NESTE meu calcorrear por Franças e
Araganças, olhos bem abertos a quanto possa abrir-me o entendimento, a
aumentar-me o magro cabedal dos conhecimentos ou a desbravar a selva
própria, penso muitas vezes, no problema da sinceridade.
E penso activamente, que o mesmo é
dizer, segundo o meu julgar. Não me limito a procurar saber o que os
outros pensaram. Procuro, de preferência, descobrir até que ponto, eu,
que sou sincero mas não sou artista, posso exigir dos que o são, uma
linha de rumo marcada por coerência a que não pode exigir-se nível mas a
que deve homenagear-se a continuidade, ascendente ou descendente, sem
desvios ou bifurcações, numa direcção, sempre a mesma, filha dum
processo elaborado dentro do artista.
O sentido vulgar da palavra sinceridade
reflecte, na arte, um entendimento de subordinação para além do momento
da criação. Para além e para aquém. O homem que se afirmou cria uma
limitação a partir desse momento. A sua sinceridade é a obediência à
afirmação primeira, ou, pelo menos, à mais forte, àquela que maior
repercussão possa ter tido. Saído das coordenadas que fixou, cai ou
ergue-se, mas desvia-se, sempre, daquilo que convencionou chamar-se a
sinceridade. Quando isso sucede, as paixões dividem os homens que o
cercam. O acto, que podemos chamar desvio — em relação à rota até então
trilhada — é considerado por uns como insinceridade e por outros como
natural evolução. Se o Artista é celebre aqueles que o julgam perdido
para as fileiras da sua escola, acusam-no de incoerência e de falta de
respeito pelo que foi, ao passo que os outros, que o julgam aproximar,
começam a ver, delicadamente, manhosamente, uma evolução consciente,
filha duma ânsia maior de perfectibilidade.
Até que ponto pode o Artista
subordinar-se às limitações duma posição anterior?
Deverá o Artista, por razões de
coerência, limitar o deflagrar dum momento de criação?
Será o Artista um todo indivisível ou,
pelo contrário, uma possibilidade viva de momentos de criação
diferentes, e tão diferentes, que podem parecer, e ser, antagónicos nos
seus efeitos, ou melhor, na sua exteriorização, apreciável e criticável,
como obra de arte?
Tudo isto vem a propósito de JEAN
COCTEAU e dum aspecto, talvez menor, da sua obra — a actividade como
decorador da pequena capela de SÃO PEDRO, no lindo porto de
VILLEFRANCHE-SUR-MER — como poderia vir a propósito da tapeçaria de
LURÇAT para o altar-mor da capela do PLATEAU D’ASSY ou do maravilhoso
mosaico de LEGER para a fachada da mesma capela.
Não conheço suficientemente a obra
multiplice de JEAN COCTEAU. Não posso, pois, ousar apreciá-la em globo.
Mais não pretendo que considerá-la pretexto ou ponto de partida para
algumas considerações pessoais, pessoalíssimas e talvez atrevidas
considerações /Página 8/
sobre a sinceridade na Arte. Para isso, creio que bem poucos artistas
poderiam fornecer melhor fermento.
A primeira impressão colhida em JEAN
COCTEAU poeta, pintor, cenarista, cineasta e homem, é uma estranha e por
vezes desconcertante impressão de incoerência. Ouso mesmo dizer que a
sua coerência na incoerência, constituindo uma forte manifestação de
personalidade, representa a mais alta das expressões de sinceridade na
Arte, que me foi dado apreciar. Mas... expliquemo-nos: de sinceridade,
tal como eu a entendo.
Ser sincero não é ser igual ao que se
foi ou ao que se será. Ser sincero é traduzir, em dado momento, o que
sentimos nesse próprio momento por mais diferente, mais antagónico, mais
negatório do que nós próprios fomos, no momento anterior ou noutro
momento anterior. A sinceridade, é pois, no Artista, a mais completa
expressão da liberdade. Sempre que o Artista não goza, perante si
próprio, da liberdade de desdizer, ou melhor, de afirmar-se de maneira
diferente ou até contrária, é escravo, e como tal, não é sincero. Nem
mesmo o poderia ser. Criou e, porque criou, deixou de poder criar porque
se limitou. Pode ter e tem, quase sempre, uma linha de rumo e uma
formação, que insensivelmente lhe fixam as coordenadas até ser o próprio
Artista se sentir por elas escravizado e limitado. Se assim é, o Artista
é sincero. Não tem gritos que lhe façam mudar o rumo das passadas.
Continua um caminho, o mesmo caminho, porque o seu grito é aquele, com
ecos diferentes.
Mas será sincero o Artista que em dado
momento, por respeito ou receio, abafa o grito que lhe sai do peito para
que os outros o não ouçam diferente dos ecos anteriores doutros gritos
que soltou e foram, até então, aquilo a que chamaram a sua obra?
Este o problema máximo da sinceridade na
Arte.
É certo que pode objectar-se com a
facilidade de certos homens fazerem isto e o contrário disto, só porque
lhes foi encomendado que o fizessem, só porque se lhes pagou ou pagará
porque o fizeram.
Dentro do próprio artista há que
reconhecer a existência do homem que se alimenta e que, por vezes, não é
suficientemente forte para conseguir negar-se ao prato de lentilhas ou
de libras que lhe é estendido.
