— Acha que a sua obra poderia ter
chegado a ser a que hoje é, se um conjunto de circunstâncias históricas
o tivesse ligado ao grupo de escritores que fez a «presença»? Por outras
palavras: que influências ou estímulos exerceu e recebeu dos seus
contemporâneos?
— Os mais dos poemas
que formaram o meu primeiro livro
–
«Poemas de Deus e do Diabo»
–
estavam escritos quando conheci
as gentes que fizeram a «presença». Ora nesse livro se manifestam
algumas constantes de toda a minha produção. Os «Poemas de Deus e do
Diabo» foram publicados em 1925. O primeiro número da «presença» data de
1927. Creio que, mesmo sem o convívio da «presença», a minha obra seria
–
fundamentalmente
–
a mesma. Suponho ver-se que é uma obra (se me toleram a expressão)
sobretudo arrancada à própria personalidade humana do autor. Posto isto,
não afirmo que a não possa ter influenciado, em aspectos acidentais e
formas de expressão, o convívio que na «presença» mantínhamos. A verdade
é que reciprocamente nos influenciávamos. No fim e ao cabo, cada um
acabou por afirmar a sua personalidade. Não era esse, aliás,
–
a livre afirmação da personalidade própria
–
um dos princípios da «presença»? Quanto a estímulos, (também
reciprocamente nos estimulávamos) decerto os recebi dos meus camaradas
de então. /página
4/ Nunca poderei esquecer o aplauso que os «Poemas de Deus
e do Diabo» receberam de Gaspar Simões e Branquinho da Fonseca. Estes
foram, depois, os meus primeiros companheiros na direcção da revista.
— Temos reparado que José Régio se tem
realizado em vários géneros literários: qual é o género para que se
sente mais solicitado? E porquê?
—
Já várias vezes tenho respondido a esta pergunta. E sempre tenho
certo medo de errar, ou me contradizer. A verdade é que cada um dos
géneros literários que tenho cultivado corresponde a umas certas
tendências
–
a uma certa necessidade, digamos
–
da minha natureza complexa. Creio que, sem o cultivo desses vários
géneros, nunca, sequer, poderia haver tentado exprimir-me tão
completamente quão possível. Por demais sei eu que o favor do
público e a opinião de vários críticos vão sobretudo para os meus
versos. Se o futuro vier a prestar alguma atenção ás minhas coisas,
–
oxalá que sim, pois penso muito no futuro
–
creio que ele reparará o que em parte se me afigura injustiça.
Pessoalmente, as minhas predilecções inclinam-se para o meu teatro
que sempre sou tentado a considerar a parte mais original
–
por isso mesmo mais discutida
–
das minhas realizações. |
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— O poema «aparece-lhe» sempre, ou
«procura-o» por vezes?
— Ousarei parodiar a
frase célebre dum grande pensador, dizendo que nunca procuraria um
poema... se já o não houvesse achado. Várias vezes tenho querido fazer
poemas (porque mos pedem, por exemplo, e os não tenho em caixa); várias
vezes os tenho procurado. O que então consigo pouco vale. Não há remédio
senão esperar o momento favorável, a época propícia, a intuição
porventura ainda vaga... mas que se afirmará logo que puxe por ela.
Verifico, aliás, que me é fecunda a preocupação de ter de fazer um
poema.
— É da opinião de que o Escritor deve
cultivar a Arte pela Arte ou a Arte pela Vida?
— Sempre tenho
sustentado, creio que sempre sustentarei, que a Arte é uma actividade
que a si própria se basta. Acho que não precisa de desculpas. A sua
verdadeira grande utilidade é elevar, enriquecer, ampliar, aprofundar o
espírito do homem. Por isso mesmo não pode estar ao serviço seja do que
for, –
antes de tudo se serve. E por isso mesmo, porque de tudo se serve, nunca
pude admitir uma verdadeira Arte divorciada da Vida. «Literatura Viva»
se intitulava o meu primeiro artigo publicado na «presença». Na acepção
mais ampla tanto dum como doutro termo, sempre a Arte é expressão da
Vida. E até, depois desta breve explicação, posso admitir que a sirva,
–
nas só no sentido em que acima defini a utilidade da Arte.
— Certos aspectos da sua obra «Jacob e o
Anjo» fazem-nos ocorrer, por vezes, a problemática do André Gide do «Roi
Candaule». Reconhece esta afinidade? Como a explica?
— Ainda hoje
desconheço essa obra de André Gide. Entre qualquer obra de André Gide e
outra minha, não creio que possa haver afinidades profundas: só
coincidências acidentais ou superficiais. Talvez, algum dia, me tenha eu
enganado a tal respeito, quando sobretudo me seduzia a sistemática
disponibilidade de André Gide. Continuo a admirá-lo como escritor, no
significado digamos técnico do termo: como grande literato que é. Pelo
fundo, grande parte da sua obra se me tem vindo tornando quase repulsiva
(é a expressão própria) ou quase indiferente.
— Foi a «Biografia» sugerida pela
experiência poética de Antero de Quental (Sonetos)?
— Não. Sempre gostei
de ler e fazer sonetos. Julgo, demais, o soneto uma forma em que, desde
Sá de Miranda, os portugueses sobressaem. A «Biografia» é simplesmente a
colecção dos meus sonetos. Se alguma ideia lhe presidiu, foi, talvez, a
de sintetizar, em sonetos, toda a minha produção poética. Não quer isto
dizer que Antero
–
poeta excepcionalíssimo numa boa dúzia de sonetos
–
me não possa ter influenciado.
