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Artes - Letras - Ciências
Suplemento do n.º 266 do "Litoral"
Novembro de 1959, Ano I, n.º 3
págs. 7, 8 e 9

 
Jean Cocteau

e a sinceridade na ARTE

por

COSTA E MELO


NESTE meu calcorrear por Franças e Araganças, olhos bem abertos a quanto possa abrir-me o entendimento, a aumentar-me o magro cabedal dos conhecimentos ou a desbravar a selva própria, penso muitas vezes, no problema da sinceridade.

E penso activamente, que o mesmo é dizer, segundo o meu julgar. Não me limito a procurar saber o que os outros pensaram. Procuro, de preferência, descobrir até que ponto, eu, que sou sincero mas não sou artista, posso exigir dos que o são, uma linha de rumo marcada por coerência a que não pode exigir-se nível mas a que deve homenagear-se a continuidade, ascendente ou descendente, sem desvios ou bifurcações, numa direcção, sempre a mesma, filha dum processo elaborado dentro do artista.

O sentido vulgar da palavra sinceridade reflecte, na arte, um entendimento de subordinação para além do momento da criação. Para além e para aquém. O homem que se afirmou cria uma limitação a partir desse momento. A sua sinceridade é a obediência à afirmação primeira, ou, pelo menos, à mais forte, àquela que maior repercussão possa ter tido. Saído das coordenadas que fixou, cai ou ergue-se, mas desvia-se, sempre, daquilo que convencionou chamar-se a sinceridade. Quando isso sucede, as paixões dividem os homens que o cercam. O acto, que podemos chamar desvio — em relação à rota até então trilhada — é considerado por uns como insinceridade e por outros como natural evolução. Se o Artista é celebre aqueles que o julgam perdido para as fileiras da sua escola, acusam-no de incoerência e de falta de respeito pelo que foi, ao passo que os outros, que o julgam aproximar, começam a ver, delicadamente, manhosamente, uma evolução consciente, filha duma ânsia maior de perfectibilidade.

Até que ponto pode o Artista subordinar-se às limitações duma posição anterior?

Deverá o Artista, por razões de coerência, limitar o deflagrar dum momento de criação?

Será o Artista um todo indivisível ou, pelo contrário, uma possibilidade viva de momentos de criação diferentes, e tão diferentes, que podem parecer, e ser, antagónicos nos seus efeitos, ou melhor, na sua exteriorização, apreciável e criticável, como obra de arte?

 

Tudo isto vem a propósito de JEAN COCTEAU e dum aspecto, talvez menor, da sua obra — a actividade como decorador da pequena capela de SÃO PEDRO, no lindo porto de VILLEFRANCHE-SUR-MER — como poderia vir a propósito da tapeçaria de LURÇAT para o altar-mor da capela do PLATEAU D’ASSY ou do maravilhoso mosaico de LEGER para a fachada da mesma capela.

Não conheço suficientemente a obra multiplice de JEAN COCTEAU. Não posso, pois, ousar apreciá-la em globo. Mais não pretendo que considerá-la pretexto ou ponto de partida para algumas considerações pessoais, pessoalíssimas e talvez atrevidas considerações /Página 8/ sobre a sinceridade na Arte. Para isso, creio que bem poucos artistas poderiam fornecer melhor fermento.

A primeira impressão colhida em JEAN COCTEAU poeta, pintor, cenarista, cineasta e homem, é uma estranha e por vezes desconcertante impressão de incoerência. Ouso mesmo dizer que a sua coerência na incoerência, constituindo uma forte manifestação de personalidade, representa a mais alta das expressões de sinceridade na Arte, que me foi dado apreciar. Mas... expliquemo-nos: de sinceridade, tal como eu a entendo.

Ser sincero não é ser igual ao que se foi ou ao que se será. Ser sincero é traduzir, em dado momento, o que sentimos nesse próprio momento por mais diferente, mais antagónico, mais negatório do que nós próprios fomos, no momento anterior ou noutro momento anterior. A sinceridade, é pois, no Artista, a mais completa expressão da liberdade. Sempre que o Artista não goza, perante si próprio, da liberdade de desdizer, ou melhor, de afirmar-se de maneira diferente ou até contrária, é escravo, e como tal, não é sincero. Nem mesmo o poderia ser. Criou e, porque criou, deixou de poder criar porque se limitou. Pode ter e tem, quase sempre, uma linha de rumo e uma formação, que insensivelmente lhe fixam as coordenadas até ser o próprio Artista se sentir por elas escravizado e limitado. Se assim é, o Artista é sincero. Não tem gritos que lhe façam mudar o rumo das passadas. Continua um caminho, o mesmo caminho, porque o seu grito é aquele, com ecos diferentes.

Mas será sincero o Artista que em dado momento, por respeito ou receio, abafa o grito que lhe sai do peito para que os outros o não ouçam diferente dos ecos anteriores doutros gritos que soltou e foram, até então, aquilo a que chamaram a sua obra?

Este o problema máximo da sinceridade na Arte.

É certo que pode objectar-se com a facilidade de certos homens fazerem isto e o contrário disto, só porque lhes foi encomendado que o fizessem, só porque se lhes pagou ou pagará porque o fizeram.

