Chegamos assim à terceira fase da
poética brasileira contemporânea — a da geração de 45, dos
«neo-modernistas», dos concretistas e dos neo-concretistas em que se
teria verificado «o primado do verso sobre a poesia» e da «razão» sobre
o «instinto», segundo o Professor Amoroso Lima, e que não teria
produzido «entretanto nenhum grande poeta».
O ambiente histórico do seu aparecimento
é-nos retratado pelo crítico brasileiro Eduardo Portella, cuja citação
se me afigura aqui tanto mais indicada quanto ele patenteia, algures, a
sua admiração por Tristão de Ataíde:
«Menos do que um período de
tranquilidade ou de confortadora paz, aos poetas da terceira geração
modernista coube viver um momento histórico-social tumultuado e
problemático: o fim da Segunda Grande Guerra, a queda do regime
implantado no Brasil, a morte de Mário de Andrade, a conclusão do
modernismo como movimento — como movimento e não como atitude — foram os
acontecimentos que assinalavam a vida brasileira no instante em que eram
recebidos os moços de ‘45’ (5)».
Que este ou outro momento histórico
igualmente agitado e confuso, mormente neste século, dê origem a
movimentos literários ou artísticos inovadores, e que estes tendam a
procurar atingir o próprio cerne da respectiva categoria literária ou
artística, é fenómeno tão corrente e tão natural, quase tão inevitável,
que por pouco se poderia passar adiante: toma-se «for granted».
Lembramo-nos da Itália e do futurismo, antes do advento dos fáscios;
recordamo-nos do dadaísmo e do surrealismo, na Suíça, na França, na
Alemanha, prenúncio e sintoma do mal-estar do momento; pensamos no Joyce
tão irlandês transplantado; a école du regard neo-francesa, essa,
faz-se lembrada.
Nem é preciso grande memória para tudo
isto, nem nada disto é grande descoberta. O fenómeno tem causas remotas.
Um conjunto de forças culturais centrífugas, cujo núcleo dimanante se
situou na Europa da primeira década do século actual, era ele próprio o
resultado a longo prazo, mas inexorável, de transformações sociais
profundas.
Uma das preocupações fundamentais, e
centrais, das várias correntes e tendências literárias deste século, e
característica comum delas, creio ser a de um especial desajustamento do
homem ao mundo em que vive. Desajustamento encarado de um ou outro
ângulo, consoante o local, o momento, a propensão do escritor: e de um
ponto de vista religioso, ou político, ou filosófico, ou outro qualquer
(melhor diria de um ponto de vista predominantemente religioso, ou etc.,
porquanto uma posição definida num dos sectores implica o assumir de
posições nos outros). Gide, Kafka, Joyce, Eliot, Huxley, Malraux, mais
recentemente Greene, Faulkner, Sartre, Beckett — são algumas das suas
mais relevantes manifestações.
A exposição desse desajustamento — que,
diga-se apenas de passagem, pode levar à alternativa da desafiliação ou
da intervenção — tem consequentemente variado, desde o exprimi-lo em
termos vagos e imprecisos até ao focar mais ou menos directo da posição
desajustada, por exemplo investigando exaustivamente um dos planos onde
ela se revele. Entre estes pólos oscilam as principais tendências
literárias Contemporâneas.
No caso da poesia brasileira, os
modernistas de 22 exibiram uma consciência de grupo diversamente
evoluída em relação ao ambiente geral da cultura em que surgiram; na
geração seguinte, os poetas e uma zona da consciência social
entre-aproximaram-se, mas crescentemente o marginalismo se transferia e
manifestava em zonas anteriormente menos focadas — sobre algumas das
quais viria a incidir a atenção da geração de 45. Esta retomava, assim,
uma linha interessada e objectiva, sem dúvida individualizando o
acontecimento poético mas descrevendo-o de um modo simultaneamente
corrente e especioso (por vezes «sophisticated»), na medida em que a
emoção era catalizada com muito mais fastidioso e selectivo rigor verbal
do que na geração imediatamente antecedente, e em que essa emoção
transcende a impressão aguarelística da fase primeira para corresponder
a solicitações do quotidiano, sobretudo urbano. Esta posição encontraria
adequada significação no emprego da palavra ou da construção insólita no
meio de uma linguagem fácil e quase dialogal, normalmente metrificada
mas sem esforço aparente — como é o fruto próprio das poéticas em que se
operou uma fecunda transformação prosódica. /página
4/
Atente-se nestes brevíssimos exemplos:
O canto morto regressa
para esta noite puríssima
em que sou a rosa e o trigo
junto à represa fantástica.
