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Artes - Letras - Ciências
Suplemento do n.º 266 do "Litoral"
Novembro de 1959, Ano I, n.º 3
págs. 12, anexo e 13

Desenho de Cláudio Torres


POESIA

 

   PEIXE CEGO

                Ao Cláudio Torres

Esta é a viagem sem fim e sem começo,
Neste mar imenso em que principio,
Esta é a viagem sem meta e sem regresso,
Sem bússola, sem rota e sem navio...

— Esta é a viagem em que um peixe cego
Alcança finalmente a foz do rio...


                         pinto da costa




DE SÚBITO O IMPLORÁVEL, A MÃO ESTÁ
PRESA PARA SEMPRE À LUVA OU SERÁ ESTA
QUE SEM REMÉDIO PRENDE A MÃO SUADA?

“NÃO IMPORTA” DIREMOS, NO ENTANTO, CONVICTOS
DE TRÁGICA IMPORTÂNCIA DA LUVA PRESA À MÃO,
DA MÃO RÍGIDA, IMBECIL, FECHADA,
PRONTA PARA O ATENTADO, INCAPAZ DE DEFESA,
DA MÃO IMPRÓPRIA PARA O CUMPRIMENTO,
PARA A CARTA DE AMOR, PARA O POEMA,
DA MÃO DE GALA, SOLENE E ENLUVADA.

A MÃO JAZ DECEPADA E, NO ENTANTO, VESTIDA,
LUXUOSÍSSIMA MÃO DE PRIMEIRÍSSIMA CLASSE,
MAS INÚTIL, QUEBRADA,
ENLUVADA E DISTINTA, NA VALETA.


            António Rebordão Navarro

 

Desenho de Maria Virgínia

Improviso no Outono

DONDE VEM? DE QUE SORRISO
OU FONTE
OU PEDRA ABERTA?
E É PARA TI QUE CANTA
OU, SIMPLESMENTE,
PARA NINGUÉM?

QUE JUVENTUDE
TE MORDE AINDA OS LÁBIOS?
QUE RUMOR DE ABELHAS
TE SOBE PELA GARGANTA?
NÃO PERGUNTES; ESCUTA:
É PARA TI QUE CANTA.
                    Tecla, Outubro 59
                    Eugénio de Andrade

 

A cidade acabou
por
Natércia Freire


Entre esfinges de Vento
e desertos de névoa,
rolaram as brancuras
de auroras deslumbrantes.

Regressar é desejo
que em nuvens se disperse.
Tudo foi num planeta
muito antes de dantes.

Recolhida e reclusa
Possuía-me em esperança.
Em brasas de silêncios
ousava o fim dos dias.

E as pátrias mais longínquas
procuravam-me, amantes
da música e da luz
atrás das tardes frias.

Foi com sóis, foi com lumes,
que recebi as bodas,
as sombras exiladas
e os bailes quase pretos.


Foi em frente do espelho
que abri as portas todas
e deixei que espreitassem
os abismos secretos.

Recolhida e reclusa
sabia que ficava;
lancei aves ao espaço
e esperei pelo regresso,

Disseram que a memória
é um presente do inferno,
um luxo de infelizes
sem época e sem preço.

Por guindastes de cobre,
com fivelas de zebre,
(tudo se passa aonde
nada tem forma ou cor)
subiu a moça pobre,
desceu morta de febre...
Com liquefeitos portos
sonhava e se deitou.
Porque os deuses são mortos
e a cidade acabou.

   

sinfonia incompleta

 

 1

 Fui Rei!
Queimei o meu Reino,
Parti o meu Ceptro,
Perdi o meu Trono!

Meu Palácio abandonado
É só abandono!

 E tive tudo o que queria:
Senhor d’Aquém-d’Além Céu,
— Tudo o que a vista abrangia
Era Meu.

 Fui Rei!
Fui Dono e Senhor
De quanta riqueza havia:
— Do Reino que possuia,
Do Palácio de abandono.
Do Ceptro, que me era escudo,
E do meu Trono.

 E eu, que fui dono de tudo,
Eu, que fui Rei! — nem já de mim sou dono!

Meti Palácio abandonado
É só abandono!

2

 Fui belo!
Porque fui belo.., fui querido.
Fui desejado,
Desejado e repelido,
Ai, tantas vezes preferido
E tantas atraiçoado,
Mas sempre de novo erguido
Às honras de bem-amado!

Sim, fui belo!
Que o exprima
(Se serve para exprimir),
Não digo já meu cabelo!
Não minha boca a dizê-lo!
Não meu olhar a sorrir!
................................

Mas o artifício da rima
Que há-de vir,
Se a porta do andar de cima,
Em vez de fechar, — se abrir.

3

Fui Menino,
Esse Menino que sou!
— Triste Menino franzino
De nervos de violino
Que a vida me não matou

 Atirei
Todos meus  sonhos à rua...
Fiz,
Desfiz barcos de papel
Que, lírico e sedutor,
Perdi nas águas do Mar...
Peguei na Lua,
Mas sem lhe poder pegar!...

Ai, mundos que descobri.
Que possuí
A sonhar!...

Fui Menino,
Menino que ainda sou...,
Porque sou Menino ainda
No caminho que não finda
E já findou!...

Ai, nervos de violino
Chorando dor!
Ai! meu Menino franzino,
— Meu Menino sonhador!...

«Que negro destino.
Te fez ser Menino,
Te fez ser Poeta,
Te fez ser Cantor?!
Quem deu ao Menino
Uma alma tão preta,
De tão negra cor?!»

Menino triste e franzino,
— Fui Menino sonhador!

Lancei estrelas ao ar,
— Meus papagaios de cor!
E fiquei, Menino, a olhar
A dor de vê-los rasgar
Na minha Dor!

«Que negro destino
Te fez ser Menino,
Te fez ser Poeta,
Te fez ser Cantor?!»

4

Rei, Bem-Amado, Menino,
— Que mais serei eu agora?

Que insondável desatino
De Menino ou Não-Menino
Se deplora?

— Quis devorar o Destino,
Mas Ele é quem me devora!!

Pedro Zargo
1950-1959

 

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