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Artes - Letras - Ciências
Suplemento do n.º 254 do "Litoral"
Setembro de 1959, Ano I, n.º 1
págs. 11 e 14

 

 
Variações

quase sentimentais sobre

UMA CIDADE

por VASCO BRANCO

Que posso eu fazer? Como falar dela? Repetir os lugares comuns tão ao jeito de certas camarilhas, de certos sectores imobilistas, e que há tanto nos magoam os ouvidos? Chamar-lhe a Veneza do País ou enfeitá-la com roupagem de igual quilate e de tão pronunciado ridículo?

 

Uma cidade não se descreve, caros amigos! Vive-se. Uma cidade não se retrata, respira-se. Sinto, algures, os protestos clamorosos da eloquência, as patadas da verborreia furiosa.

Perdão, mas insisto: uma cidade não se descreve, — vive-se. Como posso eu segurar com palavras aquela melancolia de que sinto embebidas as suas tardes outonais? Como posso eu suster aquele Sol grande e amarelo que, nos dias breves, se achata no riscado ambíguo das salinas alagadas, logo que as sereias das fábricas a saturam com os seus lamentos?!

E os sinos?!

Dlim, dlom!...dlim, dlom!...

A sua música penetra-nos e alastra como um líquido morno. Transporta-a uma aragem pertinaz, que vem temperada com sal e com o odor esquisito da lodaça. E a luz desta cidade, amigos?! Digam lá! É coisa que se descreva? É coisa que se segure numa mão e se aperte como qualquer objecto conhecido? A luz inunda-nos, simplesmente. E nós aceitamo-la humildes, e com aquele alheamento com que, desde crianças, nos entregamos às carícias dos nossos pais.

  Reprodução de um quadro de Vasco Branco.

«Você já reparou na cidade?»

«Que tem ela de especial?!»

Sim, que tem ela de especial que possa impressionar o visitante? «É pitoresca. Não há dúvida, é pitoresca...»

O forasteiro avalia-a apenas com os seus sentidos, e já não é pouco. Sim, não lhe podemos exigir mais, esse muito mais que se insinua sub-repticiamente em cada fibra do nosso corpo, em cada átomo do nosso soma e aí fica de pedra e cal, resistindo às investidas do tempo e até aos abanões de outros lugares estranhos e porventura mais notáveis.

«Você já deu, alguma vez, um passeio de barco até S. Jacinto, até à Torreira?»

«Fiz isso há anos, na lancha do Turismo... É um passeio magnífico...»

Que significado tem o seu magnífico? Ah! Para nós, aveirenses, tem-no realmente. Significa muitíssimo mais do que aquilo que parece. Contém um mundo de imponderáveis impossível de descrever. Pobres palavras! Que deixam tão aquém a força contida naquilo que desejaríamos expressar! Já repararam que nunca conseguimos dar com as palavras a verdadeira tinta de certos coloridos? Fica-nos sempre a impressão de se ter perdido o melhor pelo caminho, de termos sido logrados, algures.

«Que comovente ingenuidade! São incomparáveis esses desenhos dos vossos moliceiros!...»

Por mais justo e delicado que o forasteiro deseje ser, sentimo-nos roubados. Sim, roubados. É que nunca nos habituámos a considerar essa ria, esses barcos, esses desenhos uma coisa autónoma; é que nunca conseguimos isolá-los do conjunto a que chamamos cidade e essa... essa é para nós tão grande que não lhe encontramos qualificativo capaz de a conter.

«Mas, então, sois tão cegos que não lhe apontais os defeitos, com coragem, desassombradamente?!»

«Defeitos?! Ah! Sim, defeitos...»

Engrossamos a voz como quando pretendemos repreender os nossos /pág. 14/ filhos, olhamo-la com severidade e falamos durante muito tempo na sua nudez e na necessária arborização, na sua falta de acidentes e consequente monotonia, nos seus pardieiros chegados à beira-mar, no cheiro da sua ria à hora da vazante, na agressividade do seu clima, um clima danado que nos enche de reumatismo e nos ensalitra as casas. O postiço da nossa indignação cede à ternura mal dissimulada, e, quase insensivelmente, surpreendemo-nos já muito longe do corajoso malsinar.

«Mas, afinal, que tem a tua cidade de extraordinário?!» – perguntam-me com frequência.

Lá o que tem, não sei. Não sei, confesso. Por vezes, imagino o Mundo sem ela. E sem ela só posso imaginar uma vastidão negra, um Mundo incompleto, como se lhe faltassem alguns dos dias da Criação.

Bem sei, caros amigos! Bem sei. No mapa do país é um ponto de segunda ou terceira grandeza; no mapa da península não ultrapassa uma irreverência de mosca; no mapa da Europa vimo-nos em sérios embaraços para a localizar, e no mapa-mundo, aí, meu Deus! Não há vestígios da sua existência.

Sim, lá o que tem, não sei. Apenas uma espécie de intuito me afirma uma conivência existente entre ambos, um acordo íntimo a que nem falta um pudor que nos obriga, por vezes, a esconder na injúria o muito que lhe queremos.

Já tenho tentado compará-la a qualquer coisa palpável. Muitas das horas da minha vida que com ela esbanjei – tantas foram! – gastei-as imaginando-a uma mulher à saída do banho, fresca, delicada, de olhos azulados, de pele muito clara e cabelo solto caindo ao longo do corpo salpicado de pequenas gotas... Quanto a mim, é esta Imagem que mais se lhe assemelha. E sabem? Essa mulher, que sempre a imagino, nunca envelhece!... Mas isto é apenas uma imagem literária, que se dissolve logo que o Sol aquece os telhados húmidos e o vento arrasta os resíduos de neblina. A minha cidade é o que é; nada mais.

«Quando estou ausente durante muito tempo, ao aproximar-me, adivinho-a pelo cheiro.»

«Não sejas piegas. Estamos na época dos sputnicks!...»

«Sinto o cheiro a maresia, afianço-te.»

«Sentes, talvez, o fedor daquela cloaca a que vocês chamam, pomposamente, o Canal Central...»

Reprodução de um quadro de Vasco Branco.  

Não respondo à insolência. Se ela tem defeitos – e tem-nos evidentemente – deixem-me ser eu a notá-los. Ora digam-me, por favor: já alguma vez fiz notar ao Herculano o seu hálito pestilento? Não o tenho suportado anos após anos? Não tenho suportado, também, corajosamente, e até com uma ponta de riso, as anedotas sujas e sem graça do Alves Gameiro? Sejam compreensivos. Eu não peço que o sejam comigo, nem com qualquer pessoa de família. Trata-se dela, sabem? E ela...

Já viram? Então eu, uma pessoa que se tem na conta de sensata, que se julga vacinada contra impaludismos sentimentais e insensível à influência perniciosa de todos os Abranhos deste mundo, deixo-me arrastar, estupidamente, por isto! Isto que nem chega a ser um valor que me pertença, uma obra de arte, ou uma mulher bonita!...

DO LIVRO, EM PREPARAÇÃO, «ROTEIRO IMPOPULAR» – Aveiro, 10-VI-1959 

Vasco Branco

 

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