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Artes - Letras - Ciências
Suplemento do n.º 266 do "Litoral"
Novembro de 1959, Ano I, n.º 3
págs. 3, 4, 5 e 6

 
POESIA

VERSUS / VERSOS

III

 

ensaio de

JOSÉ PALLA E CARMO


Chegamos assim à terceira fase da poética brasileira contemporânea — a da geração de 45, dos «neo-modernistas», dos concretistas e dos neo-concretistas em que se teria verificado «o primado do verso sobre a poesia» e da «razão» sobre o «instinto», segundo o Professor Amoroso Lima, e que não teria produzido «entretanto nenhum grande poeta».

O ambiente histórico do seu aparecimento é-nos retratado pelo crítico brasileiro Eduardo Portella, cuja citação se me afigura aqui tanto mais indicada quanto ele patenteia, algures, a sua admiração por Tristão de Ataíde:

«Menos do que um período de tranquilidade ou de confortadora paz, aos poetas da terceira geração modernista coube viver um momento histórico-social tumultuado e problemático: o fim da Segunda Grande Guerra, a queda do regime implantado no Brasil, a morte de Mário de Andrade, a conclusão do modernismo como movimento — como movimento e não como atitude — foram os acontecimentos que assinalavam a vida brasileira no instante em que eram recebidos os moços de ‘45’ (5)».

Que este ou outro momento histórico igualmente agitado e confuso, mormente neste século, dê origem a movimentos literários ou artísticos inovadores, e que estes tendam a procurar atingir o próprio cerne da respectiva categoria literária ou artística, é fenómeno tão corrente e tão natural, quase tão inevitável, que por pouco se poderia passar adiante: toma-se «for granted». Lembramo-nos da Itália e do futurismo, antes do advento dos fáscios; recordamo-nos do dadaísmo e do surrealismo, na Suíça, na França, na Alemanha, prenúncio e sintoma do mal-estar do momento; pensamos no Joyce tão irlandês transplantado; a école du regard neo-francesa, essa, faz-se lembrada.

Nem é preciso grande memória para tudo isto, nem nada disto é grande descoberta. O fenómeno tem causas remotas. Um conjunto de forças culturais centrífugas, cujo núcleo dimanante se situou na Europa da primeira década do século actual, era ele próprio o resultado a longo prazo, mas inexorável, de transformações sociais profundas.

Uma das preocupações fundamentais, e centrais, das várias correntes e tendências literárias deste século, e característica comum delas, creio ser a de um especial desajustamento do homem ao mundo em que vive. Desajustamento encarado de um ou outro ângulo, consoante o local, o momento, a propensão do escritor: e de um ponto de vista religioso, ou político, ou filosófico, ou outro qualquer (melhor diria de um ponto de vista predominantemente religioso, ou etc., porquanto uma posição definida num dos sectores implica o assumir de posições nos outros). Gide, Kafka, Joyce, Eliot, Huxley, Malraux, mais recentemente Greene, Faulkner, Sartre, Beckett — são algumas das suas mais relevantes manifestações.

A exposição desse desajustamento — que, diga-se apenas de passagem, pode levar à alternativa da desafiliação ou da intervenção — tem consequentemente variado, desde o exprimi-lo em termos vagos e imprecisos até ao focar mais ou menos directo da posição desajustada, por exemplo investigando exaustivamente um dos planos onde ela se revele. Entre estes pólos oscilam as principais tendências literárias Contemporâneas.

No caso da poesia brasileira, os modernistas de 22 exibiram uma consciência de grupo diversamente evoluída em relação ao ambiente geral da cultura em que surgiram; na geração seguinte, os poetas e uma zona da consciência social entre-aproximaram-se, mas crescentemente o marginalismo se transferia e manifestava em zonas anteriormente menos focadas — sobre algumas das quais viria a incidir a atenção da geração de 45. Esta retomava, assim, uma linha interessada e objectiva, sem dúvida individualizando o acontecimento poético mas descrevendo-o de um modo simultaneamente corrente e especioso (por vezes «sophisticated»), na medida em que a emoção era catalizada com muito mais fastidioso e selectivo rigor verbal do que na geração imediatamente antecedente, e em que essa emoção transcende a impressão aguarelística da fase primeira para corresponder a solicitações do quotidiano, sobretudo urbano. Esta posição encontraria adequada significação no emprego da palavra ou da construção insólita no meio de uma linguagem fácil e quase dialogal, normalmente metrificada mas sem esforço aparente — como é o fruto próprio das poéticas em que se operou uma fecunda transformação prosódica. /página 4/

Atente-se nestes brevíssimos exemplos:

O canto morto regressa
para esta noite puríssima
em que sou a rosa e o trigo
junto à represa fantástica.
.............................................
Perdi tudo o que era meu
na vã purificação
do meu círculo de fogo.
Perdi muito mais que tudo.