Dentro do próprio artista há que reconhecer a existência do homem que se alimenta e que, por vezes, não é suficientemente forte para conseguir negar-se ao prato de lentilhas ou de libras que lhe é estendido.

Mas... pretendo falar de artistas. Estes são determinados pela força, pela chama que os anima e os impele inexoravelmente, por vezes mesmo cruelmente, para a sua própria realização.

São raros? Talvez. Por isso mais preciosos.

Não sei se JEAN COCTEAU é ou não católico, no sentido total e universal do termo. Ignoro até que ponto o homem que ele é vai à missa e cumpre os deveres que lhe impõe aquela religião, isto no caso de o ser.

Não creio que o seja. Nem isso importa. Compreendo, porém, como acto de sinceridade, o seu interesse em decorar a capelinha de VILLEFRANCHE-SUR-MER. Compreendo-o, como compreendi LURÇAT e LEGER. Não é caso de dizer o mesmo quanto a MATISSE e a ROUAULT.

Não importa mesmo saber se, ao decorar a capelinha de SÃO PEDRO, JEAN COCTEAU procurou ligar por vaidade o seu nome a um templo, sabedor como era de que as catedrais, as igrejas e as capelas transformam por vezes, pelo ambiente ou pela cegueira, o vulgar no sublime.

Que poderia acrescentar à glória do artista que criou o «Sangue dum poeta» a decoração duma capelinha consagrada aos pescadores de VILLEFRANCHE?

Eu quero passar ao lado, até, desse ligeiro problema da sinceridade do Artista. Quero entrar na análise sumária e rápida, da possibilidade de COCTEAU poder ter sido sincero ao decorar, como decorou, a capelinha de São Pedro.

E é a ele próprio que importa recorrer.


«São Pedro caminha sobre as águas» - ábside da capela da São Pedro em Vincennes.

É de todos conhecida a admiração, quase fanática, de COCTEAU, por esse adolescente míope e genial que se chamou RAYMOND RADIGUET, a quem o Artista fechava à chave, com papel e tinta, para o obrigar a escrever. Morto aos 20 anos, RADIGUET deixara pegadas das mais valiosas da literatura francesa.

COCTEAU pegou na atitude de RADIGUET de contradizer o anti-conformismo e fez dela a sua regra. Ele o confessa em vários lugares.

Primeiramente e como acto, a sua entrada para a Academia levando a espada que Pablo Picasso criara, e depois como obra, a decoração da capelinha de São Pedro, representam actos de sinceridade, actos de «NAGER À CONTRE VAGUE D’UNE ÉPOQUE ENCORE SOUMISE AU MONSTRUEUX, ET EN QUELQUE SORTE À LA FASCINATION DE LA TÊTE DE MÉDUSE.»

A entrada na Academia era o acto anti-intelectual que necessitava duma obra, para companhia.

Quando COCTEAU afirma: — «J’AI PENSÉ QUE LA DÉCORATION D’UNE ÉGLISE REMPLIRAIT À MERVEILLE CET OFFICE» continua a ser sincero. No momento preciso, o artista julgou realizar-se praticando um acto, talvez incoerente, e erguendo uma obra, talvez contraditória. Aquele e esta poderiam ter sido, e foram, uma negação afirmativa dessa sinceridade.

Foi assim que eu vi a decoração que o poeta espalhou a esmo, prodigamente, pelas pedras das paredes e tectos da capelinha de São Pedro, em VILLEFRANCHE. Senti-me uma dessas pedras vivas da frase de São Pedro que nos acolhe à entrada.

Havia naqueles traços vigorosos e doces toda a alma dum poeta que tocado pela graça da poesia soubera fazer acamaradar a Virgem do Menino Jesus com as raparigas de VILLEFRANCHE e os ciganos das Santas-Marias-do-Mar, a que não faltava a viola com a soberba figura do Cristo de pé erguido e humanamente pousado numa pedra do cais do mundo.

Tudo podia ter sido a obra dum católico. Não sei, repito, se o foi. Não o creio. Porém, não duvido da sinceridade daquele momento de COCTEAU, um momento que o prendeu, durante cinco meses, à obra que lhe faltava para ser contra o absurdo conformismo anti-conformista.

A obra correspondeu à necessidade de expressão. A sinceridade não está no possivelmente não católico ter actuado e produzido como católico. Está, e isso é que importa, na realização duma obra, na exteriorização ousada dum anseio, para além ou contra tudo quanto estava anteriormente feito.

Seria isso possível se o pintor não fosse poeta, ou melhor, se o artista não fosse também poeta?

A poesia marcha sempre na vanguarda. O poeta precede, quase sempre, o próprio cientista. Mal vai quando assim não é.

Já HENRI POINCARÉ o disse, precisamente, a COCTEAU:

«LA POÉSIE PRÉCÈDE SOUVENT LA SCIENCE, PARCE QU’ELLE NE COMPTE PAS SES JAMBES LORS QU’ELLE COURT, ALORS QUE LA SCIENCE COMPTE LES SIENNES LORS QU’ELLE MARCHE.»

JEAN COCTEAU realizou-se naquele seu momento, sinceramente? Talvez. Fora o poeta a realizar-se no pintor. Não pretendeu, creio-o, contar as pernas da coerência enquanto corria, e que bem, levado pela sinceridade desse instante.

1959 – M. da Costa e Melo

 

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