— Quando diz no «Príncipe com orelhas de
burro» que os poetas, os artistas em geral, não devem temer a
sinceridade pois é-lhes disfarce bastante a roupagem inevitável da
forma, considera que esta existe de «per si», sem íntima conexão com o
conteúdo?
— Não, não creio que
na verdadeira criação artística a forma exista de «per si», ou /página
24/ «sem íntima conexão com o conteúdo». Realizar uma obra
de arte é, exactamente, dar forma. O que digo (suponho) em «O príncipe
com orelhas de burro», é que só o leitor ou contemplador humanamente
afim do artista
–
o parente, digamos
–
compreenderá certas suas confissões: entrará à intimidade e profundeza
da sua obra. O público vulgar não passará da aparência; isto é, do que
poderemos chamar a exterioridade formal, mas num significado já
diminuído deste qualificativo. No meu entender, tanto mais satisfatória
é uma realização artística, quanto mais íntima for a já aludida conexão
entre o que chamamos forma e o que chamamos conteúdo.
— Reconhece no comportamento de Lelito,
nos últimos capítulos do 3.º volume de «A Velha Casa», uma situação
consciência-de-classe? Ou atribui-lhe outras origens?
— Algumas vezes,
depois de criada, se comporta uma figura literária de modo inesperado do
seu próprio criador. O filho emancipa-se do pai. Reconheço, pois já dera
por isso, que há um instinto-sentimento de classe em certas reacções e
atitudes de Lelito, nos capítulos finais de « Os Avisos do Destino».
(Prefiro chamar instinto-sentimento ao que, de facto, em Lelito, me
parece mais isso do que «Consciência»). Será esse instinto-sentimento
que inteiramente determina tais reacções e atitudes? De modo nenhum, no
meu juízo. Assim, nos conflitos de Lelito com o futuro cunhado
–
Joaquim Cancela
–
se torna muito importante uma antipatia pessoal; e uma espécie de
previsão, digamos, do erro que será o casamento da irmã com esse homem.
Todavia, sem dúvida, há um instinto-sentimento de classe em Lelito que,
porventura a seu pesar se manifesta em vários momentos do seu
comportamento. Em obediência à verdade psicológica me não permiti
suprimir tais manifestações, pois, sem dúvida, o instinto-sentimento de
classe é, hoje, um elemento importante no complexo determinante do
comportamento de vários indivíduos; ou de certos momentos do
comportamento de qualquer indivíduo. Aproveito a ocasião para declarar
que, embora lhe tenha atribuído muitas das minhas experiências e
características, de modo nenhum julgo Lelito um auto-retrato. Tão-pouco
o herói da obra,
–
que não tem um herói.
— Tem sido Portalegre um meio propício à
sua criação literária? Ou é-lhe indiferente o meio? Porquê?
— Não julgo
indiferente a questão do meio. Creio que sim, que Portalegre tem sido um
meio propício à minha criação literária. Antes de mais, porque me tem
facilitado a solidão e o sossego (embora relativos) que me convêm para
realizar qualquer trabalho literário. Mais realizara, aqui, se me não
dispersara por outras formas de actividade. Julgo, ainda, que todo o
Alentejo é favorável ao desenvolvimento de certas minhas tendências
interiores, –
que tenho por válidas na minha produção.
— Todo o seu Teatro foi escrito sem a
preocupação de o ver representado, o que colide com a opinião de alguns
críticos de que o dramaturgo deve ter sempre os bastidores por berço.
Qual a sua posição perante este problema? E que perspectivas antevê ao
êxito duma futura encenação das suas peças? Deprime-o ou inibe-o a
indiferença e os obstáculos com que elas deparam?
— Não, o meu teatro
não foi escrito «sem a preocupação de o ver representado». Como o seria,
sendo tão abundantes, e minuciosas, as rubricas para a sua realização
cénica? Tendo eu o meu teatro por muito espectacular, (se até chamei
«poema espectacular» a «El-Rei Sebastião»!) como poderia ser-me
indiferente o espectáculo do meu teatro? No meu entender
–
perdoem-me a sinceridade
–
as minhas peças poderiam dar belos espectáculos. Se os empresários,
entidades oficiais e companhias de profissionais não pensam assim, nem
por isso me convencem. A sua indiferença ou a sua animadversão, como o
silêncio de certos críticos, não chegam a deprimir-me nem me inibem.
Apenas, às vezes, me entristecem, ou irritam, ou provocam um certo
ressentimento, ou convidam ao desprezo. Da parte da gente nova de vários
dos nossos teatros experimentais, como da parte de alguns estrangeiros,
tenho recebido, como autor dramático, os melhores estímulos; quase os
únicos estímulos. Profundamente lamento que a realização cénica das
minhas peças (de que tanto julgo depender o, seu bom êxito junto do
público) exija recursos de vária ordem que não possuem os teatros
experimentais. Perdoai-me, bons amigos que quase sois os únicos a
animar-me!
— Quando pensa concluir o ciclo «A Velha
Casa»? Outros projectos?
—
Não sei. Talvez já me nem chegue a vida para o concluir. Actualmente se
está compondo, para a Portugália Editora, o 4.º volume. Faltarão mais
três? Só mais dois? Entrementes espero, para desenjoar, ir compondo
outras coisas de ficção; e sempre teatro! Projectos nunca me faltaram.
Um volume e de «Pequenos Ensaios Livres» e uma «Confissão dum homem
religioso» são coisas com que sonho há anos. |