A existência dos dois géneros
(Tragédia e Comédia) tem sido justificada, no plano da
construção, pela ideia ou pelo fim, no plano da
realização, pela forma ou pelo processo;
assenta-se normalmente em que o plano de construção da Tragédia
diverge do da Comédia no desenvolvimento Interior da ideia e na
diversidade do fim, e, consequentemente, em que o plano de
realização da Tragédia diverge do da Comédia no desenvolvimento
exterior da ideia (forma) e no processo histriónico escolhido
(processo particular aplicado). Mas, como TEATRO é designação
usada para uma expressão artística que, através de vários
processos construtivos, se manifesta por vários sucessos de
realização, a construção de uma peça, em Teatro, é apenas um
momento da realização, e, /página
2/ portanto, para se atingir um conceito de género dentro
de tal medida, interessa apenas a realização conjunta, total e
final, tomada a partir dos efeitos determinados (os efeitos
determinantes interessam só à apreciação).
Ora, Comédia e Tragédia são
géneros que só abusivamente cabem dentro dos quadros da análise
literária, porque não são totais pela ideia e pela palavra;
enquanto Poesia e Romance se acabam precisamente em ideia e
palavra, estas, na Tragédia e na Comédia, são elementos
carecendo de vida pela forma, uma forma que os conduz e que
nunca deve ser conduzida por eles. Comédia e Tragédia são
géneros que, portanto, não cabem dentro de conceitos
antagónicos, porque, como elementos contributivos,
contribuiriam então para a dispersão, e, porventura, para o
aniquilamento da arte que servem. Uma arte é uma unidade, e, com
mais ou menos parcelas, mais ou menos irisada, não deixa de ser
uma unidade válida; ora, a unidade pode atingir-se por caminhos
diferentes ou por somas de parcelas diferentes, mas nunca por
caminhos ou somas de parcelas divergentes – e por isso nos
encontramos no momento de análise conceptual que exclui a
divergência:
— Tragédia é a
realizaçãoem-Teatro dada através de uma sublimação de atitudes
interiores e de uma consumação da acção.
— Comédia é a
realização-em-Teatro dada através de uma reprodução de atitudes
exteriores e de uma interrupção da acção.
(Os termos sublimação de
atitudes e reprodução de atitudes dizem respeito ao primeiro
momento da realização - construção; os termos interior
e exterior dizem respeito ao segundo momento - momento
final dá realização). Assim, onde o primeiro momento é feito de
uma sublimação de atitudes, o segundo momento acaba-se no plano
interior da expressão espiritual e simbólica; onde o primeiro
momento é feito de reprodução de atitudes, o segundo momento
acaba-se no plano exterior da expressão pelo gesto (expressão
material). A acção é toda interior ou toda exterior e, como a
acção interior não se compadece com interrupções, a consumação
dá-se em vida de cena, e, como a acção exterior é toda
imediata, acontece haver sempre um momento susceptível de
interrupção. Pode dizer-se que também a Comédia se tece com
elementos interiores, espiritualmente válidos, mas fá-lo
aplicando-lhes um domínio formal determinante, isto é, tece-os
pela aparência significativa, momento exterior de uma essência
discutível. A Comédia não procura eternizar-em-si o cerne do
conflito, mas reproduzi-lo em alheamento – o conflito é que, em
circunstâncias idênticas, pode repetir-se e eternizar o quadrado
artístico que o reproduziu. A Tragédia, debruçando-se até ao
fundo, alarga o conflito por dentro e expõe-lhe a pele mais
íntima em símbolo a pedir atenção eterna. Claro que para um
conflito contribuem momentos ajustados, e, por exemplo, um
domingo de campos verdes, com sinos, outras gravatas e muito
sol, ou um meio-dia de semana com operários partidos pela cinta,
céu enfarruscado, cestas escuras de almoço e outra gente
apressada são cenas de Teatro ou para Teatro, mas cenas
parciais, agora carecendo de ideia e palavra, à espera,
portanto, de reprodução para os sentidos imediatos ou de
sublimação pelo espírito. Reproduzindo, a Comédia deduz;
sublimando, a Tragédia induz.
