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Artes - Letras - Ciências
Suplemento do n.º 254 do "Litoral"
Setembro de 1959, Ano I, n.º 1
págs. 3, 4 e 24

 

COLÓQUIO COM JOSÉ RÉGIO
 

José Régio é um dos nomes desde há muito consagrados da nossa literatura contemporânea. A sua obra, edificada sobre os alicerces mais seguros duma variedade de géneros que se distribui pela poesia, pela ficção, pelo teatro, pelo ensaio — impôs-se definitivamente a um público na generalidade mais disposto a render preito a obras estrangeiras do que a obras nacionais. Quer pelo fulcro inspirativo, quer pelo estilo, quer pela universalidade de horizontes a que se alargam as suas páginas, a obra de José Régio está animada da seiva da perenidade.

O que se deve agora fazer é estudá-la intimamente, aproximá-la da luz duma crítica serena, investigar-lhe os pormenores de origem e de recriação, tentar enfim compreendê-la — para proveito da Arte e daqueles que a servem. Foi justamente movido por esse interesse que resolvi aproximar-me de José Régio — para um diálogo estreito com o Escritor e com a sua Obra.

Vinheta de Gaspar Albino

 

por JOAQUIM CORREIA


— Acha que a sua obra poderia ter chegado a ser a que hoje é, se um conjunto de circunstâncias históricas o tivesse ligado ao grupo de escritores que fez a «presença»? Por outras palavras: que influências ou estímulos exerceu e recebeu dos seus contemporâneos?

— Os mais dos poemas que formaram o meu primeiro livro «Poemas de Deus e do Diabo» estavam escritos quando conheci as gentes que fizeram a «presença». Ora nesse livro se manifestam algumas constantes de toda a minha produção. Os «Poemas de Deus e do Diabo» foram publicados em 1925. O primeiro número da «presença» data de 1927. Creio que, mesmo sem o convívio da «presença», a minha obra seria fundamentalmente a mesma. Suponho ver-se que é uma obra (se me toleram a expressão) sobretudo arrancada à própria personalidade humana do autor. Posto isto, não afirmo que a não possa ter influenciado, em aspectos acidentais e formas de expressão, o convívio que na «presença» mantínhamos. A verdade é que reciprocamente nos influenciávamos. No fim e ao cabo, cada um acabou por afirmar a sua personalidade. Não era esse, aliás, a livre afirmação da personalidade própria um dos princípios da «presença»? Quanto a estímulos, (também reciprocamente nos estimulávamos) decerto os recebi dos meus camaradas de então. /página 4/ Nunca poderei esquecer o aplauso que os «Poemas de Deus e do Diabo» receberam de Gaspar Simões e Branquinho da Fonseca. Estes foram, depois, os meus primeiros companheiros na direcção da revista.

— Temos reparado que José Régio se tem realizado em vários géneros literários: qual é o género para que se sente mais solicitado? E porquê?

 — Já várias vezes tenho respondido a esta pergunta. E sempre tenho certo medo de errar, ou me contradizer. A verdade é que cada um dos géneros literários que tenho cultivado corresponde a umas certas tendências a uma certa necessidade, digamos da minha natureza complexa. Creio que, sem o cultivo desses vários géneros, nunca, sequer, poderia haver tentado exprimir-me tão completamente quão possível. Por demais sei eu que o favor do público e a opinião de vários críticos vão sobretudo para os meus versos. Se o futuro vier a prestar alguma atenção ás minhas coisas, oxalá que sim, pois penso muito no futuro creio que ele reparará o que em parte se me afigura injustiça. Pessoalmente, as minhas predilecções inclinam-se para o meu teatro que sempre sou tentado a considerar a parte mais original por isso mesmo mais discutida das minhas realizações.

 

— O poema «aparece-lhe» sempre, ou «procura-o» por vezes?

