Se atendermos à
reconhecida projecção das influências norte-americana e brasileira na
actual génese literária portuguesa
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sobretudo pelo que toca a certo neo-realismo com todo o jeito de
importado –
o surto Kazantzaki imediatamente nos informa acerca da vitalidade e
auto-renovação do pensamento europeu, que muitos julgam inexoravelmente
sacrificado a limitações atávicas ou diminuída no confronto com fórmulas
pretensamente mais arejadas e inconformistas.
Henrique
Santos-Carvalho, o prefaciador de «Cristo Recrucificado», procura
justificadamente enquadrar Kazantzaki no ponto de vista de Bergson,
identificando o debate de princípios ocorrido em Lycovrissi com a
concepção da «sociedade aberta» e da «sociedade fechada» que se encontra
na ética bergsoniana. Sucede ainda que noutros intuicionistas, como João
Müller e Rathenau, se descobrem palpáveis afinidades com o romancista
grego, principalmente legitimadas pela valorização moral que todos
pretendem obter a partir de Jesus. A despeito do seu ateísmo «sui
generis», Nietzsche
–
que Kazantzaki traduziu, e cujo Zaratustra aflora subtilmente algumas
páginas de «O Bom Demónio»
–
terá sido o impulsionador remoto desta convergência, quando, ao defender
a hegemonia da vida sobre o mecanicismo científico e a aridez
epistemológica, assentou a primeira grande pedra do edifício
irracionalista. Assim, achamo-nos perante uma originalidade
exclusivamente manifestada no campo da Literatura e que, não obstante as
coincidências filosóficas já enumeradas, decorre num trilho assinalado
por ineditismos fortemente pessoais. Sem o recurso fácil a sensações
intercaladas, a emotividade processa-se em ritmo que acelera a epopeia
desde o início, para a revelar, na altura própria, com uma imponência
afim da orquestração wagneriana e um expressivismo ficcional onde o
sangue, o suor, a guerra, o amor, sacodem e oprimem o espírito de quem
lê. A posição melancólica de Kazantzaki, longe de filiável em mórbidos
pessimismos, radica uma confiança no futuro tornada possível pela
simbologia intensa dos heróis e latente na derradeira frase do «Cristo
Recrucificado»: ...Puseram-se a caminho, pela estrada sem fim, para o
lado onde nasce o Sol.
Um esquema rudimentar
de «Liberdade ou Morte»
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simples conflito urdido com base em antagonismos políticos de dimensão
estritamente local
–
sugerir-nos-ia uma escassez temática difícil de transcender; mas é
precisamente na solução dessa exiguidade que o autor se define, fazendo
intervir com equilibrada permanência e assombroso utilitarismo estético
as características mestras do seu talento narrativo. Tem muito de
hipérbole neo-romântica a figura do Capitão Micael, talvez ideada no
propósito de singularizar o património de forças e esperanças de toda a
comunidade cretense. O psiquismo da personagem, todavia, em vez de
acusar as contradições e lacunas que a sua criação artificialista
deixaria supor, percorre todo o livro com uma inusitada e esplêndida
autenticidade emocional. A fibra poética e o misticismo doce do escritor
nunca degeneram naquela astenia que dessora ou limita a verdadeira
ficção –
antes ajudam ao desenvolvimento pertinente do fenómeno épico,
determinando um clima onde o aticismo formal exorna a rudeza duma
intenção áspera, contundente, irada. Esta afirmação de vigor
–
que, sendo a constante mais original da obra de Kazantzaki, só muito
ardilosamente ressalta de cada situação, de cada capítulo
–
acaba por diafanamente surgir quando, ao cabo, nos surpreende que possa
mostrar-se tão unidireccional e incorrupta a resultante dumas quantas
linhas aparentemente inconciliáveis. A priori, por exemplo,
imaginamos supérfluo o erotismo simbolizado em Emínia, a fútil
circassiana cujas axilas almiscaradas parecem impregnar certas páginas
dum impressivo olor a fêmea; a estuante alacridade do capitão
Polixinguis, tanto como a sua bela coragem ou a hiperpresença do seu
instinto sexual, assume frequentes aspectos de redundância; e outras
deambulações se notam que, embora realizadas com depuradíssima técnica,
hão de encaminhar o leitor para um errado diagnóstico de gratuitidade.
No entanto, apreendida a unitária energia do todo, o juízo rectifica-se
de molde a admitirmos que os supostos exageros e diversões eram, não
apenas aproveitáveis, mas necessários, estranhamente necessários, ao
amplexo totalizante que abarca a tese proposta. Pelos notáveis
precedentes de Nikos Kazantzaki, logo entendemos que o factor-inspiração
e o factor-experiência
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nem sempre vantajosamente reunidos no evento literário
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proporcionaram, neste caso, uma simbiose perfeita.
