Pode, na verdade, atingir a história um extremo de metodologia
científica — ao exercer-se pela investigação, construção e expressão —
que acaba sempre por depender algo do historiador.
A história, firmada na objectividade dos
factos evocados, não se limita a documentar os mesmos factos, dado que
eles são seleccionados e interpretados pelo historiador. Este forçoso
subjectivismo, que impede de considerar-se a história uma ciência
exacta, torna-a um processo de conhecimento específico em que o
recriador do passado é paradoxalmente o mais consciente, poderoso e
responsável auxiliar da verdade.
E como a verdade histórica é uma
aspiração, um ideal sempre a realizar, a intervenção do humano juiz é
tão eficiente que dá o sentido à conjuntura dos acontecimentos
reconstituídos. É o historiador quem dinamiza e desenvolve a história.
Mais ainda: chaque époque se choisit un passé, como asseverou
Raymond Aron; a precariedade das sínteses históricas reside mesmo na
alternância ou sucessão das épocas e meios (acomodados a
idiossincrasias) em que surgem os cultores da história.
Se a história universal ordena,
estrutura e narra os acontecimentos humanos significativos, a história
da arte, ao elaborar o processo geral da actividade artística, estuda um
dos mais definidos contributos de humanização.
Arqueologia e história da arte respeitam
aos testemunhos monumentais do passado: ocupam-se de documentos que
permanecem como entidades vivas.
Enquanto a arqueologia analisa o
monumento pelo que vale para a harmonização de tipos definidores duma
cultura ou para reconstituir uma civilização, a história da arte —
aproveitando este signum arqueológico — considera o monumento
como artefacto, portador de beleza e duma inerente mensagem espiritual.
Ao arqueólogo interessam todos os
monumentos, sem distinção de valor, enquanto ao historiador da arte
interessam aqueles que selecciona como empreendimentos artísticos.
O historiador de arte encara o monumento
como obra viva — estuda um testemunho mudo, mas sempre eloquente. O
monumento artístico é um documento histórico primário que revela
directamente o passado: é o testemunho autêntico per se, com
linguagem de projecção intemporal; esta evidência, compreendida e
relacionada, explica e pode estruturar a cultura que o gera. As épocas e
os estilos definem-se pelo florescimento típico e sincrónico de certas
formas de arte.
A história da arte é afinal a história
das maneiras sucessivas de ver o mundo, isto é, a resenha dos modos de
representação artística.
A espinha dorsal da história da arte —
no consenso de Berenson — é a sucessão dos estilos, modos ou mudança de
interesse, sentido e gosto e não os artistas individuais (por mais
dotados que se revelem).
Como o interesse pelo passado depende
tão intimamente dos problemas do presente que, se este muda também mudam
os seus interesses específicos e a sua maneira de ver as obras de arte,
deduz o mesmo Berenson ser esta a razão, mais do que a descoberta de
novos documentos (por mais valiosos que possam ser), que obriga
continuamente a reescrever a história da arte.
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«Introdução», à obra inédita,
Historiografia da Arte em Portugal, comunicação apresentada no IV
Colóquio Internacional de Estudos Luso-Brasileiros, de Salvador da Bahia,
Brasil, no mês de Agosto de 1959. |