DE léguas e léguas em redondo, por
prazos e coutadas longínquos — até de terrinhas de Cristo, para termos
do Paço de Pelariga! — acudiu gente de muitos naipes, dá-lhe que dá-lhe,
sacola de farnel ao ombro e mai’la manta de lã churra, que aqui ou além
sempre seria de boa lei arrear o cadáver a uma sombra, sobre fofice de
musgo, para descansar e passar pelo sono. Desde o alfageme ao
fundibulário de mesnada do senhor feudal, desde o pegureiro ao pária do
arado — tudo acorria em chusma, não fosse passar o acontecimento
extraordinário sem o testemunho de cada qual de per si, em corpo e
alma, quando mais não fosse, como título de honra da respectiva prole,
ao rodar dos tempos.
Coisa de tomo, em boa verdade! Obra que
viria a consagrar, séculos em fora, a munificência e o espírito de
iniciativa de mais um ínclito varão da Igreja.
Ao centro da praça episcopal cavara-se
profundo fosso, circundado, à distância de braça, por montão de burgau,
o qual, à evidência, se destinava a repletar a bocarra, na ocasião
necessária. Estendido longitudinalmente no terreno, de sopé ao fosso,
um longo e pesado obelisco em granito lavrado. Seria atestado de pedra,
para os vindouros, a somar a tantos outros, das realizações e prodígios
da piedade cristã.
Em derredor, pás, picaretas e pilões
acolitavam sólidos garibaldes erguidos, dos quais pendia grosso
cordame, firmado em roldanas. No momento da acção, seria espectáculo
extraordinário toda a complicada engrenagem em ordem de marcha, no fito
de erigir o obelisco ao centro da praça.
Os que chegavam para assistir ao
acontecimento histórico, acadinavam-se da melhor maneira, a termos de
não perderem o mínimo pormenor dos trabalhos. Enquanto multidão de
obreiros, em vaivém contínuo, tratava de aprestos e diligências, não
fosse à hora precisa do içamento, surgir percalço de maior. Este e mais
aquele dos assistentes, exorbitando da plateia, achegava-se, a passos
mesurados, da mole de granito. Mirava, tornava a mirar, em tímida
inspecção, formava seu juízo, e regressava ao lugar.
Na varanda central do paço, repoltreado
em coxim de damasco, sua excelência reverendíssima o bispo, rodeado
pelo clero em peso da diocese, presidia à cerimónia.
Em dada altura, porém, principiou de
circular zunzum inquietante quanto ao êxito da empresa: Que a mole a
erguer era pesadíssima, que os guinchos eram relativamente frágeis, e
que as cordas, apesar de fortes, não eram numerosas quanto bonda. Um ror
de prevenções! E que, à multidão que por ali quedava, a dar-se um
malogro, logo redondava em catástrofe, já que o obelisco não deixaria de
esmagar os desgraçadinhos que lhe ficassem no endireito...
Ora o bispo era pessoa de refinada
presunção, muito fiado de si mesmo como senhor de largos méritos de
sabedoria e métodos de organização infalíveis. Pelo que não lhe sofria o
ânimo que o mais pintado criticasse ou pusesse em dúvida o resultado de
projectos ou alvitres da sua lavra. /página
21/ Sabedor da atoarda, enfureceu-se sinceramente, ordenando à
roda-forte que os trabalhos continuassem. Entretanto expediu arautos a
apregoar ao arraial, alto e bom som: Ai de quem continuasse a propalar
boatos! Ai de quem, ao içar do obelisco, desse pio sequer, ou deslocasse
pé do lugar onde estava! Ai dele! Soubessem todos! Era imediatamente
enforcado, sem apelo nem remissão, num dos guinchos erguidos! Ai de quem
!!!
Recado entregue, principiou a lida.