Em «Cristo
Recrucificado», a genialidade descritiva irá servir uma ideia
equivalente, grandiosa, requerendo trunfos que «Liberdade ou Morte»
poderia dispensar com o único risco de não vencer as parcas fronteiras
do romance regional. De septénio em septénio, Lycovrissi, obscura
aldeiazinha da Anatólia, usa reconstituir o Mistério da Paixão,
preparando-o com um ano de antecedência. E Grigoris, o pope
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que, posteriormente, há de acamar as inibições da fraqueza humana
impendendo sobre a função sacerdotal
–
designa os intérpretes entre os habitantes. Cristo é Manólios, o suave
pastor que consubstancia, afinal, toda a potencialidade mística do
próprio Kazantzaki. A reposição dos factos não enferma, contudo, do
ilogismo convencional que ainda há pouco se nos deparou na peça de Fabri
«O Processo de Jesus», porque entronca na quase-verdade duma
transplantação psicológica operada directa e progressivamente no
indivíduo. Mediante circunstâncias coevas da acção, os protagonistas,
sem emergirem do quotidiano, vão sendo inseridos no destino histórico de
Pedro, de Tiago, de Madalena, precipitando-se o termo real do drama
antes da data estipulada para o seu começo como teatro. Paralelamente, a
conexão sociológica-religiosa localiza-se na tragédia dos refugiados que
a sociedade lycovrissiana escorraçou, temendo vê-los impor uma gama de
valores revolucionários nociva ao pacato quietismo estabelecido; e é o
Padre Photis, condutor admirável desse povo egoisticamente recusado,
que, acariciando o rosto exangue do sublime Manólios, pronuncia as
palavras sintetizadoras: Também /Página
18/ isso foi em vão, Senhor. Cerca de dois mil anos passaram, e
até este dia não deixaram de te crucificar. Quando virás ao mundo,
Senhor, para não mais seres crucificado, para viver connosco
eternamente?
O lirismo flui em
todo o romance, mas de tal modo – com tamanha efectividade moral e tão
firme enraizamento nas mais válidas realidades
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que prontamente nos ocorre o «sonhar com um dos olhos aberto»
preconizado por George Santayana. Aliás, não custa vislumbrar um
relativo encontro temperamental do autor helénico com o filósofo
americano, que igualmente foi poeta e se deixou seduzir pela formosura
conceptual do Cristianismo. Apesar de materialista confesso, Santayana
absorveu maravilhadamente a poesia típica da religião cristã, como se a
hereditariedade hispânica acordasse nele uma ânsia de beleza que
medularmente discordava da sua filosofia. E Kazantzaki
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não importa se agnóstico, se heterodoxo, se rigidamente cristão
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também denuncia a permeabilidade do seu temperamento e até, talvez, da
sua educação humanística, ao revérbero ético e à finíssima delicadeza
espiritual do vulto de Jesus. Do amadurecimento desta propensão brotou a
obra-prima que é, dizemo-lo sem receio de exorbitar, o «Cristo
Recrucificado» livro extraordinário, perene, avassalador, que
magistralmente coloca num problema de aldeia interrogações e angústias
de amplitude cósmica.
Mais recentemente, a
Editorial Ulisseia publicou «Alexis Zorba», vertido para português com
um título –
«O Bom Demónio» que, tendo alguma coisa de lugar-comum, nem por isso
perde justeza em relação ao meio paradoxo contido na obra. Provando uma
tendência já patenteada no desenho de heróis, como o Capitão Micael e
Manólios, Kazantzaki novamente se decide pela individualização simbólica
de toda a problemática numa desmesurada figura central, agora obtida sob
os contornos irrequietos e a exuberância fora de série do incrível
Zorba: Compreendi que este era o homem que eu procurava há tanto tempo
sem encontrar. Um coração vivo, uma grande boca comilona, uma grande
alma aberta. O sentido das palavras arte, amor, beleza, pureza, paixão,
ia ser esclarecido para mim por este trabalhador com as palavras humanas
mais simples. Acentua-se, pois, a presença das forças da
natureza como
autêntico húmus da ficção kazantzakiana, produzida num clima onde as
reacções menos previsíveis depressa ganham a clareza de certo
primitivismo potencial em vias de eclosão. E, porque a história é
contada na primeira pessoa, torna-se empolgante o agigantar da
influência de Zorba sobre o narrador perplexo: Criança, quase que cai no
poço. Adulto, quase que cai na palavra eternidade e também em várias
outras: amor, esperança, pátria, Deus. A cada palavra que transpunha
tinha a impressão de escapar a um perigo e de avançar um passo. Mas não.
Mudava somente de palavra e a isso é que chamam libertação. E eis que há
dois anos completos estava suspenso sobre a palavra Buda. Mas sinto-o
bem, graças a Zorba, Buda será o último poço, a última
palavra-precipício e, enfim, ficarei livre para sempre. Para sempre? É o
que se diz de cada vez.
Um conceito
valorativo da vida se desprende, apesar de várias nebulosidades e
inconsonâncias, do comportamento vertiginoso de Zorba, desenvolvido como
resposta às pesquisas antológicas e demais questionários metafísicos do
seu intelectual companheiro. Valendo-se constantemente da sua capacidade
estilística, Karantzaki introduz na acção todos os temas que lhe são
caros –
como a do chamamento erótico, desta vez a cargo de uma viúva Sumerlina
que tem um pouco da Katerina de «Cristo Recrucificado» e bastante da
Emínia de «Liberdade ou Morte»
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e outros que especificamente concernem à feitura do livro; mas acontece
que a diversa movimentação dos tipos é marcadamente subsidiária do
escopo basilar, lembrando-nos uma «mise-en-scène» onde houvesse de se
exibir poliformemente o histrionismo pujante de Alexis Zorba. Embora a
adopção dum teor
expositivo saturado
de ironia não consinta que se defina a atmosfera de epopeia, tão
peculiar ao escritor, o apelo às reservas ancestrais da consciência e da
vontade humanas adquire todas aquelas proporções de inquietude e revolta
que, aliadas a um comedido retorno às formas clássicas da novelística,
vincadamente personalizaram e impuseram o génio literário de Nikos
Kazantzaki. |