Mas... pretendo falar de artistas. Estes
são determinados pela força, pela chama que os anima e os impele
inexoravelmente, por vezes mesmo cruelmente, para a sua própria
realização.
São raros? Talvez. Por isso mais
preciosos.
Não sei se JEAN COCTEAU é ou não
católico, no sentido total e universal do termo. Ignoro até que ponto o
homem que ele é vai à missa e cumpre os deveres que lhe impõe aquela
religião, isto no caso de o ser.
Não creio que o seja. Nem isso importa.
Compreendo, porém, como acto de sinceridade, o seu interesse em decorar
a capelinha de VILLEFRANCHE-SUR-MER. Compreendo-o, como compreendi
LURÇAT e LEGER. Não é caso de dizer o mesmo quanto a MATISSE e a ROUAULT.
Não importa mesmo saber se, ao decorar a
capelinha de SÃO PEDRO, JEAN COCTEAU procurou ligar por vaidade o seu
nome a um templo, sabedor como era de que as catedrais, as igrejas e as
capelas transformam por vezes, pelo ambiente ou pela cegueira, o vulgar
no sublime.
Que poderia acrescentar à glória do
artista que criou o «Sangue dum poeta» a decoração duma capelinha
consagrada aos pescadores de VILLEFRANCHE?
Eu quero passar ao lado, até, desse
ligeiro problema da sinceridade do Artista. Quero entrar na análise
sumária e rápida, da possibilidade de COCTEAU poder ter sido sincero ao
decorar, como decorou, a capelinha de São Pedro.
E é a ele próprio que importa recorrer.
«São Pedro caminha sobre as águas» -
ábside da capela da São Pedro em Vincennes. |
É de todos conhecida a admiração, quase
fanática, de COCTEAU, por esse adolescente míope e genial que se chamou
RAYMOND RADIGUET, a quem o Artista fechava à chave, com papel e tinta,
para o obrigar a escrever. Morto aos 20 anos, RADIGUET deixara pegadas
das mais valiosas da literatura francesa.
COCTEAU pegou na atitude de RADIGUET de
contradizer o anti-conformismo e fez dela a sua regra. Ele o confessa em
vários lugares.
Primeiramente e como acto, a sua entrada
para a Academia levando a espada que Pablo Picasso criara, e depois como
obra, a decoração da capelinha de São Pedro, representam actos de
sinceridade, actos de «NAGER À CONTRE VAGUE D’UNE ÉPOQUE ENCORE SOUMISE
AU MONSTRUEUX, ET EN QUELQUE SORTE À LA FASCINATION DE LA TÊTE DE MÉDUSE.»
|
A entrada na Academia era o acto
anti-intelectual que necessitava duma obra, para companhia.
Quando COCTEAU afirma: — «J’AI
PENSÉ QUE LA DÉCORATION D’UNE ÉGLISE REMPLIRAIT À MERVEILLE CET OFFICE»
continua a ser sincero. No
momento preciso, o artista julgou realizar-se praticando um acto, talvez
incoerente, e erguendo uma obra, talvez contraditória. Aquele e esta
poderiam ter sido, e foram, uma negação afirmativa dessa sinceridade.
Foi assim que eu vi a decoração que o
poeta espalhou a esmo, prodigamente, pelas pedras das paredes e tectos
da capelinha de São Pedro, em VILLEFRANCHE. Senti-me uma dessas pedras
vivas da frase de São Pedro que nos acolhe à entrada.
Havia naqueles traços vigorosos e doces
toda a alma dum poeta que tocado pela graça da poesia soubera fazer
acamaradar a Virgem do Menino Jesus com as raparigas de VILLEFRANCHE e
os ciganos das Santas-Marias-do-Mar, a que não faltava a viola com a
soberba figura do Cristo de pé erguido e humanamente pousado numa pedra
do cais do mundo.
Tudo podia ter sido a obra dum católico.
Não sei, repito, se o foi. Não o creio. Porém, não duvido da sinceridade
daquele momento de COCTEAU, um momento que o prendeu, durante cinco
meses, à obra que lhe faltava para ser contra o absurdo conformismo
anti-conformista.
A obra correspondeu à necessidade de
expressão. A sinceridade não está no possivelmente não católico ter
actuado e produzido como católico. Está, e isso é que importa, na
realização duma obra, na exteriorização ousada dum anseio, para além ou
contra tudo quanto estava anteriormente feito.
Seria isso possível se o pintor não
fosse poeta, ou melhor, se o artista não fosse também poeta?
A poesia marcha sempre na vanguarda. O
poeta precede, quase sempre, o próprio cientista. Mal vai quando assim
não é.
Já HENRI POINCARÉ o disse, precisamente,
a COCTEAU:
«LA POÉSIE PRÉCÈDE SOUVENT LA
SCIENCE, PARCE QU’ELLE NE COMPTE PAS SES JAMBES LORS QU’ELLE COURT,
ALORS QUE LA SCIENCE COMPTE LES SIENNES LORS QU’ELLE MARCHE.»
JEAN COCTEAU realizou-se naquele seu
momento, sinceramente? Talvez. Fora o poeta a realizar-se no pintor. Não
pretendeu, creio-o, contar as pernas da coerência enquanto corria, e que
bem, levado pela sinceridade desse instante.
1959 – M. da Costa e Melo |