As cordas já trepidavam, gemiam
roldanas. Homens de torso nu, em chusma, às manivelas, suavam e
tressuavam, os músculos retesados no esforço magnífico, as máscaras com
esgares terríveis, a denotar a pena da fadiga. Polegada a polegada e
minuto a minuto, lá ia deslizando a pirâmide no endireito do ponto
necessário. Até que, fincada que ficou no fosso a base do monumento, se
iniciou a segunda fase da tarefa, agora bastante mais árdua. Tratava-se
de alcandorar a haste formidável à necessária posição, coisa que exigia
mais esforço dos obreiros, e oferecia multo mais risco.
A pouco e pouco, todavia, o obelisco
desquitava-se do solo na parte superior, alargando cada vez mais o
ângulo agudo que formava, em relação ao terreno. Em dada ocasião, foi
preciso substituir o pessoal das manivelas, o qual, de exausto, já não
rendia proveito, em conjuntura de tanta monta.
Braços novos em acção, a azáfama
continuou.
Já ia a coluna em meia altura.
Fixavam-na todos os olhos, timoratos, e as cordas, e as corretãs, entre
cicios de orações. Quanto aos trabalhadores, incitavam-nos com «Vá!...»
e «Upa!...», para que dessem o rendimento máximo.
Nisto, com estremecimento inopinado,
estala um fio de qualquer das cordas mestras. E o princípio da
tragédia...
Apertam-se os corações. Uma angústia
surda contamina as almas, na expectativa da grande desgraça que irá
desenrolar-se. Ao mesmo tempo que o bispo, simulando completa
serenidade, lança ao imenso rebanho humano um olhar feroz, como
confirmação das recomendações feitas. Ninguém portanto arreda pé, e o
trabalho prossegue. Todos sabem que o prelado é homem de uma só palavra;
e à certeza de morrerem enforcados, preferem a incerteza de morrerem ou
verem morrer esmagados.
Já, porém, segunda corda dá de si, a
tornar a situação particularmente crítica. Um silêncio aflitivo flutua,
pesado como chumbo. Verdadeira angústia de fim do mundo, nos corações e
nas almas.
Eis senão quando, do meio do
confrangimento e do silêncio geral, como se fosse num ermo, rompe o
brado de:
— Água às cordas!!!...
A tal voz, o bispo, num acesso de ira,
ergue-se do coxim adamascado, como que impelido por mola, batendo murro
fortíssimo no parapeito da varanda. Face voltada à banda de onde brotara
a fala do mísero que decidira morrer, os olhos chamejavam-lhe, tal qual
tições ao bafo de forja. No meio da aflição geral, até parecia antegozar
a volúpia da sua vingança.
Então para cúmulo, os trabalhadores,
ouvindo o aviso, detiveram-se na faina. E enquanto uns, munidos de
escoras, aliviavam as cordas do peso do obelisco, na posição já
adquirida, garimpavam outros por escadas, a despejar baldes de água nas
espias, ao máximo distendidas.
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Foi a salvação! Revigorado assim o
cordame, o melindroso trabalho acabou por ser levado a bom termo. Uma
aleluia de contentamento perpassou então de cada qual para cada qual,
comunicativa como fluido de vinho generoso.
Vai senão quando... o que se vê?! Eram
outra vez os parlamentários do bispo, com mensagem à multidão. Agora,
traziam a incumbência de procurar o autor da tal voz e levá-lo à
presença de sua reverendíssima, para receber avultada recompensa —
asseveravam.
Fura que fura, indaga que não indaga, a
diligência era baldada. Ninguém se acusava!
Havia entre o povo um labrego qualquer,
de aspecto soez e modos grosseiros. Cara larga, olhos injectados, dentes
como enxadas, com um gorro afunilado de pele de carneiro e samarra do
mesmo naipe — pastor, com certeza — principiou de dar mostras de
intranquilidade. Os emissários a aproximar-se, e o sujeito, empurrão à
direita e à esquerda, em cata de frincha por onde se esgueirar. Ofegava!
Quando enfim se pilhou em campo aberto,
acelerou a fundo...
Corria que se partia!... Parecia gamo
perseguido por leões...
S. Tiago de Riba-UI • Novembro de 1959 |