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Artes - Letras - Ciências
Suplemento do n.º 266 do "Litoral"
Novembro de 1959, Ano I, n.º 3
pág. 14

 

mosca  na  vidraça

ROMANCE DE JOAQUIM LAGOEIRO


crítica

de

 JORGE MENDES LEAL


Da obra de Joaquim Lagoeiro, somente conhecíamos «Viúvas de Vivos» — romance que, multo embora patenteando animadoras virtudes, pecava pela ausência duma estrutura nar­rativa capaz de responder fortemente à coragem da tese, ao paradoxo do título, em suma: às ambições reveladas. «Mosca na Vidraça», porém, é um livro perfeitamente adulto, garan­tindo-nos que o autor já se pode realizar com uma sinceridade que não venha adulterada por incipiências técnicas. Lançando mão dum naipe vocabular extremamente simples e detendo-se nos pormenores apenas um instante — mas com fotográfica exactidão — Lagoeiro continua a entremostrar as influências que terá recebido dos titãs da moderna literatura norte-ameri­cana e dos nossos neo-realistas mais válidos; o seu processo, apesar disso, desenrola-se maduramente, seguramente, em fun­ção de constantes muito pessoais e marcadas. Ocorre-nos, por exemplo, a importância concedida ao factor «sexo», limitando o comportamento das personagens de maneira a propiciar, aqui e ali, situações tão lógicas in­trinsecamente quanto imprevistas na aparência; e a criação de tipos que, em vez de reais no plano individual, o são por reduzirem proporções de classe a uma rápida e violenta caricatura singular. O futebolista Ernesto e o seleccionador Cabrita Redondo não existirão de facto — mas aglutinam todo um descalabro ético e toda uma inversão social que determinado meio possibilita ou gera.

Noutro pólo de concepção, ainda que também cumprindo uma relativa ideia de simbo­lismo, ergue-se a figura magistralmente traçada de Dona Generosa — que chegaria, sozinha, para abonar um sereno talento de ficcionista. A partir duma comezinha e descolorida mulher, igual a tantas que o dia-a-dia nos oferece despiciendamente, seria problemática a obtenção dum vulto que impressionasse pela naturalidade e, ao mesmo tempo, exprimisse fluentemente o jogo temá­tico proposto. Joaquim Lagoeiro saiu-se bem da tarefa e, assim, conseguiu uma robusta percen­tagem daquilo que pretendia: localizar na cidade fervilhante um espectador desavisado (Amadeu Gorjão) e submetê-lo, com gradual dramatismo, ao contacto duma verdade que é toda signifi­cativa de malogro, de renúncia, de isolamento, de sarcasmo, de impotência, de raiva.

No termo de vários apontamentos habilmente encadeados, que pouco a pouco dessoram a esperança do herói, a queda de D. Generosa parece destinada a funcionar como típico remate. Mas não. Reagindo como as grandes comunidades perante um cataclismo iminente, o Gorjão mobiliza todo o seu potencial de jovens anseios e procura sobreviver: Ainda estou novo, tenho tempo de recomeçar. Por que não hei-de sacudir esta coisa que arrasto e me embaraça? Por que não hei-de sacudir de mim a Ermelinda? Neste propósito de enjeitar definitivamente a noiva convencional, representação última dum passado vazio de autenticidade, colhe-se a resultante do conflito medular — e a silhueta psicológica do protagonista, momentaneamente esvaída, aparece refeita, sazonada, pronta para uma decisão liberta de atavismos. Há, logo a seguir, um bosquejo de ressaca, uma saudade ingénua da Ermelinda «boa rapariga». Amadeu, todavia, espoliado da antiga fé, vai-se radicando com progressiva intensidade numa posição moral onde caiba o seu amor irregular mas coerente, pecaminoso mas perdoável; e verte o seu ódio sobre um estado de coisas aniquilante: Ambos à margem da sociedade, mas por culpa desta. Quem nos atirará a primeira pedra?

Afinal, tudo se resolve — ou, mais adequadamente, se dissolve — num clima de fatalismo nitidamente caro a Lagoeiro: D. Generosa regressa a casa e o Gorjão volta a subir as escadas da repartição, «como na véspera». São estas as palavras finais de «Mosca na Vidraça» e, claramente, a síntese dum romance que há-de chamar a atenção do público e da critica para a personalidade criadora de J. L. — personalidade muito espontânea, muito aberta, muito firme, que a adesão a certas formas literárias actualmente gene­ralizadas não diluiu nem perverteu. Poder-lhe-íamos apontar — e com alguma justiça — diversas afinidades com a rude maneira de Caldwell, ou com o estilo preciso de Steinbeck; preferimos dizer, porém, que se trata dum vigoroso e lúcido escritor português, votado a problemas que, pertencendo à sua terra, não raras vezes acusam uma procedência cósmica.

Jorge Mendes Leal

 

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