Ouvimos a cada passo
que se deve dar a Deus o que é de Deus e a César o que é de César. Mas,
dolorosamente, já não escutamos com tanta frequência que se torna justo
conceder ao Povo aquilo que ao Povo assiste.
Afonso Lopes Vieira,
depois de proclamar o Povo um supremo poeta, aludiu certa vez à
indiferença ou aos maus modos com que todos o tratam. Os anos rolaram e,
todavia, o Povo, que, como lapidarmente afirmou Albino Forjaz de Sampaio
na sua «Colecção Patrícia», «é trovador, cantador e sonhador, sua nas
cidades, labuta nos campos, enche o porão dos emigrantes, se endominga
nas feiras, chora nas guitarras e violas, morre nas batalhas, trabalha,
gargalha e luta», continua a ser incompreendido, quando não caluniado ou
até mesmo defraudado.
«Quem não tem olhado
senão à superfície da nossa literatura – escreveu Almeida Garrett –, não
crê que ao pé, por baixo, andava outra literatura que era a verdadeira
nacional, a popular, a vencida, a tiranizada por invasores gregos e
romanos». E, além de Garrett, outros homens do Romantismo souberam
também perscrutar, analisar e amar o génio do Povo. Infelizmente, esse
surto de justiça esmoreceu, e hoje, à parte alguns intelectuais, o Povo,
como artista é minimizado, concedendo-se-lhe apenas diploma de...
habilidoso.
Lúcida,
penetrantemente, Fernando Lopes Graça traça-nos um quadro do problema:
«O povo e os seus costumes, as suas tradições, a sua arte permaneceram
afastados das preocupações dos nossos intelectuais ou, se nelas
apareciam, era meramente com intenções decorativas e pitorescas,
continuando a ignorar-se por completo ou a prestar-se apenas uma atenção
distraída ao que havia de vivo e fecundo nas suas manifestações
estéticas características, entre as quais avultam precisamente as que se
referem à música, as suas canções, as suas danças.
Este divórcio
propiciou, reafirmamo-lo, a incompreensão, a calúnia e a própria fraude.
E tais assertos comprovam-se com a mesma facilidade com que se bebe um
copo de água... Na realidade, se o Povo não hesita em perfilhar
excelentes quadras de grandes poetas, facto que só abona, afinal, o seu
espírito crítico, é inegável que tem criado milhares e milhares de
trovas maravilhosas. Não obstante, ainda há quem tente demonstrar, numa
cegarrega vesânica, que só as quadras inferiores são de origem popular.
Claro se torna que basta citar um António Aleixo, um Marques Sardinha,
uma Maria Barbuda, um Manuel Alves – e poderíamos evocar dezenas de
nomes – para a tese absurda ficar reduzida a mera bola de sabão. Autores
de quadras imortais – e quantas se hão perdido, ao longo dos séculos,
neste nosso país –, os seus versos bondarão para inundar de luz,
definitivamente, o malfadado assunto.
Gramático eminente,
perdulário criador de quanta palavra é necessária às relações sociais,
mestre consumado da língua – da língua tanta vez abastardada por
letrados pretensiosos –, o Povo, esse admirável Povo que tumultua em Gil
Vicente e Aquilino, merece mais respeito e bem-querer...
No sector da música,
a incompreensão e o desamor pedem meças ao que vai pela literatura. A.
Bandeira, na «Vértice», escreveu em tempos: «Assim, por exemplo,
chama-se popular a certa música revisteira sem qualidade de
qualquer espécie e sem o mínimo ponto de contacto com as canções e a
música criadas pelo povo – sem nada que ver, igualmente, com a sua vida,
as suas preocupações e os seus interesses; como se dizem também
populares certas canções colhidas no nosso folclore e depois deformadas
por harmonizações /página
25/ inconvenientes que vão até à adaptação do ritmo ao do swing e
do booggie-woogie».
Há tempos, foi-nos
dado verificar, magoadamente, mais alguma coisa, um autêntico dolo. Com
efeito, em determinado filme, ouvia-se, como sendo da autoria de certo
musicógrafo assaz conhecido, urna velha e formosa canção de recôndito
lugar duriense...
