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Artes - Letras - Ciências
Suplemento do n.º 266 do "Litoral"
Novembro de 1959, Ano I, n.º 3
págs. 20 e 21

 

INSURREIÇÃO

 conto

 de

 João da Silva Correia

 ilustrações

 de

 VIC

DE léguas e léguas em redondo, por prazos e coutadas longínquos — até de terrinhas de Cristo, para termos do Paço de Pelariga! — acudiu gente de muitos naipes, dá-lhe que dá-lhe, sacola de farnel ao ombro e mai’la manta de lã churra, que aqui ou além sempre seria de boa lei arrear o cadáver a uma sombra, sobre fofice de musgo, para descansar e passar pelo sono. Desde o alfageme ao fundibulário de mesnada do senhor feudal, desde o pegureiro ao pária do arado — tudo acorria em chusma, não fosse passar o acontecimento extraordinário sem o testemunho de cada qual de per si, em corpo e alma, quando mais não fosse, como título de honra da respectiva prole, ao rodar dos tempos.

Coisa de tomo, em boa verdade! Obra que viria a consagrar, séculos em fora, a munificência e o espírito de iniciativa de mais um ínclito varão da Igreja.

Ao centro da praça episcopal cavara-se profundo fosso, circundado, à distância de braça, por montão de burgau, o qual, à evidência, se destinava a repletar a bocarra, na ocasião necessária. Estendido longitudinalmente no terreno, de sopé ao fosso, um longo e pesado obelisco em granito lavrado. Seria atestado de pedra, para os vindouros, a somar a tantos outros, das realizações e prodígios da piedade cristã.

Em derredor, pás, picaretas e pilões acolitavam sólidos garibaldes erguidos, dos quais pendia grosso cordame, firmado em roldanas. No momento da acção, seria espectáculo extraordinário toda a complicada engrenagem em ordem de marcha, no fito de erigir o obelisco ao centro da praça.

Os que chegavam para assistir ao acontecimento histórico, acadinavam-se da melhor maneira, a termos de não perderem o mínimo pormenor dos trabalhos. Enquanto multidão de obreiros, em vaivém contínuo, tratava de aprestos e diligências, não fosse à hora precisa do içamento, surgir percalço de maior. Este e mais aquele dos assistentes, exorbitando da plateia, achegava-se, a passos mesurados, da mole de granito. Mirava, tornava a mirar, em tímida inspecção, formava seu juízo, e regressava ao lugar.

Na varanda central do paço, repoltreado em coxim de damasco, sua excelência reverendíssima o bispo, rodeado pelo clero em peso da diocese, presidia à cerimónia.

Em dada altura, porém, principiou de circular zunzum inquietante quanto ao êxito da empresa: Que a mole a erguer era pesadíssima, que os guinchos eram relativamente frágeis, e que as cordas, apesar de fortes, não eram numerosas quanto bonda. Um ror de prevenções! E que, à multidão que por ali quedava, a dar-se um malogro, logo redondava em catástrofe, já que o obelisco não deixaria de esmagar os desgraçadinhos que lhe ficassem no endireito...

Ora o bispo era pessoa de refinada presunção, muito fiado de si mesmo como senhor de largos méritos de sabedoria e métodos de organização infalíveis. Pelo que não lhe sofria o ânimo que o mais pintado criticasse ou pusesse em dúvida o resultado de projectos ou alvitres da sua lavra. /página 21/ Sabedor da atoarda, enfureceu-se sinceramente, ordenando à roda-forte que os trabalhos continuassem. Entretanto expediu arautos a apregoar ao arraial, alto e bom som: Ai de quem continuasse a propalar boatos! Ai de quem, ao içar do obelisco, desse pio sequer, ou deslocasse pé do lugar onde estava! Ai dele! Soubessem todos! Era imediatamente enforcado, sem apelo nem remissão, num dos guinchos erguidos! Ai de quem !!!

Recado entregue, principiou a lida.