— Ousarei parodiar a frase célebre dum grande pensador, dizendo que nunca procuraria um poema... se já o não houvesse achado. Várias vezes tenho querido fazer poemas (porque mos pedem, por exemplo, e os não tenho em caixa); várias vezes os tenho procurado. O que então consigo pouco vale. Não há remédio senão esperar o momento favorável, a época propícia, a intuição porventura ainda vaga... mas que se afirmará logo que puxe por ela. Verifico, aliás, que me é fecunda a preocupação de ter de fazer um poema.

— É da opinião de que o Escritor deve cultivar a Arte pela Arte ou a Arte pela Vida?

— Sempre tenho sustentado, creio que sempre sustentarei, que a Arte é uma actividade que a si própria se basta. Acho que não precisa de desculpas. A sua verdadeira grande utilidade é elevar, enriquecer, ampliar, aprofundar o espírito do homem. Por isso mesmo não pode estar ao serviço seja do que for, antes de tudo se serve. E por isso mesmo, porque de tudo se serve, nunca pude admitir uma verdadeira Arte divorciada da Vida. «Literatura Viva» se intitulava o meu primeiro artigo publicado na «presença». Na acepção mais ampla tanto dum como doutro termo, sempre a Arte é expressão da Vida. E até, depois desta breve explicação, posso admitir que a sirva, nas só no sentido em que acima defini a utilidade da Arte.

— Certos aspectos da sua obra «Jacob e o Anjo» fazem-nos ocorrer, por vezes, a problemática do André Gide do «Roi Candaule». Reconhece esta afinidade? Como a explica?

— Ainda hoje desconheço essa obra de André Gide. Entre qualquer obra de André Gide e outra minha, não creio que possa haver afinidades profundas: só coincidências acidentais ou superficiais. Talvez, algum dia, me tenha eu enganado a tal respeito, quando sobretudo me seduzia a sistemática disponibilidade de André Gide. Continuo a admirá-lo como escritor, no significado digamos técnico do termo: como grande literato que é. Pelo fundo, grande parte da sua obra se me tem vindo tornando quase repulsiva (é a expressão própria) ou quase indiferente.

— Foi a «Biografia» sugerida pela experiência poética de Antero de Quental (Sonetos)?

— Não. Sempre gostei de ler e fazer sonetos. Julgo, demais, o soneto uma forma em que, desde Sá de Miranda, os portugueses sobressaem. A «Biografia» é simplesmente a colecção dos meus sonetos. Se alguma ideia lhe presidiu, foi, talvez, a de sintetizar, em sonetos, toda a minha produção poética. Não quer isto dizer que Antero poeta excepcionalíssimo numa boa dúzia de sonetos me não possa ter influenciado.

— Quando diz no «Príncipe com orelhas de burro» que os poetas, os artistas em geral, não devem temer a sinceridade pois é-lhes disfarce bastante a roupagem inevitável da forma, considera que esta existe de «per si», sem íntima conexão com o conteúdo?

— Não, não creio que na verdadeira criação artística a forma exista de «per si», ou /página 24/ «sem íntima conexão com o conteúdo». Realizar uma obra de arte é, exactamente, dar forma. O que digo (suponho) em «O príncipe com orelhas de burro», é que só o leitor ou contemplador humanamente afim do artista o parente, digamos compreenderá certas suas confissões: entrará à intimidade e profundeza da sua obra. O público vulgar não passará da aparência; isto é, do que poderemos chamar a exterioridade formal, mas num significado já diminuído deste qualificativo. No meu entender, tanto mais satisfatória é uma realização artística, quanto mais íntima for a já aludida conexão entre o que chamamos forma e o que chamamos conteúdo.

— Reconhece no comportamento de Lelito, nos últimos capítulos do 3.º volume de «A Velha Casa», uma situação consciência-de-classe? Ou atribui-lhe outras origens?