Urge coligir a nossa
música popular, ou rústica como sugere Lopes Graça, que, algures,
afirma: «As canções recolhidas não constituem mais do que uma pequena
amostra do imenso caudal musical que anda perdido por essas serranias e
vales do norte ao sul do País». Isto – e «restituir ao povo a sua
música, depurando-a impiedosamente das contrafacções comerciais» na
observação de Louis Saguer.
Mas nem só na
literatura e na música o Povo é um notabilíssimo artista. Na escultura,
na pintura, na arquitectura e em todas as artes decorativas ascende a
par e passo, deixa de ser artífice para atingir anonimamente,
comoventemente, vitoriosamente, os páramos da genialidade. O Povo não
tem apenas ajeitado pedras para os alicerces e maciças paredes das
imponentes catedrais, dos palácios sumptuosos. Há lavrado muita renda em
granito e em ançã... Quase desde que o mundo é mundo, modelou em barro
humilde e, mais tarde, na aristocrática porcelana, miríades de peças
onde a linha de extraordinária pureza e o ornato gracioso se casam
idealmente. E, se o oleiro denotou alto sentido artístico, quem merca
jamais deixou de sorver a beleza do utensílio. Quantas vezes, nas feiras
e mercados, se nos deparam compradores mirando e remirando,
embevecidamente, enamoradamente, a elegância do objecto a apreçar. Nas
mil e uma peças de uso doméstico, talhadas em madeira, osso e cortiça,
quanta beleza irradiante não se descortina!
E quem fala da
escultura diz da pintura, ou não tenhamos aí à vista, por exemplo,
alguns ex-votos, os jugos e os painéis dos barcos moliceiros.
Recentemente, os policromos e estilizados galos de Barcelos parece que
entusiasmaram meia Paris. Não nos repugna acreditar que as decorações do
«moliceiro», com suas estilizações de conchas, búzios, ondas,
estrelas-do-mar, da fauna e da flora, a serem conhecidas além fronteiras
encantariam igualmente Franças e Araganças. Estamos habituados a sorrir
ante os painéis dos «moliceiros», atentando mais nas aliás humaníssimas
legendas do que na lição de arte que traduzem. E só assim se compreende
que nem sempre alguns concursos hajam contribuído para o aprimoramento
de certas qualidades artísticas, mas sim para uma deplorável
degenerescência. Quando o pintor dá fé das preferências temáticas dum
júri e deixa de ser espontâneo, passa a ser artificioso e raramente
artista... Pode cativar, mas suicida-se.
Na arquitectura, é
ponto assente que os técnicos têm transplantado, não raro, das casas
rurais, elementos que valorizam as moradias de luxo... A traça da proa
dos barcos moliceiros, já citados, planeja como vera obra-prima...
O rol, no entanto, é
extenso, maior do que légua das velhas. Nos metais, no mobiliário, na
tapeçaria, nos bordados e nas rendas, nos milhentos objectos necessários
à vida, descobre-se a cada momento uma nota de bom gosto, um bocadinho
de coração, do grande coração do nosso Povo. Chega a ser inacreditável
como das mãos duma viloa» madeirense ou duma lavradeira do Continente,
mãos afeitas à lida doméstica e à própria enxada, possam sair bordados e
rendas supremamente delicados.
A arte popular, da
qual já se vai falando um pouco, ainda está longe, porém, de ser
devidamente respeitada e admirada. Apodar-se uma criação do Povo de
engraçada, de curiosa e quejandos adjectivos significa incompreensão e
até injúria. Para muitos, como sagazmente observa também um distinto
etnógrafo, popular é sinónimo de fácil, de imediatamente acessível, de
trivial, se é que não de superficial e inferior. Equívoco tremendo,
importa pulverizá-lo. Importa, na verdade, que o Povo adquira
consciência dos tesouros que cria – e nem só o Povo mas a gente culta
deste país alagado de sol e cheio de colorido, onde, desde os pastores
da serra aos pescadores do litoral, todos são um poucochinho artistas.
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João Sarabando
A galeria de figuras populares que ZÉ
PENICHEIRO tem talhado e policromado em madeira – plena de vida e
movimento – se não consagram o Povo, especificamente como artista,
mostram as suas múltiplas virtualidades e o pitoresco dos seus costumes.
Na gravura o «Ardina do Litoral» berra, a plenos pulmões,... o seu
legítimo interesse nos 20%... |
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