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A investigação experimental tem por base
factos, mas este enunciado não é tão claro como parece à primeira
vista, porque a palavra «factos» se emprega com acepções bastante
diferentes, que é necessário examinar.
Em primeiro lugar, os únicos factos de
que temos conhecimento directo, imediato, são de natureza psicológica:
sensações, imagens, emoções, ideias, volições — tudo o que constitui os
dados dos sentidos, os subsídios da memória, as vivências.
Destes factos, há uns que nos parecem
impostos por uma realidade estranha, e não podemos modificar ao sabor da
nossa vontade, porque são, de certo modo, provocados por factores que
não podemos remover. Somos assim conduzidos a admitir a existência de
factos que se produzem fora de nós e só indirectamente podemos conhecer,
através das impressões que nos causam.
A consciência de nós mesmos, dos nossos
estados e das suas modificações é um acto de apreensão imediata que
serve de base a toda a vida reflexiva, mas, fora do limiar da
consciência, há muitos outros factos psicológicos que formam o carácter
individual.
Em teoria, é possível negar-se a
existência desse mundo externo e atribuir-se o mecanismo da
representação sensorial a uma actividade criadora do espírito que se
manifesta sob essa forma ilusória. O idealismo de Platão e o de Berkeley(1) são tipos desta posição teorética.
Contudo, a experiência das resistências
que se opõem ao exercício da nossa vontade é uma garantia prática
suficiente para aceitarmos como um facto a existência do mundo externo e
a influência que ele exerce sobre nós. O conhecimento desse mundo só
pode resultar, porém, da maneira como reagimos às suas solicitações e é
necessário, portanto, assumir uma atitude interpretativa e crítica das
percepções sensíveis para distinguirmos o que nelas há de característico
da realidade externa e o que lhe associamos ao captá-la. Mesmo para
analisarmos os nossos estados de consciência precisamos de efectuar uma
dissociação no nosso mundo interior, para os apreciarmos como
espectadores, o que altera a natureza dos factos que pretendemos
observar. (2). Não podemos, pois, ter a pretensão de conhecer as coisas
tais como elas são em si mesmas, limitando-nos a apreciá-las pela
maneira como nos impressionam.
A exterioridade do objecto e do sujeito
faz do conhecimento uma relação na qual intervêm elementos objectivos e
subjectivos e imprime-lhe o estigma da relatividade. A referenciação do
conhecimento a factos que não são directamente apreendidos, põe-nos
perante o problema dos seus limites e valor e revela-nos a oposição que
se traduz nos conceitos de objectividade e de subjectividade, de
realidade e de aparência, exigindo um critério de fundamentação da
verdade. A correspondência entre o pensamento e a realidade só pode
estabelecer-se por sucessivas aproximações, desempenhando a experiência
um papel preponderante de informação e verificação.
A existência de objectos independentes
de nós dá maior latitude ao conceito de «facto» e altera-lhe a
característica subjectiva.
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2/ A percepção deixa de valer por si mesma para valer pela sua
adequação aos objectos a que se refere. Margenau
(3) observa que não se
encontra «em toda a epistemologia, mesmo naquela sua parte que constitui
a autêntica base da ciência, nada que nos permita estabelecer um seguro
critério para definir a realidade».
As informações que os sentidos nos dão
acerca do mundo externo são sempre incompletas e às vezes ilusórias, de
modo que se torna necessário preencher as lacunas e corrigir as
insuficiências da percepção sensível. Os órgãos dos sentidos são como
frestas através das quais espreitamos o mundo externo e, ao mesmo tempo
que seleccionam as impressões que nos atingem, simplificando a
realidade, transfiguram-na ao traduzi-la na linguagem que lhes é
própria. Já Locke distingue duas espécies de qualidades sensíveis: umas,
primárias (grandeza, forma, movimento, espaço e número), que considera
propriedades dos próprios objectos da percepção; outras secundárias
(cores, sons, aromas, dureza, temperatura) de carácter subjectivo,
embora correspondam a propriedades objectivas. Antes da descoberta das
radiações ultravioletas e infravermelhas(4), apenas conhecíamos as
correspondentes ao espectro solar que a vista nos revela, e as que
percebemos sob forma sonora. Durante milénios o espaço foi percorrido
por ondas hertzianas sem que os nossos sentidos as pudessem captar. O
telescópio e o microscópio revelaram-nos factos que não podíamos
conhecer reportando-nos apenas às informações directamente fornecidas
pela vista.
À medida que se amplia o poder de
captação dos sentidos, o mundo surge-nos muito mais complexo e
diferente. O exame microscópico duma gota de água putrefeita revela-nos
um mundo insuspeitado de seres minúsculos que se agitam; um tecido
vegetal que nos parece compacto, surge-nos com o aspecto lacunar duma
renda caprichosa; uma superfície polida aparece-nos granulosa. A luz é
uma condição necessária da percepção visual e sabemos que ela modifica a
forma e as dimensões dos objectos segundo as leis da refracção e da
perspectiva. Um corpo cinzento bastante iluminado parece mais branco do
que um corpo branco visto na penumbra.