— Algumas vezes, depois de criada, se comporta uma figura literária de modo inesperado do seu próprio criador. O filho emancipa-se do pai. Reconheço, pois já dera por isso, que há um instinto-sentimento de classe em certas reacções e atitudes de Lelito, nos capítulos finais de « Os Avisos do Destino». (Prefiro chamar instinto-sentimento ao que, de facto, em Lelito, me parece mais isso do que «Consciência»). Será esse instinto-sentimento que inteiramente determina tais reacções e atitudes? De modo nenhum, no meu juízo. Assim, nos conflitos de Lelito com o futuro cunhado Joaquim Cancela se torna muito importante uma antipatia pessoal; e uma espécie de previsão, digamos, do erro que será o casamento da irmã com esse homem. Todavia, sem dúvida, há um instinto-sentimento de classe em Lelito que, porventura a seu pesar se manifesta em vários momentos do seu comportamento. Em obediência à verdade psicológica me não permiti suprimir tais manifestações, pois, sem dúvida, o instinto-sentimento de classe é, hoje, um elemento importante no complexo determinante do comportamento de vários indivíduos; ou de certos momentos do comportamento de qualquer indivíduo. Aproveito a ocasião para declarar que, embora lhe tenha atribuído muitas das minhas experiências e características, de modo nenhum julgo Lelito um auto-retrato. Tão-pouco o herói da obra, que não tem um herói.

— Tem sido Portalegre um meio propício à sua criação literária? Ou é-lhe indiferente o meio? Porquê?

— Não julgo indiferente a questão do meio. Creio que sim, que Portalegre tem sido um meio propício à minha criação literária. Antes de mais, porque me tem facilitado a solidão e o sossego (embora relativos) que me convêm para realizar qualquer trabalho literário. Mais realizara, aqui, se me não dispersara por outras formas de actividade. Julgo, ainda, que todo o Alentejo é favorável ao desenvolvimento de certas minhas tendências interiores, que tenho por válidas na minha produção.

— Todo o seu Teatro foi escrito sem a preocupação de o ver representado, o que colide com a opinião de alguns críticos de que o dramaturgo deve ter sempre os bastidores por berço. Qual a sua posição perante este problema? E que perspectivas antevê ao êxito duma futura encenação das suas peças? Deprime-o ou inibe-o a indiferença e os obstáculos com que elas deparam?

— Não, o meu teatro não foi escrito «sem a preocupação de o ver representado». Como o seria, sendo tão abundantes, e minuciosas, as rubricas para a sua realização cénica? Tendo eu o meu teatro por muito espectacular, (se até chamei «poema espectacular» a «El-Rei Sebastião»!) como poderia ser-me indiferente o espectáculo do meu teatro? No meu entender perdoem-me a sinceridade as minhas peças poderiam dar belos espectáculos. Se os empresários, entidades oficiais e companhias de profissionais não pensam assim, nem por isso me convencem. A sua indiferença ou a sua animadversão, como o silêncio de certos críticos, não chegam a deprimir-me nem me inibem. Apenas, às vezes, me entristecem, ou irritam, ou provocam um certo ressentimento, ou convidam ao desprezo. Da parte da gente nova de vários dos nossos teatros experimentais, como da parte de alguns estrangeiros, tenho recebido, como autor dramático, os melhores estímulos; quase os únicos estímulos. Profundamente lamento que a realização cénica das minhas peças (de que tanto julgo depender o, seu bom êxito junto do público) exija recursos de vária ordem que não possuem os teatros experimentais. Perdoai-me, bons amigos que quase sois os únicos a animar-me!

— Quando pensa concluir o ciclo «A Velha Casa»? Outros projectos?

— Não sei. Talvez já me nem chegue a vida para o concluir. Actualmente se está compondo, para a Portugália Editora, o 4.º volume. Faltarão mais três? Só mais dois? Entrementes espero, para desenjoar, ir compondo outras coisas de ficção; e sempre teatro! Projectos nunca me faltaram. Um volume e de «Pequenos Ensaios Livres» e uma «Confissão dum homem religioso» são coisas com que sonho há anos.

 

Joaquim Correia

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