O túmulo de Júlio
Verne, no cemitério de Amiens, figura o escritor, de torso nu e com a
mortalha pelas costas, soerguendo a pesada laje tumular e emergindo do
coval com o braço estendido para o alto, os olhos postos no porvir e a
atenção suspensa da alvorada que rompe...
Ora, há tempos, o
guarda do cemitério comunicou às autoridades que a escultura
desaparecera, restando dela a laje e a mortalha. O roubo atingira também
o próprio guarda, de cuja casa (sita à entrada do cemitério) haviam
desaparecido o fato domingueiro e várias peças de vestuário e calçado.
Causou o atentado indignação e fizeram-se aturadas investigações de que,
infelizmente, nada resultou. Mas o que mais intrigou os detectives e os
peritos foi a circunstância de não haver vestígios de rotura violenta na
mortalha e na laje do conjunto escultórico, não obstante este ter sido
talhado num único bloco de pedra.
Já o incidente
esquecia, quando uma manhã o guarda notou que a laje fora descida sobre
o coval, tapando-o. Interrogou os serventes, mas todos negaram que lhe
houvessem mexido. E qual não foi o seu espanto, soerguida a laje, ao
verificar que sob ela jazia a estátua de Júlio Verne, envolta na
mortalha, a qual guardava entre os braços, descaídos ao longo do corpo,
um pequeno manuscrito! Inexplicavelmente, a mortalha estava de novo
ligada ao corpo, os olhos fechados, a expressão taciturna e
envelhecida...
Dividiram-se os
peritos. Segundo uns, a escultura nada tinha a ver com a primitiva, pois
fora talhada em pedra diversa da da laje; segundo outros, o manuscrito
era, sem qualquer dúvida, do próprio punho de Júlio Verne... Mas o que
mais inquietou o guarda foi encontrar, aos pés do coval, as peças de
vestuário roubadas, com evidentes sinais de prolongado uso.
Não sabemos em que
ponto estarão, neste momento, as investigações. Não é, aliás, o aspecto
policial que aqui nos ocupa, mas o interesse do inédito (apócrifo ou
não) que passamos a transcrever:
Meus Caros Leitores:
A minha obra ficaria
incompleta se, em apêndice à Viagem ao Centro da Terra, não
houvesse o breve Regresso à Superfície da Terra que hoje venho
dar-vos. Foi para o escrever que abandonei, transitoriamente, o formoso
túmulo em que me inumaram, e, envergando as roupas do guarda deste
cemitério (a quem lego, a título de indemnização, os direitos desta
carta), fiz uma peregrinação pelo mundo. Tudo vi. E bem escuso
descrever-vos as novidades que encontrei, pois sobejamente as conheceis.
O meu propósito é
outro. À semelhança do que os tártaros fizeram a Miguel Strogoff,
momentos antes de lhe chegarem aos olhos a lâmina incandescente, quero
gritar-vos: Abri os olhos! Abri-os bem, pois estais, como ele, em
riscos de cegueira!
Em breve sabereis que
há vida na Lua. Quando? Na noite de lua-nova em que fizerdes explodir no
espaço, qual gigantesco very light, /página
4/ uma das vossas bombas termo-nucleares. Então vereis os
segredos da face desconhecida da Lua que, pelo facto da velocidade de
rotação desse satélite ser igual à de translação, tem estado, desde o
princípio dos tempos, mergulhada em sombra para os habitantes da Terra.
E conhecereis que miríades de estranhos seres habitam essa face,
deslocando-se, sem parança, no sentido do poente, logo que a luz do Sol
se avizinha do horizonte do ponto em que estão. Porquê? Porque a pequena
massa da Lua, a natureza do seu solo, a sua menor superfície em relação
à Terra, bem assim como a maior proximidade do Sol a que se encontra uma
parte da órbita que descreve tornam a vida incompatível com a
temperatura que atinge o solo da face iluminada. Daí que toda uma legião
de seres, anaeróbios mas corpulentos, corra incessantemente atrás da
sombra. E, porque a velocidade de rotação e translação da Lua é
suficientemente pequena para o permitir, assim vão vivendo numa sucessão
de pequenos altos em que se nutrem dos fungos e cogumelos que cobrem as
paredes das inúmeras cavernas e galerias de que a Lua
— gigantesca
pedra-pomes — está minada, e em que descansam, se reproduzem e enterram
(ou enluam) os mortos,
— autênticos caixeiros-viajantes da vida que são.
Mas vós, meus
queridos leitores, fazeis hoje, mentalmente, o mesmo! Pois que é a vossa
vida senão uma corrida sem tréguas na peugada da sombra que a sinistra
bola de fogo das explosões atómicas projecta a milhares de quilómetros
de distância? Todos viveis na insegurança da noite em que poderá raiar,
subitamente, o clarão sinistro da fissuração dos átomos. Essa admirável
conquista da ciência, que o meu Nemo anteviu, e que tão amplas
perspectivas de futuro poderia rasgar aos vossos olhos
— não apontei há
pouco senão uma das mais ínfimas!
— tornou-se um pesadelo. Por isso
recolhi ao túmulo, angustiado. E só consentirei em reassumir a posição,
face à posteridade, que a vossa gentileza me talhara no mármore, no dia
em que tiverdes conjurado a ameaça que paira sobre a Humanidade,
eliminado o perigo duma guerra!
Amarguradamente
vosso,
a) Júlio Verne
27/3/1955 Pela cópia,
Mário Sacramento |