Uma cidade não se
descreve, caros amigos! Vive-se. Uma cidade não se retrata, respira-se.
Sinto, algures, os protestos clamorosos da eloquência, as patadas da
verborreia furiosa.
Perdão, mas insisto:
uma cidade não se descreve, — vive-se. Como posso eu segurar com
palavras aquela melancolia de que sinto embebidas as suas tardes
outonais? Como posso eu suster aquele Sol grande e amarelo que, nos dias
breves, se achata no riscado ambíguo das salinas alagadas, logo que as
sereias das fábricas a saturam com os seus lamentos?!
E os sinos?!
Dlim, dlom!...dlim,
dlom!...
A sua música
penetra-nos e alastra como um líquido morno. Transporta-a uma aragem
pertinaz, que vem temperada com sal e com o odor esquisito da lodaça.
E a luz desta cidade, amigos?! Digam lá! É coisa que se descreva? É
coisa que se segure numa mão e se aperte como qualquer objecto
conhecido? A luz inunda-nos, simplesmente. E nós aceitamo-la
humildes, e com aquele alheamento com que, desde crianças, nos
entregamos às carícias dos nossos pais. |
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«Você já reparou na
cidade?»
«Que tem ela de
especial?!»
Sim, que tem ela de
especial que possa impressionar o visitante? «É pitoresca. Não há
dúvida, é pitoresca...»
O forasteiro avalia-a
apenas com os seus sentidos, e já não é pouco. Sim, não lhe podemos
exigir mais, esse muito mais que se insinua sub-repticiamente em cada
fibra do nosso corpo, em cada átomo do nosso soma e aí fica de pedra e
cal, resistindo às investidas do tempo e até aos abanões de outros
lugares estranhos e porventura mais notáveis.
«Você já deu, alguma
vez, um passeio de barco até S. Jacinto, até à Torreira?»
«Fiz isso há anos, na
lancha do Turismo... É um passeio magnífico...»
Que significado tem o
seu magnífico? Ah! Para nós, aveirenses, tem-no realmente. Significa
muitíssimo mais do que aquilo que parece. Contém um mundo de
imponderáveis impossível de descrever. Pobres palavras! Que deixam tão
aquém a força contida naquilo que desejaríamos expressar! Já repararam
que nunca conseguimos dar com as palavras a verdadeira tinta de certos
coloridos? Fica-nos sempre a impressão de se ter perdido o melhor pelo
caminho, de termos sido logrados, algures.
«Que comovente
ingenuidade! São incomparáveis esses desenhos dos vossos moliceiros!...»
Por mais justo e
delicado que o forasteiro deseje ser, sentimo-nos roubados. Sim,
roubados. É que nunca nos habituámos a considerar essa ria, esses
barcos, esses desenhos uma coisa autónoma; é que nunca conseguimos
isolá-los do conjunto a que chamamos cidade e essa... essa é para nós
tão grande que não lhe encontramos qualificativo capaz de a conter.
«Mas, então, sois tão
cegos que não lhe apontais os defeitos, com coragem,
desassombradamente?!»
«Defeitos?! Ah! Sim,
defeitos...»
Engrossamos a voz
como quando pretendemos repreender os nossos /pág.
14/ filhos, olhamo-la com severidade e falamos durante
muito tempo na sua nudez e na necessária arborização, na sua falta de
acidentes e consequente monotonia, nos seus pardieiros chegados à
beira-mar, no cheiro da sua ria à hora da vazante, na agressividade do
seu clima, um clima danado que nos enche de reumatismo e nos ensalitra
as casas. O postiço da nossa indignação cede à ternura mal dissimulada,
e, quase insensivelmente, surpreendemo-nos já muito longe do corajoso
malsinar.
«Mas, afinal, que tem
a tua cidade de extraordinário?!» – perguntam-me com frequência.
Lá o que tem, não
sei. Não sei, confesso. Por vezes, imagino o Mundo sem ela. E sem ela só
posso imaginar uma vastidão negra, um Mundo incompleto, como se lhe
faltassem alguns dos dias da Criação.
Bem sei, caros
amigos! Bem sei. No mapa do país é um ponto de segunda ou terceira
grandeza; no mapa da península não ultrapassa uma irreverência de mosca;
no mapa da Europa vimo-nos em sérios embaraços para a localizar, e no
mapa-mundo, aí, meu Deus! Não há vestígios da sua existência.
Sim, lá o que tem,
não sei. Apenas uma espécie de intuito me afirma uma conivência
existente entre ambos, um acordo íntimo a que nem falta um pudor que nos
obriga, por vezes, a esconder na injúria o muito que lhe queremos.
Já tenho tentado
compará-la a qualquer coisa palpável. Muitas das horas da minha vida que
com ela esbanjei – tantas foram! – gastei-as imaginando-a uma mulher à
saída do banho, fresca, delicada, de olhos azulados, de pele muito clara
e cabelo solto caindo ao longo do corpo salpicado de pequenas gotas...
Quanto a mim, é esta Imagem que mais se lhe assemelha. E sabem? Essa
mulher, que sempre a imagino, nunca envelhece!... Mas isto é apenas uma
imagem literária, que se dissolve logo que o Sol aquece os telhados
húmidos e o vento arrasta os resíduos de neblina. A minha cidade é o que
é; nada mais.
«Quando estou ausente
durante muito tempo, ao aproximar-me, adivinho-a pelo cheiro.»
«Não sejas piegas.
Estamos na época dos sputnicks!...»
«Sinto o cheiro a
maresia, afianço-te.»
«Sentes, talvez, o
fedor daquela cloaca a que vocês chamam, pomposamente, o Canal
Central...»
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Não respondo à
insolência. Se ela tem defeitos – e tem-nos evidentemente –
deixem-me ser eu a notá-los. Ora digam-me, por favor: já alguma vez
fiz notar ao Herculano o seu hálito pestilento? Não o tenho
suportado anos após anos? Não tenho suportado, também,
corajosamente, e até com uma ponta de riso, as anedotas sujas e sem
graça do Alves Gameiro? Sejam compreensivos. Eu não peço que o sejam
comigo, nem com qualquer pessoa de família. Trata-se dela, sabem? E
ela...
Já viram? Então
eu, uma pessoa que se tem na conta de sensata, que se julga vacinada
contra impaludismos sentimentais e insensível à influência
perniciosa de todos os Abranhos deste mundo, deixo-me arrastar,
estupidamente, por isto! Isto que nem chega a ser um valor que me
pertença, uma obra de arte, ou uma mulher bonita!... |
DO LIVRO, EM PREPARAÇÃO, «ROTEIRO
IMPOPULAR» – Aveiro, 10-VI-1959
Vasco Branco |