Indissociáveis, mas parece que não
inteiramente insusceptíveis de clara delimitação e identificação, por
isso que é com base na individualização de um e outro que o Professor
Amoroso Lima empreende a sua análise retrospectiva. Numa primeira fase
(a dos modernistas da década de 20), a poesia insurge-se contra o verso;
numa segunda época (desde 1930 até 1945), nota-se o equilíbrio entre os
dois termos; a partir de um terceiro momento, verifica-se o período do
verso sobre a poesia (geração de 45 neo-modernistas, concretistas). É
esta a sua fórmula, tão sugestiva que já se radicou no jargão criticista
brasileiro.
Meritória embora, pelo próprio facto de
constituir o esqueleto de um balanço que começa a impor-se, tal base de
revisão afigura-se-me enfermar de três vícios que lhe limitam
grandemente o alcance crítico. É confusa; é simplista; é parcial.
A clareza da exposição é, na verdade,
singularmente diminuída pelo uso de conceitos e termos ambíguos e
polivalentes, lançados de modo displicente sobre o papel e tão distantes
dos utilizados naquela prosa limpa, sem arestas rebarbativas, como é a
que normalmente Alceu, amoroso, lima.
O conceito de «verso» parece
identificar-se com o de forma imposta» por escolas ou academias; mas o
de «poesia», atinal, também, na medida em que a primeira geração
modernista tinha «a preocupação da forma nova». Simplesmente, para
Amoroso Lima, esta seria uma «forma exposta» – «que é apenas o
resultado da expressão /página
10/ criadora». «Forma imposta» é, pois, a forma adoptada
pela escola velha ou pela novíssima da terceira fase, porque quando é a
escola modernista de 22, ou mesmo parte da escola menos modernista do
segundo grupo, a preocupar-se com a forma, esta é «exposta».
A «poesia» seria o ímpeto livre,
criador, anti-regra ou anti-modelo; o «verso» uma forma fixa,
denegridamente académica ou academizante ou ainda, em palavras do
ensaísta, a «poesia» seria a «liberdade», o «instinto», e analogicamente
a «vida» e a «função»; enquanto que ao «verso» se delimita um papel
analógico de «órgão» e de «instituição», e se lhe atribui a qualidade de
«forma exterior» ou «imposta» e os epítetos de «razão» e «disciplina».
Afigura-se-me inútil insistir neste
primeiro aspecto. Passemos a outro ponto, pois que a este voltaremos, no
fim desta crítica, a propósito da parcialidade do autor daquelas linhas
(e, quem sabe, da do autor destas).
Restringir ao campo meramente literário
uma análise retrospectiva da poesia brasileira deste século é
simplificar artificialmente um complexo conjunto de fenómenos,
desnaturando-o, por assim dizer, do circunstancialismo epocal e local
onde ele se processou, e sem o qual uma explicação formalista nem sequer
a si própria se basta.
|
Mário de Andrade, um dos
protagonistas do – e responsável pelo – modernismo brasileiro, o
insultado orador da Semana de Arte Moderna de São Paulo, o poeta da
«Pauliceia Desvairada», recapitularia em 1942: «A transformação
do mundo com o enfraquecimento gradativo dos grandes impérios, com a
prática europeia de novos ideais políticos, a rapidez dos
transportes e mil e uma outras causas internacionais, bem como o
desenvolvimento da consciência americana e brasileira, os progressos
internos da técnica e da educação, impunham a criação de um espírito
novo e exigiam o reverificação da Inteligência nacional. Isto foi o
movimento modernista (...)»
(3).
E é também sabido que o pouco
posterior verde-amarelismo, de Menotti del Picchia, Cassiano Ricardo
e outros, se recortou dentro do modernismo com nítidas conotações
político-sociais, mais pronunciados no verde do que no amarelo;
assim como as teria, menos ligadas àquela cor do que a esta, o
antropofagismo de Oswaldo de Andrade... Tudo isto modernista, e
nacionalista, até mesmo os cosmopolitas do Rio e de São Paulo do
começo da década, que ressuscitavam o herói brasileiro. É
regionalista. É individualista e individualizador dum movimento
mítico, numa expressão imediata e quotidiana de sentimentos e
experiências ecologicamente circunscritos. |
Uma simples amostragem:
...Aos aplausos do esfuziante clown,
Heróico sucessor da raça heril dos bandeirantes,
Passa galhardo um filho de imigrante,
Louramente domando um automóvel!
(Mário de Andrade)
Os minuetos de Vercelhes,
têm outro som dançados na corte do Tejuco.
(Pedro Nava)
O cafezal é a soldadesca verde
que solta morros na distância iluminada (...)
(Cassiano Ricardo)
...A Torre de Belém
no crepúsculo decadente
sonha com impossíveis caravelas.
