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Artes - Letras - Ciências
Suplemento do n.º 254 do "Litoral"
Setembro de 1959, Ano I, n.º 1
pág. 26 e 25

 

Imagem de Zé Penicheiro

O POVO – mestre minimizado, mestre desconhecido

 Considerações de JOÃO SARABANDO  

 

Ouvimos a cada passo que se deve dar a Deus o que é de Deus e a César o que é de César. Mas, dolorosamente, já não escutamos com tanta frequência que se torna justo conceder ao Povo aquilo que ao Povo assiste.

Afonso Lopes Vieira, depois de proclamar o Povo um supremo poeta, aludiu certa vez à indiferença ou aos maus modos com que todos o tratam. Os anos rolaram e, todavia, o Povo, que, como lapidarmente afirmou Albino Forjaz de Sampaio na sua «Colecção Patrícia», «é trovador, cantador e sonhador, sua nas cidades, labuta nos campos, enche o porão dos emigrantes, se endominga nas feiras, chora nas guitarras e violas, morre nas batalhas, trabalha, gargalha e luta», continua a ser incompreendido, quando não caluniado ou até mesmo defraudado.

«Quem não tem olhado senão à superfície da nossa literatura – escreveu Almeida Garrett –, não crê que ao pé, por baixo, andava outra literatura que era a verdadeira nacional, a popular, a vencida, a tiranizada por invasores gregos e romanos». E, além de Garrett, outros homens do Romantismo souberam também perscrutar, analisar e amar o génio do Povo. Infelizmente, esse surto de justiça esmoreceu, e hoje, à parte alguns intelectuais, o Povo, como artista é minimizado, concedendo-se-lhe apenas diploma de... habilidoso.

Lúcida, penetrantemente, Fernando Lopes Graça traça-nos um quadro do problema: «O povo e os seus costumes, as suas tradições, a sua arte permaneceram afastados das preocupações dos nossos intelectuais ou, se nelas apareciam, era meramente com intenções decorativas e pitorescas, continuando a ignorar-se por completo ou a prestar-se apenas uma atenção distraída ao que havia de vivo e fecundo nas suas manifestações estéticas características, entre as quais avultam precisamente as que se referem à música, as suas canções, as suas danças.

Este divórcio propiciou, reafirmamo-lo, a incompreensão, a calúnia e a própria fraude. E tais assertos comprovam-se com a mesma facilidade com que se bebe um copo de água... Na realidade, se o Povo não hesita em perfilhar excelentes quadras de grandes poetas, facto que só abona, afinal, o seu espírito crítico, é inegável que tem criado milhares e milhares de trovas maravilhosas. Não obstante, ainda há quem tente demonstrar, numa cegarrega vesânica, que só as quadras inferiores são de origem popular. Claro se torna que basta citar um António Aleixo, um Marques Sardinha, uma Maria Barbuda, um Manuel Alves – e poderíamos evocar dezenas de nomes – para a tese absurda ficar reduzida a mera bola de sabão. Autores de quadras imortais – e quantas se hão perdido, ao longo dos séculos, neste nosso país –, os seus versos bondarão para inundar de luz, definitivamente, o malfadado assunto.

Gramático eminente, perdulário criador de quanta palavra é necessária às relações sociais, mestre consumado da língua – da língua tanta vez abastardada por letrados pretensiosos –, o Povo, esse admirável Povo que tumultua em Gil Vicente e Aquilino, merece mais respeito e bem-querer...

No sector da música, a incompreensão e o desamor pedem meças ao que vai pela literatura. A. Bandeira, na «Vértice», escreveu em tempos: «Assim, por exemplo, chama-se popular a certa música revisteira sem qualidade de qualquer espécie e sem o mínimo ponto de contacto com as canções e a música criadas pelo povo – sem nada que ver, igualmente, com a sua vida, as suas preocupações e os seus interesses; como se dizem também populares certas canções colhidas no nosso folclore e depois deformadas por harmonizações /página 25/ inconvenientes que vão até à adaptação do ritmo ao do swing e do booggie-woogie».

Há tempos, foi-nos dado verificar, magoadamente, mais alguma coisa, um autêntico dolo. Com efeito, em determinado filme, ouvia-se, como sendo da autoria de certo musicógrafo assaz conhecido, urna velha e formosa canção de recôndito lugar duriense...

