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Artes - Letras - Ciências
Suplemento do n.º 254 do "Litoral"
Setembro de 1959, Ano I, n.º 1

 

Escrever um romance, realizar um filme...

uma opinião de Reinaldo de Carvalho

 

Por que é tão mau o cinema português? Ele nem chega a ter outro carácter que o da urdidura piegas, da técnica insuficiente, da representação boçal. Como elemento típico, só sendo o da mediocridade antipática.

Donde vêm as causas de tão patente malogro? Para o descalabro teatral fala-se sobretudo do desinteresse do público. Tratando-se de cinema, ninguém dirá que o público português desgosta do cinema... estrangeiro. Mesmo quem não tenha em grande conta o critério nacional é forçado a reconhecer que nem sempre o público se mostra incompetente, como neste caso de desapreço pelo cinema lusitano.

Falta de dinheiro para suculentas produções? Não, que algumas das melhores obras produzidas noutros países são duma pobreza material a toda a prova.

Falta de público? Menos ainda, como já se disse, havendo bom cinema.

Falta de actores? Além de se verem em Portugal actores suportáveis, sabe-se que noutras terras alguns filmes interpretados por amadores saíram primorosos.

Que faltará antes de tudo o mais? Creio que – realizadores.

Com um realizador à altura, suprime-se muita despesa, criam-se os bons actores, forjam-se técnicos competentes, desenvolve-se o interesse do argumento...

E que será um realizador por excelência, dado que se atribua tanto valor à função de realizar? Quanto a mim, um romancista. Quem consegue movimentar vidas e situar coisas no papel, por certo melhor o fará no ecrã, com uso de «material vivo».

Escrever um romance ou realizar um filme, isso talvez só implique uma divergência mínima, que será: enquanto no romance tudo provém da fecundidade do autor, no filme o realizador aproveita muitos dos materiais estranhos a si.

E que o verdadeiro autor dum filme seja o chamado realizador, ou o argumentista, ou os actores, isso, nem chega a interessar grande coisa, tanto mais que, se todos os elementos que nele entram tiverem merecimento, podem arrogar-se em conjunto a autoria – como numa associação de vários romancistas, em co-autoria. Só é que aquilo a que chamarei um realizador perfeito – «um romancista – poderia suprir tudo o mais, como autor.

Para escrever um romance, que condições são exigíveis ao autor? Imaginação, intuição, conhecimento. Criar uma «história» é condição dependente da introspecção psicológica, da realidade observada; para um perfeito conhecimento humano não bastam a observação e a aprendizagem: é indispensável uma rigorosa intuição...

Parece até que só um romancista – isto é, com capacidade de romancista – poderá mover os actores sem os exageros teatrais ou as insuficiências convencionais. Quem como ele conhece a maneira de agir duma personagem, os gestos, as palavras, o tom de voz em dadas circunstâncias? Por certo só quem tenha a intuição da vida será capaz de conseguir tanto; mas quem isto tiver já possui uma condição básica do romancista.

O realizador perfeito necessitará ainda de conhecer o público, coisa esta igualmente dentro da visão do romancista, que, se muito o desejar – o que raramente acontece, para honra sua – acaba sempre por cativar o interesse do público.

Quanto aos técnicos, a esses, usá-los-ia o romancista como à máquina de escrever ou a fita de gravar: puros elementos de uso material, e cuja competência ele aferiria pela maneira corno preenchessem a sua intenção.

Para com os artistas – todos quantos usam mais da arte que da técnica, que pintam um cenário, compõem um fundo musical, escrevem os versos duma canção – o romancista – ou realizador perfeito – embrechá-los-ia no filme, mas dum modo artístico. Quero dizer que, tal como um técnico de /página 20/ som ou de fotografia, seriam aplicados – ainda que para obter efeitos artísticos – como elementos singelos de uso técnico, assim os artistas seriam tão-somente aplicados pela sua função.

Mesmo quando o realizador adopta um argumento de outrem, ele como que declara a sua incapacidade de realizar perfeitamente, quer pretenda homenagear um autor ao tomar-lhe o tema da obra, quer pretenda dispensar-se do trabalho de concebê-la. Ao dar continuidade à obra cinematográfica, partindo do argumento, ele terá que agir como se houvera escrito este, com capacidade implícita para criar, mesmo quando não crie. Sem esta condição, acontecerá que personagens, com uma alma definida pelo seu criador, andem a cirandar no ecrã, como se tivessem arranjado outra de empréstimo e dentro dum ambiente a elas completamente estranho, assim como que acossadas pelo desastrado do realizador.

Repare-se, porém, que, quando se fala em romancista com suposta natureza de realizador perfeito, não se pretende dizer homem que escreve obras célebres, e, portanto, duma tal capacidade ao romancear, que pressupõe outra idêntica ao realizar. Romancista típico será apenas aquele que escreve ficção criteriosamente, investigando dentro das pessoas, estudando acontecimentos, analisando coisas – como cientista que observa fenómenos – com uso da razão e da sensibilidade para um fim transcendente. Que a obra de tal homem seja de valia ou não, isso não lhe tira nem dá a ele o carácter de romancista. Nas condições e intenções com que escreve se lhe patenteia a natureza, rica ou pobre, mas sempre dum certo género.

Aos outros, a quantos fazem romances para vulgar entretenimento próprio e alheio, a esses chama-se-lhes fautores de historietas, mesmo que tais historietas sejam valiosas.

Para com os realizadores haja o mesmo critério. Sejam eles o equivalente a romancistas – romancistas no vivo. Quando um só homem ensaia actores, concebe argumentos, escolhe cenários, está em campo um realizador verdadeiro, ainda que possa ser de pouco valor. E, se uma equipa de técnicos e artistas o substituir em todas as funções, haverá então como que um realizador artificial, composto de muitas peças a trabalharem coordenadamente, que são outros tantos realizadores imperfeitos, e que só por feliz achado dão um realizador perfeito.

Em Portugal ainda ninguém viu tal achado, e um realizador perfeito, nem sequer foi... procurado.

Reinaldo de Carvalho

 

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