(Sérgio Milliet)
Não era, pois, a «poesia» a insurgir-se
contra o «verso». O material poético é que era novo, jovem, tumultuoso:
fatalmente se criaria (apenas indirectamente) uma medida nova e
(directamente) uma prosódia original. Isso aconteceu também, na América
do Norte, com Whitman, e re-aconteceu, noutra fase histórico-social, com
Sandburg. Estilisticamente, encontramos, quase por necessidade, o verso
livre: de início mais o resultado de preocupações extra-literárias do
que ele-próprio uma preocupação literária, até ao momento em que,
lançada a nova escola, se inverte a posição destes escopos.
Na segunda fase – aquela que vai de 1930
a 1945 (balizas aliás não estabelecidas apenas por Amoroso Lima, e cuja
justeza, sendo elas afinal um pouco menos arbitrárias do que outras
quaisquer, não interessa discutir) – assiste-se ao atenuar da ferocidade
individualística e nacionalista: os «antropófagos» digeriam; Manuel
Bandeira anunciava querer ir-se embora p’ra Pasárgada; Augusto Frederico
Schmidt declarava: «Não quero mais o Brasil / Não quero mais geografia /
Nem pitoresco. // Quero é perder-me no mundo / Para fugir do mundo.»
À metafórica nacionalista e regionalista
substituía-se um corpo constante, e muitas vezes esterilizante, de «imagens-símbolos»,
na frase justa de Mário de Andrade: por «uma poesia esfomeada de
profundeza e dos grandes assuntos humanos». A corrente de 30 é «uma
escola literária, nada mais. Escamoteou-se do conceito de poesia a
modéstia do ser. E criou-se, em substituição, o preconceito que fazendo
grande poesia se fica grande poeta»
(4)
A morte, Deus, a amada, o mar, a noite,
o vento são essas – em breve repisadas – imagens-símbolos, animadas, é
certo, de uma maior maturidade emocional e entretecidas numa intenção
primordialmente lírico-contemplativa. (Por coerência /página
11/ com o seu critério, deveria o Professor Amoroso Lima
caracterizar também esta fase - e, afinal, todas as fases - pela
insurreição da «poesia» contra o «verso». A «poesia», e o «verso», é que
eram diferentes da trazida, e do combatido, pelos modernistas de 22.
Terá sido, porém, o facto de essas imagens utilizarem vocábulos mais
próximos daqueles tradicionalmente líricos que levou o Prof. Amoroso
Lima a atribuir ao «verso», nesta fase, força de tensão suficiente e
necessária para estabelecer um equilíbrio com a poesia? Uma análise
estilística revelá-lo-ia.)
Isso correspondia, ao fim e ao cabo, a
um diferente clima intelectual e a um alargamento e aprofundamento da
consciência brasileira: o marginalismo de um nacionalismo messiânico,
como o fora o da década de 20, torna-se menor; o atentar no problema
social, mais grave e menos convidativo, sobrepõe-se em urgência ao
político, que fora, como é seu costume, mais atraente e imediato para os
literatos. Destas várias causas, e de outras, resultariam: um lirismo
mais «comedido» que o da década anterior, mas não tanto como o
parnasiano; uma temática místico-religiosa, por vezes eivada de um sabor
surrealístico, presente este também em peças doutra índole; um
cosmopolitismo menos superficial que o antecedente; um aflorar de
crítica social, numa visão, ou satírica, ou melancólica, mas raras vezes
directa e circunstanciada. Foi, de resto, nítida uma evolução, dentro
deste tão largo período.
Exemplificando algumas destas
características:
«Terremoto
Maremoto
E o mundo electrizado gira furiosamente em torno do seu eixo confundindo
[ todos os países...»
(Luís Aranha)
Aceito as grandes palavras eficazes
e os caminhos que Deus pôs diante de mim.
.....................................................
Aceito os dias com seus cinemas, seus bondes,
seus flirts, suas praias de banho, sua actualidade.
Mas deixai-me ver no meio dessa conturbação
o que está acima do tempo, o que é imutável.
(Jorge de Lima)
MiI gritos clamarão por mim na noite
imensa)
Será o frio sem termo.
Subirei aos astros solitários.
(Augusto Frederico Schmidt)
Nascerei em outros terras, com olhos
novos,
.....................................
Aqui não posso fazer o que penso. Me livrarei de mim mesmo
Quando a luz enorme se anunciar pelos cirros vacilantes
e a minha alma penetrar nos espaços brancos.
(Murilo Mendes)
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E, já na transição para a sua geração,
Jamil Almansur Haddad, na «Segunda BaIada Londrina», de 1944, não se
recusa a chorar, de tão longe, a morte duma criança em Londres:
Chega de Londres
um choro de criança soterrada.
...........................
Sob os escombros
os cabelos da criança soterrada
são da cor do incêndio que os bombardeiros
[ ateiam.
Parece que a cabeça da criança foi atingida por um
[ estilhaço
e os seus cabelos brilham com um esplendor de
[ bomba incendiária.
(<<< Continuaremos
>>>)
José Palla e Carmo
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(3) - Mário de Andrade, «O
Movimento Modernista» Edição da Casa do Estudante do Brasil, Rio de
Janeiro, 1942, pág. 15.
(4) - Mário de Andrade,
«Aspectos da Literatura Brasileira», Americ-Edit., Rio, 1943, pág. 217,
218, 220. |
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