Urge coligir a nossa música popular, ou rústica como sugere Lopes Graça, que, algures, afirma: «As canções recolhidas não constituem mais do que uma pequena amostra do imenso caudal musical que anda perdido por essas serranias e vales do norte ao sul do País». Isto – e «restituir ao povo a sua música, depurando-a impiedosamente das contrafacções comerciais» na observação de Louis Saguer.

Mas nem só na literatura e na música o Povo é um notabilíssimo artista. Na escultura, na pintura, na arquitectura e em todas as artes decorativas ascende a par e passo, deixa de ser artífice para atingir anonimamente, comoventemente, vitoriosamente, os páramos da genialidade. O Povo não tem apenas ajeitado pedras para os alicerces e maciças paredes das imponentes catedrais, dos palácios sumptuosos. Há lavrado muita renda em granito e em ançã... Quase desde que o mundo é mundo, modelou em barro humilde e, mais tarde, na aristocrática porcelana, miríades de peças onde a linha de extraordinária pureza e o ornato gracioso se casam idealmente. E, se o oleiro denotou alto sentido artístico, quem merca jamais deixou de sorver a beleza do utensílio. Quantas vezes, nas feiras e mercados, se nos deparam compradores mirando e remirando, embevecidamente, enamoradamente, a elegância do objecto a apreçar. Nas mil e uma peças de uso doméstico, talhadas em madeira, osso e cortiça, quanta beleza irradiante não se descortina!

E quem fala da escultura diz da pintura, ou não tenhamos aí à vista, por exemplo, alguns ex-votos, os jugos e os painéis dos barcos moliceiros. Recentemente, os policromos e estilizados galos de Barcelos parece que entusiasmaram meia Paris. Não nos repugna acreditar que as decorações do «moliceiro», com suas estilizações de conchas, búzios, ondas, estrelas-do-mar, da fauna e da flora, a serem conhecidas além fronteiras encantariam igualmente Franças e Araganças. Estamos habituados a sorrir ante os painéis dos «moliceiros», atentando mais nas aliás humaníssimas legendas do que na lição de arte que traduzem. E só assim se compreende que nem sempre alguns concursos hajam contribuído para o aprimoramento de certas qualidades artísticas, mas sim para uma deplorável degenerescência. Quando o pintor dá fé das preferências temáticas dum júri e deixa de ser espontâneo, passa a ser artificioso e raramente artista... Pode cativar, mas suicida-se.

Na arquitectura, é ponto assente que os técnicos têm transplantado, não raro, das casas rurais, elementos que valorizam as moradias de luxo... A traça da proa dos barcos moliceiros, já citados, planeja como vera obra-prima...

O rol, no entanto, é extenso, maior do que légua das velhas. Nos metais, no mobiliário, na tapeçaria, nos bordados e nas rendas, nos milhentos objectos necessários à vida, descobre-se a cada momento uma nota de bom gosto, um bocadinho de coração, do grande coração do nosso Povo. Chega a ser inacreditável como das mãos duma viloa» madeirense ou duma lavradeira do Continente, mãos afeitas à lida doméstica e à própria enxada, possam sair bordados e rendas supremamente delicados.

A arte popular, da qual já se vai falando um pouco, ainda está longe, porém, de ser devidamente respeitada e admirada. Apodar-se uma criação do Povo de engraçada, de curiosa e quejandos adjectivos significa incompreensão e até injúria. Para muitos, como sagazmente observa também um distinto etnógrafo, popular é sinónimo de fácil, de imediatamente acessível, de trivial, se é que não de superficial e inferior. Equívoco tremendo, importa pulverizá-lo. Importa, na verdade, que o Povo adquira consciência dos tesouros que cria – e nem só o Povo mas a gente culta deste país alagado de sol e cheio de colorido, onde, desde os pastores da serra aos pescadores do litoral, todos são um poucochinho artistas.

João Sarabando

A galeria de figuras populares que ZÉ PENICHEIRO tem talhado e policromado em madeira – plena de vida e movimento – se não consagram o Povo, especificamente como artista, mostram as suas múltiplas virtualidades e o pitoresco dos seus costumes. Na gravura o «Ardina do Litoral» berra, a plenos pulmões,... o seu legítimo interesse nos 20%...

 

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