As percepções ilusórias não deixam de
ser factos psicológicos nem de corresponder a factos do mundo físico,
embora os deformem. Quando mergulhamos uma vara num vaso transparente
com água, vemos a vara dobrada pela superfície do líquido, formando um
ângulo mais ou menos agudo conforme a inclinação da parte não
mergulhada, sobre a superfície da água; a percepção corresponde a um
facto concreto (a refracção da luz); mas também é um facto concreto que
a vara não dobrou, como podemos certificar-nos pelo tacto. Enquanto a
vista nos informa de que a vara ficou quebrada, o acto garante-nos que
não quebrou; a conciliação entre as duas informações contraditórias só
pode ser feita teoricamente, interpretando-as, e é esse o objectivo da
teoria da refracção. O mesmo facto externo é susceptível de provocar em
nós impressões muito diferentes, conforme o órgão dos sentidos que o
traduz e os instrumentos de que nos servimos como intermediários. O
relâmpago e o trovão são duas maneiras diferentes de captar o mesmo
lado; a diferença de velocidade de propagação da luz e do som explica o
facto de os não percebermos simultaneamente. Uma pressão exercida sobre
a pele produz uma sensação de choque, ao passo que exercida sobre o
globo ocular provoca uma sensação luminosa. Os órgãos dos sentidos estão
especializados.
Os sonhos e as alucinações pertencem ao
número dos factos psicológicos que parece não terem correspondente real,
por mais vividas que sejam as impressões que produzam. Enquanto nas
ilusões sensoriais há factos do mundo físico que correspondem às
percepções e a ilusão provém da deformação que estes sofrem ao
converter-se em percepções, nos sonhos e nas alucinações não se conhecem
factos do mundo físico que lhes correspondam, o que não significa que
tais factos não existam efectivamente. As experiências ideoplásticas
vêm, de certo modo, esclarecer esta questão e permitem explicar o facto
de as imagens alucinatórias obedecerem às leis da óptica física.
A distinção entre realidade e aparência
resulta de não podermos identificar as nossas percepções com os factos
concretos a que correspondem. Por isso o homem não se satisfaz com a
imagem do mundo que lhe fornece a intuição sensível e procura refazê-la,
de acordo com as exigências da sua razão, substituindo-a por um sistema
de relações inteligíveis, experimentalmente /página
6/ verificáveis. Pondo de parte uma utópica identidade do
conhecimento empírico e dos objectos a que diz respeito, o que interessa
é que haja uma correspondência unívoca e recíproca entre esses objectos
e a maneira de interpretá-los, entre a estrutura da realidade e a
legalidade que lhe atribuímos, o que implica a racionalidade do real. Só
assim o conhecimento adquire capacidade de previsão e sentido prático. O
carácter de verdade é essencial a todo o conhecimento e é isso que o
distingue da crença, cuja validade subjectiva não é garantia de
veracidade.
O verdadeiro e o falso são qualidades
dos juízos e não dos factos. Um juízo é falso quando estabelece uma
correspondência inadequada do pensamento aos factos, depurados das
deformações introduzidas pelo mecanismo da percepção, ao passo que um
enunciado de percepção já não é falso se a percepção for ilusória, mas
sim quando afirma como experimentada uma percepção que não se
experimentou. Os factos psicológicos têm carácter privado e só são
evidentes para quem os experimenta. Se nos limitarmos a afirmar que a
percepção visual nos mostra o Sol girando em volta da Terra, enunciamos
um juízo verdadeiro, mas se pretendemos inferir daí que, na realidade, é
o Sol que gira em volta da Terra, incorremos em erro. Neste caso, a
verificação do carácter ilusório da percepção não pode fazer-se
directamente, mas sim por analogia com o que acontece quando, viajando
de comboio, por exemplo, vemos as árvores e a paisagem moverem-se em
sentido contrário ao do nosso movimento e temos a impressão de que
estamos em repouso. Os juízos referentes ao mundo externo (empírico) só
podem ser controlados pelas percepções, mas estas precisam de ser
corrigidas pela razão.
Vemos, pois, que há factos psicológicos
relacionados com outros factos, independentes de nós e mais complexos
que não podemos identificar com eles. Unia percepção é uma representação
parcial e não a apreensão total dum facto estranho a ela. Mas, além
desta representação involuntária, imposta pelo mecanismo da percepção, o
conhecimento implica sempre uma interpretação mais ou menos
transfiguradora da realidade, orientada por ideias que resumem a
experiência passada e pretendem superar o que há de subjectivo na
percepção. Claro está que essas ideias obedecem às leis no nosso
espírito, de modo que o factor subjectivo não pode ser totalmente
eliminado. Basta notar que todo o conhecimento é uma relação
sujeito-objecto para se compreender que não é possível eliminar o termo
fundamental da relação, embora o outro termo possa adquirir carácter
objectivo quando constitui urna criação do próprio sujeito. Por isso, a
validade do conhecimento dos objectos ideais (seres de razão), como
aqueles de que se ocupa a matemática e a lógica, pode ser estabelecida
a priori; é possível aplicar-lhes o princípio de identidade e
estabelecer a sua rigorosa necessidade e universalidade.
Lobo Vilela
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Notas:
(1) — Segundo Berkeley, as coisas não
são mais do que o conjunto das suas propriedades sensíveis e, como estas
são subjectivas, as coisas não passam de simples representações e a sua
existência consiste apenas em serem percebidas: a representação esgota a
essência da realidade externa. O idealismo, identificando os aspectos
psicológico e ontológico do conhecimento, fracassa no problema da
existência do eu e tende a converter-se em solipsismo. A
identificação do pensamento e do ser exclui a possibilidade do erro.
(2) — Os elementos metafísicos da
Física, trad. port. pág. 51.
(3) — Não conseguimos examinar em nós
mesmos um estado afectivo intenso, sem lhe diminuirmos a intensidade,
nem analisar um raciocínio sem o desviarmos.
(4) — «O aspecto que tem para nós o
Universo depende da constituição dos órgãos dos sentidos e do seu grau
de sensibilidade. Se, por exemplo, a retina registasse os raios
infravermelhos de grande comprimento de onda, a natureza
apresentar-se-ia aos nossos olhos com um aspecto completamente diverso.»
— Alexis Carrel, O homem, esse desconhecido. |