder-lhe-íamos apontar — e com alguma justiça —
diversas afinidades com a rude maneira de Caldwell, ou com o estilo
preciso de Steinbeck; preferimos dizer, porém, que se trata dum vigoroso
e lúcido escritor português, votado a problemas que, pertencendo à sua
terra, não raras vezes acusam uma procedência cósmica.
Jorge Mendes Leal |