Penetremos surdamente no reino das
palavras.
Lá estão os poemas que esperam ser escritos.
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Chega mais para perto e contempla as palavras.
(Carlos Drummond de
Andrade, «Procura da Poesia»)
É curioso — mas não
surpreendente — notar-se que, embora em Inglaterra e nos Estados Unidos
da América do Norte se invoque a comunidade entre os dois países com
muito menos (ou quase nenhuma) ênfase do que, em Portugal e no Brasil,
se faz em relação à comunidade dos países de língua portuguesa, nos
primeiros se verifica uma fluida intercomunicação, no domínio do
produção poética, que se não dá nestes.
Não me reporto apenas
a um fluxo e refluxo entre poetas, mas muito principalmente ao /pág. 2/
interesse e conhecimento manifestados pela grande massa do público:
incide, pois, este meu reparo mais nos indivíduos consumidores de poesia
do que nos indivíduos que a produzem. Que estes, como oficiais do mesmo
ofício, directamente interessados, acompanhem a evolução poética que se
processa num outro país de língua comum (se bem que de diferente
linguagem), nada tem de extraordinário: o estranho é que nem todos o
façam. Mas o próprio leitor inglês ou americano consome quase igualmente
Yeats e Frost, Dylan Thomas e Marianne Moore, Thom Gunn e Kenneth
Rexroth (ia a dizer Eliot e Eliot, Auden e Auden — mas estes são casos
especiais). Em confronto, creio não ser muito exagerado afirmar que a
grande parte do público português ainda agora vai no primeiro Bandeira;
e que, no Brasil, para cá de Pessoa, poucos poetas portugueses sejam do
domínio geral. Nem a menos ou mais demorada permanência física, cá e lá,
de poetas de lá e de cá, parece ter minorado grandemente esta carência
de comunicação.
Não posso, porém,
deter-me neste fenómeno, nem nas suas causas.
Quero apenas
salientar, por um lado, o enorme interesse que nos deriva da promessa —
e do início do seu cumprimento — da publicação, na página literária dum
jornal diário português(1),
duma série de artigos, da autoria de escritores do Brasil, dedicada à
poesia brasileira contemporânea; e, por outro lado, a responsabilidade
que para os seus autores decorre e deve começar por lhes impor — e mais
iniludivelmente, se possível, do que noutro qualquer condicionalismo —
um rigoroso propósito de objectividade e de clareza.
São-me estas linhas
imediatamente ditadas pelo desapontamento que me fica da leitura do
primeiro artigo dessa série: e «Panorâmica da Poesia Brasileira e
Contemporânea»’, de AIceu Amoroso Lima(2).
Proponho-me analisar
e fundamentar os motivos que me frustraram em desconsolo melancólico o
alvissareiro alvoroço da leitura, em lugar de me limitar a lamentá-los —
que não os lamento, e muito menos ao prestigioso ensaísta brasileiro.
Nesse aspecto, pelo
menos, me queria diferençar daqueles comentadores, grandes hipócritas
quase todos, que, antes de entrarem num cerradíssimo e pessoalíssimo
ataque a uma obra, prolegomenam com um elogio em forma — e geralmente
excessivo — ao autor dela. Quase sempre começam por lamentar, com
pungida tristeza, o facto de se verem obrigados, pelo seu estrito dever
de críticos, a apontar os defeitos daquele específico trabalho de tão
geralmente impecável autor. Também quase sempre confessam, mesmo, a
dolorosa surpresa de que tão débil criação possa ser fruto daquele tão
excelente criador (e nessa altura invocam a excepção que confirma a
regra, etc.). Que essa sua atitude é hipócrita, e hipocrítica, provam-no
a venenosa volúpia da insinuação generalizadora, a alegria cínica da
destruição exibicionista, a empáfia auto-suficiente do pormenor de
cordel, com que, logo após, varrem a feira (obra e autor) ou julgam
varrê-la. Tal regra do jogo tem, evidentemente, um objectivo último (e
apenas por isso não é esse procedimento inteiramente gratuito) e assaz
subtil: quanto maior afirmarem a estatura do autor criticado, tanto
maior resultará a craveira deles, críticos, que não só ousam atracar-se
a tamanho gigante, como o reduzem a cisco com uma perna às costas
(posição que eles bem podem considerar de equilíbrio, dado que o tripé
ainda é eficaz como meio de suporte). Por isso tendem eles, como há
pouco se salientava, a hipertrofiar o elogio prévio num retrato maior
que nacture. A ambição da pulga é sugar um elefante. Os braços
esticados do pescador-de-margem mal abarcam o tamanho do peixe descrito
como pescado.
Porque, todavia, se
não deve dar excessiva importância — e, normalmente, qualquer
importância que se lhes dê é excessiva — a esta e a outras práticas
desses comentadores literários, não fugirei à seca justiça de assinalar
o facto objectivo de o portador do nome Tristão de Athayde ser uma das
mais ilustres figuras do ensaísmo brasileiro — até mesmo porque
afirmá-lo é tão-somente aludir a uma realidade irrecusável.
Entre o reconhecê-lo
e o considerar que o seu padrão crítico — aliás respeitabilíssimo, além
de naturalíssimo num intelectual da sua notável geração — pode estar, em
1959, ultrapassado, não há, porém, qualquer incompatibilidade, nem isso
significa que este escrito seu seja um produto inferior. Reputo-o, pelo
contrário, extremamente arguto e aliciante. E é o perigoso carácter de
que resulta este último adjectivo — uma síntese, obtida pela penetrante
aplicação do primeiro — que me inculca o exame de tal pendor crítico e o
ir verificar, tão objectivamente quanto eu puder, se é realmente este o
mais idóneo a uma recapitulação apreciativa da poesia do Brasil deste
século.
(Continuaremos
>>>)
José Palla e Carmo
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Notas:
(1) — “O Comércio do Porto”.
(2) — In página “Cultura
e Arte» de “O Comércio do Porto” de 9-6-1959. |