Eis-me então pobre e isolado.
                       (Ledo Ivo)

 Que fantasma sonoro, ao longe,
Vela o sol de fulgurações?
É o clarim do sargento Negro
Pontilhando alucinações.
                       (Geraldo Vidigal)

No ritmo das linhas
Imóvel o espanto permanece,
Como se a morte o recolhera
De toda a metamorfose.
                       (José Paulo Moreira da Fonseca)

A luz, o sol, o ar livre
Envolvem o sonho do engenheiro
O engenheiro sonha coisas claras:
Superfícies, tênis, um copo d’água.

O lápis, o esquadro, o papel;
O desenho, o projecto, o número:
O engenheiro pensa o mundo justo
Mundo que nenhum véu encobre.
                       (João Cabral de Melo Neto)

 

As palavras justas definem realidades exactas; por isso um João Cabral de Melo Neto é mencionado por José Lino Günewald como, de certo modo, percursor do concretismo, dele citando «um autêntico exemplo de nomeações concretas para criar uma imagem dinâmica» (6).

Não é, portanto, exacto o falar-se de formalismo imposto a propósito da geração de 45, ou pelo menos dos seus mais representativos componentes, por isso que lhes não interessava a forma pela forma.

Nem interessa, sequer, ao concretismo.

Numa outra faceta se tem também manifestado, directa ou indirectamente, o desajustamento a que há pouco aludi: naquela representada pela evolução da preocupação com a comunicação, com a palavra, pelo fascínio do problema do verbo, na literatura do século XX. Palavras tiradas ao acaso de dentro de um chapéu, ou lançadas sobre o tapete, escritura automática; murmuração onírica; caligramas; exercícios de estilo; letrismo; exploração e/ou explosão do lugar comum, da frase feita — eis um incompleto mostruário das suas formulações práticas literárias. No campo erudito ou científico: investigações intensas nos campos da fonética, de semântica, da linguística, da lógica, da sociologia, da antropologia; elaboração de uma teoria dos sinais; suas ligações com outras ciências; seu entroncar nas concepções filosóficas dominantes — desde os existencialistas às essencialistas.

O concretismo é, realmente, apenas uma das manifestações do cientismo que, para horror de tantos escritores e artistas, muitos deles aliás ilustres e de primeiro plano, entrou no campo da criação da obra de arte. É evidente que o estudo científico da palavra, do som, da cor não são de hoje; mas a aplicação de processos laboratoriais à elaboração da literatura, da música e da pintura é que está muito longe do experimentalismo, mesmo quando oficinal, que o antecedeu.

Note-se que esta situação não é inesperada. Voltando à poesia: a evolução da crítica literária de língua inglesa, os criticismos desde o prático de Richards até ao cognitivo de Wimsatt, o prenunciavam — todos eles preocupados com o problema da comunicação das palavras, até mesmo porque incidindo principalmente no significado.

E é — entre outras razões — porque o concretismo não descura o aspecto semântico, que não pode ele, também, ser considerado fundamentalmente formalista.

Exemplificando: uma experiência visual excepcionalmente vivida, e presumivelmente vivida, se encontra tanto no justamente célebre «No meio do caminho», de Carlos Drummond de Andrade.

No meio do caminho tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
tinha uma pedra
no meio do caminho tinha uma pedra.

Nunca me esquecerei desse acontecimento
na vida de minhas retinas tão fatigadas.
Nunca me esquecerei que no meio do caminho
tinha uma pedra
tinha um pedra no meio do caminho
no meio do caminho tinha uma pedra.

