ENTRADO no Café, M sentou-se, como de costume, do lado esquerdo, frente à
porta. Chovia, o café abafava de gente. Para M era cómodo ter já os
movimentos mecanizados, executar tudo com perfeição, sem perturbar as
divagações em que costumava perder-se. Mas não hoje. O criado veio, num
giro rápido de dançarino, voando com a bandeja em equilíbrio difícil,
por sobre as mesas apinhadas, sobre alguns capotes amontoados nos
intervalos. E de passagem, largou-lhe o garoto diante. A noite,
por causa das insónias, tomava apenas um garoto. Na realidade, só
uma vez admitira que o café simples lhe estragasse o sono. Mas desde
então, o criado habituara-se a trazer-lhe café com leite e M não o
contrariou. Foi bebendo devagar, os olhos fixos no copo ou na mesa, pelo
receio de que o sujeito aparecesse. Era um copo facetado, uma mesa de
mármore negro com veios brancos como rastos de nuvens. A superfície
escura do café baixava no copo; foi por fim o resto barrento e pastoso
do açúcar. E M teve enfim de encarar a multidão. Num extremo do café,
que assim longo sugeria um troço de estrada subterrânea, a porta
giratória rodava continuamente, apanhando, com as pás, gente que atirava
para dentro ou atirava para a rua. Lembrava a M uma roda dos antigos
barcos do Mississipi. Como àquela distância ninguém poderia
reconhecê-lo, pôs-se a acompanhar a rotação da porta até lhe doer a
cabeça. A gente que entrava batia os pés e a que saía erguia a gola dos
capotes. A certa altura, porém, uma das pás envidraçadas atirou para
dentro com o tipo. Era baixo, anegrado e seco, tinha uma boca podre e
olhos frios. A pele lembrava um bocado de couro velho, já sem préstimo,
do que aparece entre o lixo. M acompanhou-o de esguelha, passo a passo,
por sobre o muro de gente, vendo-lhe só o chapéu. Tinha a esperança de
que se acomodasse lá para trás, numa das mesas do fundo. Mas o homem,
depois de circunvagar os olhos enxutos, sentou-se tranquilamente do lado
direito, virado para ele. Seria cómoda, para M, a posição do tipo, se a
cortina de gente os separasse sempre. Mas os corredores iam ficando
livres, havia até algumas mesas vazias. Devia ser a hora do cinema. M
via o homem perfeitamente. Perturbou-se, olhou aos lados, outra vez para
a porta, puxou enfim do bolso, vagarosamente, o papel e a onça, pôs-se o
embrulhar um novo cigarro. Tinha a certeza de que o sujeito o fitava por
baixo do chapéu desabado, com aqueles seus olhos frios, vagarosos, mas
directos, que se colavam e oprimiam como os pára-choques dos vagões. M
arrastou o olhar pelo chão, ergueu-o até ao relógio suspenso no tecto,
como se esticasse tiras de borracha que lho puxassem para outro lado.
Estava irritado com os colegas que não apareciam enfim para lhe fazerem
companhia, dissolverem-lhe a presença. Não seria então estranho que não
cumprimentasse o sujeito, visto estar distraído com os colegas.
Tinham-lho apresentado precisamente na véspera e, como estava numa roda
conhecida, falou um tanto à vontade. M costumava excitar-se numa
conversa, falar a descoberto, com a obscura convicção de que a sua
espontaneidade era prova de inocência ou de que era inofensivo. Aliás,
as suas ideias andavam nos compêndios. No entanto, não andavam lá as
conclusões. O homem magro disse apenas:
— Raciocínios
curiosos.
Dissera isto
vagarosamente, rodando a cabeça com os seus olhos pregados, e em volta
correu um silêncio de expectativa. M tremeu. Quem era o tipo? A máscara
do homem, negra e de um amarelo de azeite, toda esburgada de ossos,
tinha a frieza e indiferença de uma máscara de cadáver. Só depois de o
homem se afastar, um amigo lhe tomou o braço e lhe explicou. Agora o
homem estava ali diante, com o mesmo olhar torvo, e M lutava por não
cumprimentá-lo, como se o não tivesse visto. Encaixou o queixo na cova
da mão e olhou o ar, para que todos o julgassem absorto. Estudava
História, Economia, e, como vivia quase só, nada admirava /página
23/ que estivesse absorto. Mas a presença do homem obcecava-o.