.............................................
Perdi tudo o que era meu
na vã purificação
do meu círculo de fogo.
Perdi muito mais que tudo.
Eis-me então pobre e isolado.
(Ledo Ivo)
Que fantasma sonoro, ao longe,
Vela o sol de fulgurações?
É o clarim do sargento Negro
Pontilhando alucinações.
(Geraldo Vidigal)
No ritmo das linhas
Imóvel o espanto permanece,
Como se a morte o recolhera
De toda a metamorfose.
(José Paulo Moreira da Fonseca)
A luz, o sol, o ar livre
Envolvem o sonho do engenheiro
O engenheiro sonha coisas claras:
Superfícies, tênis, um copo d’água.
O lápis, o esquadro, o papel;
O desenho, o projecto, o número:
O engenheiro pensa o mundo justo
Mundo que nenhum véu encobre.
(João Cabral de Melo Neto)
As palavras justas definem realidades
exactas; por isso um João Cabral de Melo Neto é mencionado por José Lino
Günewald como, de certo modo, percursor do concretismo, dele citando «um
autêntico exemplo de nomeações concretas para criar uma imagem dinâmica»
(6).
Não é, portanto, exacto o falar-se de
formalismo imposto a propósito da geração de 45, ou pelo menos dos seus
mais representativos componentes, por isso que lhes não interessava a
forma pela forma.
Nem interessa, sequer, ao concretismo.
Numa outra faceta se tem também
manifestado, directa ou indirectamente, o desajustamento a que há pouco
aludi: naquela representada pela evolução da preocupação com a
comunicação, com a palavra, pelo fascínio do problema do verbo, na
literatura do século XX. Palavras tiradas ao acaso de dentro de um
chapéu, ou lançadas sobre o tapete, escritura automática; murmuração
onírica; caligramas; exercícios de estilo; letrismo; exploração e/ou
explosão do lugar comum, da frase feita — eis um incompleto mostruário
das suas formulações práticas literárias. No campo erudito ou
científico: investigações intensas nos campos da fonética, de semântica,
da linguística, da lógica, da sociologia, da antropologia; elaboração de
uma teoria dos sinais; suas ligações com outras ciências; seu entroncar
nas concepções filosóficas dominantes — desde os existencialistas às
essencialistas.
O concretismo é, realmente, apenas uma
das manifestações do cientismo que, para horror de tantos escritores e
artistas, muitos deles aliás ilustres e de primeiro plano, entrou no
campo da criação da obra de arte. É evidente que o estudo científico da
palavra, do som, da cor não são de hoje; mas a aplicação de processos
laboratoriais à elaboração da literatura, da música e da pintura é que
está muito longe do experimentalismo, mesmo quando oficinal, que o
antecedeu.
Note-se que esta situação não é
inesperada. Voltando à poesia: a evolução da crítica literária de língua
inglesa, os criticismos desde o prático de Richards até ao cognitivo de
Wimsatt, o prenunciavam — todos eles preocupados com o problema da
comunicação das palavras, até mesmo porque incidindo principalmente no
significado.
E é — entre outras razões — porque o
concretismo não descura o aspecto semântico, que não pode ele, também,
ser considerado fundamentalmente formalista.
Exemplificando: uma experiência visual
excepcionalmente vivida, e presumivelmente vivida, se encontra tanto no
justamente célebre «No meio do caminho», de Carlos Drummond de Andrade.
No meio do caminho tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
tinha uma pedra
no meio do caminho tinha uma pedra.
Nunca me esquecerei desse acontecimento
na vida de minhas retinas tão fatigadas.
Nunca me esquecerei que no meio do caminho
tinha uma pedra
tinha um pedra no meio do caminho
no meio do caminho tinha uma pedra.
— como neste poema concreto de Ferreira
Gullar:
mar azul
mar azul marco azul
mar azul marco azul barco azul
mar azul marco azul barco azul arco azul
mar azul marco azul barco azul arco azul ar azul
Apresso-me, parenteticamente, a sossegar
o leitor mais nervoso e a afiançar-lhe que reputo /página
5/ o poema de Drummond de Andrade mais perfeito, até porque mais
rico no plano estilístico (mesmo abstraindo da saborosa — porque
principalmente saborosa em Portugal — associação sócio-contextuol do
«tinha» em lugar de «havia»); e não só define uma relação pessoal entre
o poeta e o acontecimento, pela transposição ou integração deste
naquele, como qualifica essa relação (na nostalgia de um tempo passado,
invocado pelo «nunca me esquecerei » e acentuado pelos «retinas tão
fatigadas»).
