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Artes - Letras - Ciências
Suplemento do n.º 254 do "Litoral"
Setembro de 1959, Ano I, n.º 1
págs. 1 e 2

Poesia versus versos - I

José Palla e Carmo

Penetremos surdamente no reino das palavras.
Lá estão os poemas que esperam ser escritos.
..............................................................
Chega mais para perto e contempla as palavras. 

(Carlos Drummond de Andrade, «Procura da Poesia»)

 

É curioso — mas não surpreendente — notar-se que, embora em Inglaterra e nos Estados Unidos da América do Norte se invoque a comunidade entre os dois países com muito menos (ou quase nenhuma) ênfase do que, em Portugal e no Brasil, se faz em relação à comunidade dos países de língua portuguesa, nos primeiros se verifica uma fluida intercomunicação, no domínio do produção poética, que se não dá nestes.

Não me reporto apenas a um fluxo e refluxo entre poetas, mas muito principalmente ao /pág. 2/ interesse e conhecimento manifestados pela grande massa do público: incide, pois, este meu reparo mais nos indivíduos consumidores de poesia do que nos indivíduos que a produzem. Que estes, como oficiais do mesmo ofício, directamente interessados, acompanhem a evolução poética que se processa num outro país de língua comum (se bem que de diferente linguagem), nada tem de extraordinário: o estranho é que nem todos o façam. Mas o próprio leitor inglês ou americano consome quase igualmente Yeats e Frost, Dylan Thomas e Marianne Moore, Thom Gunn e Kenneth Rexroth (ia a dizer Eliot e Eliot, Auden e Auden — mas estes são casos especiais). Em confronto, creio não ser muito exagerado afirmar que a grande parte do público português ainda agora vai no primeiro Bandeira; e que, no Brasil, para cá de Pessoa, poucos poetas portugueses sejam do domínio geral. Nem a menos ou mais demorada permanência física, cá e lá, de poetas de lá e de cá, parece ter minorado grandemente esta carência de comunicação.

Não posso, porém, deter-me neste fenómeno, nem nas suas causas.

Quero apenas salientar, por um lado, o enorme interesse que nos deriva da promessa — e do início do seu cumprimento — da publicação, na página literária dum jornal diário português(1), duma série de artigos, da autoria de escritores do Brasil, dedicada à poesia brasileira contemporânea; e, por outro lado, a responsabilidade que para os seus autores decorre e deve começar por lhes impor — e mais iniludivelmente, se possível, do que noutro qualquer condicionalismo — um rigoroso propósito de objectividade e de clareza.

São-me estas linhas imediatamente ditadas pelo desapontamento que me fica da leitura do primeiro artigo dessa série: e «Panorâmica da Poesia Brasileira e Contemporânea»’, de AIceu Amoroso Lima(2).

Proponho-me analisar e fundamentar os motivos que me frustraram em desconsolo melancólico o alvissareiro alvoroço da leitura, em lugar de me limitar a lamentá-los — que não os lamento, e muito menos ao prestigioso ensaísta brasileiro.

Nesse aspecto, pelo menos, me queria diferençar daqueles comentadores, grandes hipócritas quase todos, que, antes de entrarem num cerradíssimo e pessoalíssimo ataque a uma obra, prolegomenam com um elogio em forma — e geralmente excessivo — ao autor dela. Quase sempre começam por lamentar, com pungida tristeza, o facto de se verem obrigados, pelo seu estrito dever de críticos, a apontar os defeitos daquele específico trabalho de tão geralmente impecável autor. Também quase sempre confessam, mesmo, a dolorosa surpresa de que tão débil criação possa ser fruto daquele tão excelente criador (e nessa altura invocam a excepção que confirma a regra, etc.). Que essa sua atitude é hipócrita, e hipocrítica, provam-no a venenosa volúpia da insinuação generalizadora, a alegria cínica da destruição exibicionista, a empáfia auto-suficiente do pormenor de cordel, com que, logo após, varrem a feira (obra e autor) ou julgam varrê-la. Tal regra do jogo tem, evidentemente, um objectivo último (e apenas por isso não é esse procedimento inteiramente gratuito) e assaz subtil: quanto maior afirmarem a estatura do autor criticado, tanto maior resultará a craveira deles, críticos, que não só ousam atracar-se a tamanho gigante, como o reduzem a cisco com uma perna às costas (posição que eles bem podem considerar de equilíbrio, dado que o tripé ainda é eficaz como meio de suporte). Por isso tendem eles, como há pouco se salientava, a hipertrofiar o elogio prévio num retrato maior que nacture. A ambição da pulga é sugar um elefante. Os braços esticados do pescador-de-margem mal abarcam o tamanho do peixe descrito como pescado.

Porque, todavia, se não deve dar excessiva importância — e, normalmente, qualquer importância que se lhes dê é excessiva — a esta e a outras práticas desses comentadores literários, não fugirei à seca justiça de assinalar o facto objectivo de o portador do nome Tristão de Athayde ser uma das mais ilustres figuras do ensaísmo brasileiro — até mesmo porque afirmá-lo é tão-somente aludir a uma realidade irrecusável.

Entre o reconhecê-lo e o considerar que o seu padrão crítico — aliás respeitabilíssimo, além de naturalíssimo num intelectual da sua notável geração — pode estar, em 1959, ultrapassado, não há, porém, qualquer incompatibilidade, nem isso significa que este escrito seu seja um produto inferior. Reputo-o, pelo contrário, extremamente arguto e aliciante. E é o perigoso carácter de que resulta este último adjectivo — uma síntese, obtida pela penetrante aplicação do primeiro — que me inculca o exame de tal pendor crítico e o ir verificar, tão objectivamente quanto eu puder, se é realmente este o mais idóneo a uma recapitulação apreciativa da poesia do Brasil deste século.

(Continuaremos >>>)

José Palla e Carmo

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Notas:

(1) — “O Comércio do Porto”.

(2) — In página “Cultura e Arte» de “O Comércio do Porto” de 9-6-1959.

 

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