Sentia-lhe o peso do olhar sinistro. Se ao menos o outro estivesse
acompanhado de qualquer pessoa desconhecida.
Mas não. Sozinho
também diante do copo, tinha por certo de descansar a carga dos olhos na
mesa oposta. Tinha? M trouxe os olhos do ar, vergando um pouco a cabeça
e, lentamente, foi torcendo à esquerda, puxando-os quanto podia para o
canto, até doerem. Estacou: a mesma cara de múmia, o mesmo brilho frio
dos dois olhinhos pretos. Até que ponto se teria comprometido? Passara
todo a manhã num alvoroço, esperando a cada instante que lhe batessem à
porta com o anúncio da condenação. Mas nada viera. Certamente o homem
deixava passar alguns dias, para o colher de surpresa. O criado passou à
beira da mesa carregado de cafés e bateu, com a mão livre, uma pancada
seca na pedra. Estremeceu. Estaria o tipo mesmo a olhar para ele? Puxou
o chapéu para a testa, tentou de novo. Melhor talvez deixar cair os
fósforos e aproveitar, quando os apanhasse. Porém, outra vez M teve a
impressão de que o tipo se lhe colava aos gestos, observando exactamente
como apanhava os fósforos. Agitou-se na cadeira, atirou os olhos a uma
parede, disposto a deixá-los para ali, até que os colegas viessem. Mas
não aguentou. Doía-lhe a memória daquele olhar duro e começou a imaginar
quantas tragédias o tipo teria presenciado. Porque uns olhos assim,
serenos e cruéis, só depois de um treino longo poderiam ter chegado
àquela isenção perfeita. Num golpe de audácia, voltou-se. Aí estava: o
homem olhava distraidamente para os lados, passara mesmo a mão velha
pela fronte. Porém, logo a seguir, a mão compôs o chapéu e de novo a
cabeça, com aqueles olhos estáticos, torceu para a direita. Outra vez o
criado lhe passou à ilharga, batendo a pancadinha com os nós dos dedos.
Vinha do balcão com a bandeja no ar, erguia a mão direita de dedos
fechados, chegava ali e descarregava a pancada sempre na mesma mesa. Era
decerto um hábito que lhe dava grande prazer, porque de vez nenhuma que
passou para baixo esqueceu o toque seco dos nós dos dedos sobre o
mármore.
Agora M puxou o
lenço do bolso e tentou de novo. Precisava de ter uma certeza.
Infelizmente, porém, sentara-se à mesa do tipo um sujeito que M
conhecia há mais tempo. Eram agora dois pares de olhos; e, se desse
de frente com um deles, teria de cumprimentar um e outro. Começava a
sentir-se verdadeiramente mal, um vago enjoo ondeava-lhe o estômago.
Seria do fumo, de estar para ali uma eternidade numa atmosfera
empestada. Mas para onde ir? Lá fora chovia, para casa era ainda
cedo. Voltou à porta giratória, mas dos pulhas dos colegas nenhum
era atirado para o café. Pelo corredor central passou o pai de um
seu amigo, mas, para lhe tirar o chapéu, teria de aproveitar
exactamente a ocasião em que lhe passasse na linha recta que o
ligava ao outro. Baixou os olhos para a mesa, tamborilando,
concentrado. Fora simplesmente grosseiro; o velho podia dizer ao
filho que M fingira não o ver. Poça! Já não aguentava mais.
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Uma vez, porém,
uma vez ainda se sentiu fascinado. Com certeza os dois sujeitos
estavam já falando dele, o homem de olhar morto e feroz trocaria
impressões, diria coisas sinistras ao outro. Sentiu-se condenado e
outra vez o terror o inundou. Arre! Tudo esquecera! Tudo fora uma
tragédia tecida de fumo. Em todo o caso, olhou. Meteu a mão ao
bolso, puxou de novo os olhos ao canto: o olhar gélido do homem, de
sob a aba do chapéu, circunvagou lentamente pela sala, veio pousar
na mesa dele. |
Arredou os olhos bruscamente e meteu num ímpeto os fósforos no
bolso.
— Pró diabo o
gajo e os olhos do gajo.
O criado passou
de novo com a bandeja e a pancadinha. M ergueu-se, ergueu a gola do
sobretudo, veio trazendo os olhos pelo chão até à porta. Chovia
ainda, chovia sempre.
Vergílio Ferreira |
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