Nem me proponho, aliás, nesta crítica,
ocupar-me detidamente do concretismo. Mas o que sublinho é que diferença
entre estes dois poemas — no plano semântico, a que me reportava — é
meramente de grau (designadamente de abstracção das palavras), porque o
leitor pode tirar, de um e de outro, implicações de nível diferente,
sim, mas duma mesma escala.
E, no entanto, a seguirmos o critério do
Professor Amoroso Lima, o segundo seria «verso», o primeiro é «poesia».
Voltamos, assim, à distinção entre esses
dois conceitos.
Tal dualidade talvez corresponda, no
fundo, à pseudo-disção conteúdo-forma. E digo apenas «talvez» porque o
ensaísta lembra que «forma há sempre»; «o que varia é a expressão
formal: forma imposta, o que tem de obedecer a certas regras e a certos
modelos e forma exposta, que é apenas o resultado da expressão
criadora».
Mas, se o ensaísta o lembra, fá-lo
contudo em termos reveladores: «a expressão formal» é «o
resultado» da «expressão criadora» (pode é ser apenas esse
resultado — «forma exposta» — ou, além de o ser, observar certas regras
e certos modelos — «forma imposta». Para Amoroso Lima, por conseguinte,
a expressão criadora antecede a expressão formal, ou pelo menos
distingue-se desta. Chamemos, àquela, conteúdo ou outro nome: não
deixará por isso de ser, para o ensaísta, uma realidade ainda não
enformada.
Quod erat demonstrandum,
dir-se-ia — se esta demonstração não soasse, todavia, um pouco a oco, à
beira como está dos jogos de palavras da lógica formal.
Prossigamos, pois, a análise: a forma
«exposta» seria aquela que só o é por necessidade — a forma o menos
formalista possível, já que o desgraçado do poeta não tem outro remédio
senão fazer, malgré Iui, forma exposta, com a mesma fácil
inevitabilidade com que Monsieur Jourdain fazia prosa. O conteúdo há-de
exprimir-se sempre numa forma — que remédio! E esta forma são as
palavras. Mas estas não estariam ainda condenadas a ser meramente
«verso»: não o serão quando o poeta tiver o cuidado de não obedecer a
certas regras e a certos modelos (como, por exemplo — sugiro —, à regra
de não obedecer a modelos e ao modelo de não observar regras).
O vício, creio, parte radicularmente de
dois preconceitos.
O primeiro é o de se considerarem as
palavras como «resultado» da expressão criadora, quando de facto são
elas a expressão criadora (e criada) de poesia: esta não existe no ar,
nem no espírito do poeta, mas sim expressa no papel. A poesia é o que
está ali. Lapidarmente o disse Croce: «A poesia, como qualquer outra
actividade espiritual, cria, com a solução, o problema; com a forma, o
conteúdo, que não é matéria informe mas enformada»
(7).
O segundo, concomitante, é o de se
entender que uma mera expressão verbal é necessariamente criadora de
poesia («apenas o resultado...»). Daqui resulta, por um lado, o termos
de aludir ao facto de tantos versos não chegarem a ser poesia — ou
resultaria, se ao Professor Amoroso Lima não devêssemos a implícita mas
óbvia justiça de saber que não é a esses, irrelevantes, que ele está a
referir-se. E, por outro lado, aquela «plague of expressive form»
penetrantemente dissecada por R. P. Biackmur(8) e que provém, talvez, da
romântica concepção segundo a qual o conteúdo pode ser já, em si-próprio,
poético, não sendo a forma mais do que o seu resultado.
Se esta interpretação do pensamento do
ensaísta fosse a inevitável, então limitar-me-ia a declarar firmemente,
como Cleanth Brooks: «o dualismo de forma e conteúdo põe, assim, ponto
final à actividade crítica»(9) — e pôr, eu também, ponto final.