As cordas já trepidavam, gemiam roldanas. Homens de torso nu, em chusma, às manivelas, suavam e tressuavam, os músculos retesados no esforço magnífico, as máscaras com esgares terríveis, a denotar a pena da fadiga. Polegada a polegada e minuto a minuto, lá ia deslizando a pirâmide no endireito do ponto necessário. Até que, fincada que ficou no fosso a base do monumento, se iniciou a segunda fase da tarefa, agora bastante mais árdua. Tratava-se de alcandorar a haste formidável à necessária posição, coisa que exigia mais esforço dos obreiros, e oferecia multo mais risco.

A pouco e pouco, todavia, o obelisco desquitava-se do solo na parte superior, alargando cada vez mais o ângulo agudo que formava, em relação ao terreno. Em dada ocasião, foi preciso substituir o pessoal das manivelas, o qual, de exausto, já não rendia proveito, em conjuntura de tanta monta.

Braços novos em acção, a azáfama continuou.

Já ia a coluna em meia altura. Fixavam-na todos os olhos, timoratos, e as cordas, e as corretãs, entre cicios de orações. Quanto aos trabalhadores, incitavam-nos com «Vá!...» e «Upa!...», para que dessem o rendimento máximo.

Nisto, com estremecimento inopinado, estala um fio de qualquer das cordas mestras. E o princípio da tragédia...

Apertam-se os corações. Uma angústia surda contamina as almas, na expectativa da grande desgraça que irá desenrolar-se. Ao mesmo tempo que o bispo, simulando completa serenidade, lança ao imenso rebanho humano um olhar feroz, como confirmação das recomendações feitas. Ninguém portanto arreda pé, e o trabalho prossegue. Todos sabem que o prelado é homem de uma só palavra; e à certeza de morrerem enforcados, preferem a incerteza de morrerem ou verem morrer esmagados.

Já, porém, segunda corda dá de si, a tornar a situação particularmente crítica. Um silêncio aflitivo flutua, pesado como chumbo. Verdadeira angústia de fim do mundo, nos corações e nas almas.

Eis senão quando, do meio do confrangimento e do silêncio geral, como se fosse num ermo, rompe o brado de:

— Água às cordas!!!...

A tal voz, o bispo, num acesso de ira, ergue-se do coxim adamascado, como que impelido por mola, batendo murro fortíssimo no parapeito da varanda. Face voltada à banda de onde brotara a fala do mísero que decidira morrer, os olhos chamejavam-lhe, tal qual tições ao bafo de forja. No meio da aflição geral, até parecia antegozar a volúpia da sua vingança.

Então para cúmulo, os trabalhadores, ouvindo o aviso, detiveram-se na faina. E enquanto uns, munidos de escoras, aliviavam as cordas do peso do obelisco, na posição já adquirida, garimpavam outros por escadas, a despejar baldes de água nas espias, ao máximo distendidas.

Foi a salvação! Revigorado assim o cordame, o melindroso trabalho acabou por ser levado a bom termo. Uma aleluia de contentamento perpassou então de cada qual para cada qual, comunicativa como fluido de vinho generoso.

Vai senão quando... o que se vê?! Eram outra vez os parlamentários do bispo, com mensagem à multidão. Agora, traziam a incumbência de procurar o autor da tal voz e levá-lo à presença de sua reverendíssima, para receber avultada recompensa — asseveravam.

Fura que fura, indaga que não indaga, a diligência era baldada. Ninguém se acusava!

Havia entre o povo um labrego qualquer, de aspecto soez e modos grosseiros. Cara larga, olhos injectados, dentes como enxadas, com um gorro afunilado de pele de carneiro e samarra do mesmo naipe — pastor, com certeza — principiou de dar mostras de intranquilidade. Os emissários a aproximar-se, e o sujeito, empurrão à direita e à esquerda, em cata de frincha por onde se esgueirar. Ofegava!

Quando enfim se pilhou em campo aberto, acelerou a fundo...

Corria que se partia!... Parecia gamo perseguido por leões...

S. Tiago de Riba-UI • Novembro de 1959

 

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