— como neste poema concreto de Ferreira Gullar:

mar azul
mar azul marco azul
mar azul marco azul barco azul
mar azul marco azul barco azul arco azul
mar azul marco azul barco azul arco azul ar azul

 

Apresso-me, parenteticamente, a sossegar o leitor mais nervoso e a afiançar-lhe que reputo /página 5/ o poema de Drummond de Andrade mais perfeito, até porque mais rico no plano estilístico (mesmo abstraindo da saborosa — porque principalmente saborosa em Portugal — associação sócio-contextuol do «tinha» em lugar de «havia»); e não só define uma relação pessoal entre o poeta e o acontecimento, pela transposição ou integração deste naquele, como qualifica essa relação (na nostalgia de um tempo passado, invocado pelo «nunca me esquecerei » e acentuado pelos «retinas tão fatigadas»).

Nem me proponho, aliás, nesta crítica, ocupar-me detidamente do concretismo. Mas o que sublinho é que diferença entre estes dois poemas — no plano semântico, a que me reportava — é meramente de grau (designadamente de abstracção das palavras), porque o leitor pode tirar, de um e de outro, implicações de nível diferente, sim, mas duma mesma escala.

E, no entanto, a seguirmos o critério do Professor Amoroso Lima, o segundo seria «verso», o primeiro é «poesia».

Voltamos, assim, à distinção entre esses dois conceitos.

Tal dualidade talvez corresponda, no fundo, à pseudo-disção conteúdo-forma. E digo apenas «talvez» porque o ensaísta lembra que «forma há sempre»; «o que varia é a expressão formal: forma imposta, o que tem de obedecer a certas regras e a certos modelos e forma exposta, que é apenas o resultado da expressão criadora».

Mas, se o ensaísta o lembra, fá-lo contudo em termos reveladores: «a expressão formal» é «o resultado» da «expressão criadora» (pode é ser apenas esse resultado — «forma exposta» — ou, além de o ser, observar certas regras e certos modelos — «forma imposta». Para Amoroso Lima, por conseguinte, a expressão criadora antecede a expressão formal, ou pelo menos distingue-se desta. Chamemos, àquela, conteúdo ou outro nome: não deixará por isso de ser, para o ensaísta, uma realidade ainda não enformada.

Quod erat demonstrandum, dir-se-ia — se esta demonstração não soasse, todavia, um pouco a oco, à beira como está dos jogos de palavras da lógica formal.

Prossigamos, pois, a análise: a forma «exposta» seria aquela que só o é por necessidade — a forma o menos formalista possível, já que o desgraçado do poeta não tem outro remédio senão fazer, malgré Iui, forma exposta, com a mesma fácil inevitabilidade com que Monsieur Jourdain fazia prosa. O conteúdo há-de exprimir-se sempre numa forma — que remédio! E esta forma são as palavras. Mas estas não estariam ainda condenadas a ser meramente «verso»: não o serão quando o poeta tiver o cuidado de não obedecer a certas regras e a certos modelos (como, por exemplo — sugiro —, à regra de não obedecer a modelos e ao modelo de não observar regras).

O vício, creio, parte radicularmente de dois preconceitos.

O primeiro é o de se considerarem as palavras como «resultado» da expressão criadora, quando de facto são elas a expressão criadora (e criada) de poesia: esta não existe no ar, nem no espírito do poeta, mas sim expressa no papel. A poesia é o que está ali. Lapidarmente o disse Croce: «A poesia, como qualquer outra actividade espiritual, cria, com a solução, o problema; com a forma, o conteúdo, que não é matéria informe mas enformada» (7).

O segundo, concomitante, é o de se entender que uma mera expressão verbal é necessariamente criadora de poesia («apenas o resultado...»). Daqui resulta, por um lado, o termos de aludir ao facto de tantos versos não chegarem a ser poesia — ou resultaria, se ao Professor Amoroso Lima não devêssemos a implícita mas óbvia justiça de saber que não é a esses, irrelevantes, que ele está a referir-se. E, por outro lado, aquela «plague of expressive form» penetrantemente dissecada por R. P. Biackmur(8) e que provém, talvez, da romântica concepção segundo a qual o conteúdo pode ser já, em si-próprio, poético, não sendo a forma mais do que o seu resultado.

Se esta interpretação do pensamento do ensaísta fosse a inevitável, então limitar-me-ia a declarar firmemente, como Cleanth Brooks: «o dualismo de forma e conteúdo põe, assim, ponto final à actividade crítica»(9) — e pôr, eu também, ponto final.