Mas como não é certo, até mesmo devido à
fluidez da terminologia usada, que efectivamente na base da distinção
entre forma interior e forma exterior esteja a dualidade conteúdo-forma,
ponho ponto e vírgula; e lembro discretamente que existe altíssima
poesia caracterizada especialmente pela forma exposta — perdão,
exterior: quero dizer, imposta, isto é, verso. O verso, até, e
nomeadamente a sua rima, dão — segundo Wimsatt(10) — um riquíssimo
contributo à estrutura poética quando introduzem, por meio de um
carácter estudadamente e certeiramente semântico, uma espécie de
implicação contrapontal alógica em relação ao desenvolvimento lógico do
sentimento expressado — observação esta, reconheço-o, mais pertinente à
poesia das línguas anglo-saxónicas do que às poéticas latinas, ou pelo
menos à maior parte dos produtos destas, mas mesmo assim digno de
ponderação.
E, de passagem, lembrar que as regras
nem sempre são despiciendas: há até poetas que os fazem para uso
próprio, e nesse caso ao crítico cabe o descobri-las. E que a disciplina
também pode ser benéfica, designadamente quando auto-disciplina. E que a
razão nem sempre tem dado razões de queixa.
É claro que, pessoalmente, acho
excelente que haja quem, também pessoalmente, prefira o /página
6/ emocionalismo e o instinto à razão e à disciplina. Já se me
afigura, porém, menos excelente que se identifique essa predilecção, e
só ela(11), com a poesia — mormente quando tal preferência é guindada a
critério objectivo por um crítico de quem Eduardo PorteIlo cita esta
definição de 1922: «a crítica é actividade intelectual e não afectiva,
filosófica e não apenas psicológica, objectiva em seus fins e não
puramente subjectiva»(12).
Acontece, até — e refiro-me somente como
sintomático —, que em 1956 o Professor Amoroso Lima, no «Quadro
Sintético da Literatura Brasileira», se referia às três fases que também
agora discrimina. Mas então declarava, a propósito da corrente de 45:
«Já não era a luta da poesia contra o verso, da primeiro geração. Já não
era a vitória da poesia sobre o verso, da segunda geração. Era a
recomposição da poesia com o verso e, já agora, de novo, o primado do
verso sobre a poesia»(13).
Atente-se em que, há três anos, o
ensaísta considerava que, na segunda fase, a poesia vencera o verso.
Hoje, reconsiderando talvez, talvez não se relendo, admite que, quando
muito, a poesia tenha empatado com o verso, até mesmo nesse segundo
assalto do pretenso match.
Congratulemo-nos.
José Palla e Carmo
______________________________
Notas:
(5) Eduardo Partela, «Dimensões I»,
Livraria José Olympio Editora, Rio de Janeiro, 1968, p. 135.
(6) — José Lino Grünewald, «Poesia
Concreta», in “Revista do Livro”, órgão do Instituto Nacional do Livro,
Rio de Janeiro, Ano III, n.º 10 (Junho de 1918), p. 19.
(7) — Benedetto Croce, «La
Poésie», Presses Universitaires de France, Paris, 1951, p. 6.
(8) — Nomeadamente no
ensaio «D. H. Lawrence and Value in Modern Poetry»: Doubleday Anchor
Books, New York, 1957, p. 253 a 267.
(9) — Cleanth Brooks, «The
Well Wrought Urn», Harvest Books, Harcourt, Brace & Co., New York, 1947,
p. 226.
(10) — W. K. Wimsatt, Jr.,
«The Verbal Icon», The Noonday Press, New York, 1954, p. 153.
(11) — Porque, de resto, se se vai para
a hipertrofia da emoção, então a literatura e a arte serão sempre
batidas por outras actividades públicas onde aquela mais idoneamente se
manifeste. Cortar as duas orelhas, e até o rabo, não é acontecimento
raro na vida dum bom diestro; o pobre do Van Gogh só cortou uma, e mesmo
isso foi considerado excessivo.
(12)
— Eduardo Portella, op.
cit,, p. 75.
(13)
—
Transcrito in Eduardo Portella, op.
cit., p. 135.
As poesias citadas são transcritas de:
«Fazendeiro do Ar & Poesia até Agora» de Carlos Drummond de Andrade,
Livraria José Olympio, Rio de Janeiro; «Revista do Livro» ano e n.º
cit.; e da excelente «Antologia da Poesia Brasileira Moderna», selecção
e introdução de Carlos Burlamarqui Kopke, organizada com a colaboração
do «Clube de Poesia de São Paulo», São Paulo, 1953. |