De posse dos conceitos,
interessa agora averiguar quais os processos necessários para
uma realização total; e interessa também saber até que ponto os
dois géneros são susceptíveis de enxerto ou combinações (uma vez
que está excluído o conceito de antagonismo).
— Os processos a adoptar são
todos-interioridade ou todos-exteriorização. Na realização final
da Tragédia, a ideia (acção interior) comunica-se ao processo e
é transposta para os vários elementos de cena: cenário, luz,
guarda-roupa, caracterização; na realização final da Comédia,
estes mesmos elementos todos-exteriores vivem e contribuem para
o sucesso final da reprodução. Não há divergência de processos,
mas, diferença de aplicação dos processos. Para o demonstrar,
escolhamos, ao acaso, elementos de peças clássicas e modernas:
Em «A longa Ceia de Natal»,
tragédia de costumes de Thornton Wilder, exige-se, em
desenvolvimento de acção, a concretização cénica duma ideia
toda-interior – a morte; essa concretização é realizada
em cenário por uma porta de fundo simbólica; na mesma peça, o
envelhecimento, ideia interior da acção, é realizado em cena
por um acrescento de caracterização feito à vista do público
(colocação de cabeleiras) – as ideias-interiores é que se
transpõem para o esquema cénico. Em «O Auto da Índia», comédia
de costumes de Gil Vicente, a porta da casa da Ama é construída
de maneira a facilitar a reprodução dos elementos de
acção-exterior, e a caracterização é feita não para exprimir a
ideia-interior, mas para imprimir veracidade à reprodução /página
4/ exterior da ideia. Há uma dependência oposta: na
Tragédia, a ideia (esquema interior) determina os elementos de
cena; na Comédia, estes ajudam a construir e a explorar a
situação (esquema exterior).
Novo exemplo: na comédia «Pigmalião»
de Bernard Shaw, a linguagem da florista é reprodução, mero
elemento exterior, explorado momentaneamente por contraste... e
por necessidade; não há um determinismo íntimo ou simbólico que
force aquela linguagem. Em «A Casa de Bernarda Alba» de Garcia
Lorca, até os nomes das personagens são simbólicos, porque vão
ser ditos em cena, e são, só por si, possuidores da ideia que
está a desenvolver-se, e não elaboradores ou ajudantes de
elaboração da cena em movimento.
Viu-se, por outro lado, que a
Tragédia se realiza, ao contrário da Comédia, até à consumação
da acção – de facto, uma atitude interior, espiritualmente
completa, tende para a libertação e, nesse ponto, consuma-se
inexoravelmente em frustração e dor; um momento altamente
interior deixaria de o ser (e a Tragédia acabaria) no momento em
que abdicasse do seu propósito de ascensão. Um momento exterior,
que, por depreciação, pode inclusivamente conter uma raiva
momentânea, uma paixão ridícula ou uma ambição baixa,
interrompe-se (e muito bem) com um cair de pano ou com um ponto
final, depois de exploradas as atitudes e as palavras que o
conduziram. Assim chegamos à aparente irredutibilidade dos
géneros, e aparente, porque o Teatro de hoje, por título alheio
a esquemas, tem entretanto cavado nos dois campos (cada vez mais
próximos e dolorosos) e, desta maneira, conseguido realizações
de equilíbrio perigoso, só atingido em plenitude por mãos
aguçadas pelo génio.
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A conjugação dos dois géneros, de molde a
produzir um terceiro que não seja o circo, é tarefa de altas
proporções – quando cada papel é expressão e símbolo simultâneo
de uma ridícula frustração individual e de um desencontro no
alto plano sociológico, o diálogo e a realização final ameaçam
tornar-se num labirinto sem solução. Por outro lado, a
conjugação de esquemas e de atitudes pode levar a um resultado
de torturante beleza e poder, como, por exemplo, em «Espera de Godot» de Samuel Beckett: toda a peça é construída e realizada
sobre uma reprodução-em-comédia de uma ridícula dor individual
e, simultaneamente, sobre uma sublimação-em-Tragédia de um fatal
desencontro de sociedades, e o resultado é um vaso magnífico de
forma e de conteúdo ideal. Didi e Gogo aparecem
nas nossas estradas e fazem-nos rir; mas a sociedade onde há «Didis»
e «Gogos» faz-nos chorar. É tudo. |
Alberto Pimenta |