Mas como não é certo, até mesmo devido à fluidez da terminologia usada, que efectivamente na base da distinção entre forma interior e forma exterior esteja a dualidade conteúdo-forma, ponho ponto e vírgula; e lembro discretamente que existe altíssima poesia caracterizada especialmente pela forma exposta — perdão, exterior: quero dizer, imposta, isto é, verso. O verso, até, e nomeadamente a sua rima, dão — segundo Wimsatt(10) — um riquíssimo contributo à estrutura poética quando introduzem, por meio de um carácter estudadamente e certeiramente semântico, uma espécie de implicação contrapontal alógica em relação ao desenvolvimento lógico do sentimento expressado — observação esta, reconheço-o, mais pertinente à poesia das línguas anglo-saxónicas do que às poéticas latinas, ou pelo menos à maior parte dos produtos destas, mas mesmo assim digno de ponderação.

E, de passagem, lembrar que as regras nem sempre são despiciendas: há até poetas que os fazem para uso próprio, e nesse caso ao crítico cabe o descobri-las. E que a disciplina também pode ser benéfica, designadamente quando auto-disciplina. E que a razão nem sempre tem dado razões de queixa.

É claro que, pessoalmente, acho excelente que haja quem, também pessoalmente, prefira o /página 6/ emocionalismo e o instinto à razão e à disciplina. Já se me afigura, porém, menos excelente que se identifique essa predilecção, e só ela(11), com a poesia — mormente quando tal preferência é guindada a critério objectivo por um crítico de quem Eduardo PorteIlo cita esta definição de 1922: «a crítica é actividade intelectual e não afectiva, filosófica e não apenas psicológica, objectiva em seus fins e não puramente subjectiva»(12).

Acontece, até — e refiro-me somente como sintomático —, que em 1956 o Professor Amoroso Lima, no «Quadro Sintético da Literatura Brasileira», se referia às três fases que também agora discrimina. Mas então declarava, a propósito da corrente de 45: «Já não era a luta da poesia contra o verso, da primeiro geração. Já não era a vitória da poesia sobre o verso, da segunda geração. Era a recomposição da poesia com o verso e, já agora, de novo, o primado do verso sobre a poesia»(13).

Atente-se em que, há três anos, o ensaísta considerava que, na segunda fase, a poesia vencera o verso. Hoje, reconsiderando talvez, talvez não se relendo, admite que, quando muito, a poesia tenha empatado com o verso, até mesmo nesse segundo assalto do pretenso match.

Congratulemo-nos.

José Palla e Carmo

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Notas:

(5) Eduardo Partela, «Dimensões I», Livraria José Olympio Editora, Rio de Janeiro, 1968, p. 135.

(6) — José Lino Grünewald, «Poesia Concreta», in “Revista do Livro”, órgão do Instituto Nacional do Livro, Rio de Janeiro, Ano III, n.º 10 (Junho de 1918), p. 19.

(7) — Benedetto Croce, «La Poésie», Presses Universitaires de France, Paris, 1951, p. 6.

(8) — Nomeadamente no ensaio «D. H. Lawrence and Value in Modern Poetry»: Doubleday Anchor Books, New York, 1957, p. 253 a 267.

(9) — Cleanth Brooks, «The Well Wrought Urn», Harvest Books, Harcourt, Brace & Co., New York, 1947, p. 226.

(10) — W. K. Wimsatt, Jr., «The Verbal Icon», The Noonday Press, New York, 1954, p. 153.

(11) — Porque, de resto, se se vai para a hipertrofia da emoção, então a literatura e a arte serão sempre batidas por outras actividades públicas onde aquela mais idoneamente se manifeste. Cortar as duas orelhas, e até o rabo, não é acontecimento raro na vida dum bom diestro; o pobre do Van Gogh só cortou uma, e mesmo isso foi considerado excessivo.

(12) — Eduardo Portella, op. cit,, p. 75.

(13) Transcrito in Eduardo Portella, op. cit., p. 135.

As poesias citadas são transcritas de: «Fazendeiro do Ar & Poesia até Agora» de Carlos Drummond de Andrade, Livraria José Olympio, Rio de Janeiro; «Revista do Livro» ano e n.º cit.; e da excelente «Antologia da Poesia Brasileira Moderna», selecção e introdução de Carlos Burlamarqui Kopke, organizada com a colaboração do «Clube de Poesia de São Paulo», São Paulo, 1953.

 

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