BOLETIM   CULTURAL   E   RECREATIVO   DO   S.E.U.C.  -   J.  ESTÊVÃO


PÁGINA 1
Editorial
Henrique J. C. Oliveira
PÁGINA 2
Repensar as
medidas pedagógicas

João Paulo C. Dias
PÁGINA 3
Jornais Escolares
Henrique J. C. Oliveira
PÁGINA 4
Contos populares
portugueses

Dá-me o meu meio tostão
PÁGINA 5
Dia da Poesia com
Rui Grave

HJCO e Paula Tribuzi
PÁGINA 6
Divulgação
HJCO e J. Paulo C. Dias
PÁGINA 7
Computadores e Prof2000
HJCO
PÁGINA 8
25 de Abril de 1974 - Uma leitura possível
Alcino Cartaxo
PÁGINA 9
De alienação em alienação
Isabel Bernardino
PÁGINA 10
O destino - Já traçado?
Sérgio Loureiro
PÁGINA 11
Dia da África
Alunos PALOP
PÁGINA 12
Escrita da Casa e Humor
Diversos
PÁGINA 13
Hora do Recreio
HJCO
PÁGINA 14
Fac-símile da versão impressa
 


UMA POSSÍVEL LEITURA

O 25 de Abril foi um acontecimento incómodo. Ele vem encontrar-nos em perfeita sintonia com a rotina instalada, gerada por anos de vivências impostas, de pressões interiorizadas, de frustrações fomentadas, de vidas vigiadas, de negação da cidadania, de silêncios, de prisões. O regime era proibitivo, castigador, ameaçador, violento, desumano, castrador. Por isso, apenas nos era permitido estar de acordo. Daí, a incomodidade de um acontecimento que nos despertou para uma outra realidade emergente, para uma realidade por fazer, para uma realidade a exigir o nosso compromisso com uma participação activa e reflexiva na construção de um outro País, que havia sido suspenso há muitos anos. A Revolução dos Cravos foi, neste sentido, um gesto histórico incómodo pelo “desassossego provocado”. Fomos chamados à discussão, às análises críticas, à participação activa e esclarecida, à militância política ou ideológica, à opção, à adesão ou à rejeição, ao combate, à mobilização em torno de um projecto nascente. E isto incomoda, porque nos força à reflexão e à vigilância permanentes, porque nos exige um olhar atento e descobridor de intenções e caminhos. Teria sido “mais gratificante”, “mais confortável”, a permanência na submissão e no silêncio, talvez. Teria sido mais cómodo o nosso pensamento ter continuado a sua ausência, a sua aposentação compulsiva e “consentida”. Sartre exprimia-se deste modo: “O quietismo é a atitude das pessoas que dizem: os outros podem fazer aquilo que eu posso fazer”.

Quando o 25 de Abril saúda o povo português, é o acto de legitimação das consciências individuais, é o reconhecimento público da autonomia sentimental e intelectual, é a afirmação da nossa cidadania.

Nessa primaveril madrugada de Abril, acordámos em liberdade, fomos chamados à vida, fomos apelados e projectados na história. Em Abril, aconteceu a Revolução, anunciadora de transformações políticas, económicas, culturais, sociais e educativas, profundas e totais. Uma Revolução encantada e alimentada pela ideia de mudança, durante tantos anos inibida e agrilhoada.

O 25 de Abril reabilitou o futuro português, feito de projectos, de possíveis, de esperança, de liberdade. Um futuro que tem escolha, que tem disponibilidades dialogantes e com rosto. O presente é o local das metamorfoses anunciadas e desejadas: uma história refundada e posta, de novo, em questão, porque abre para um futuro novo, uma história que não é, apenas, o prolongamento do já feito, porque o homem readquire o direito de assumir a responsabilidade do seu destino, um projecto novo a reclamar a invenção do homem novo. O 25 de Abril é o borbulhar de mundos possíveis.

Daí que, inerente ao próprio espaço de Abril, esteja o plural, o diferente, o diverso. Abril não entrou pela mesma porta nas casa dos portugueses, nem todas as portas se abriram do mesmo modo. Não há acontecimentos, uniforme e universalmente, acolhidos. Afinal, não são os homens e as mulheres, na sua singularidade e individualidade, fruto de histórias diversas e plurais? Natural que, em consequência, o 25 de Abril tenha provocado desequilíbrios, perturbações, desordens, desvios. O “acto fundador” das nossa história possível é marcado, de facto, pela perturbação, pela irregularidade, pela quebra do previsível, pelo desvio à norma institucionalizada e sagrada dos tempos da aparente tranquilidade e submissão. Ele surge com a novidade, com o regresso ao sonho, à imaginação criativa, a novos caminhos. É o novo espaço, é um tempo novo.

A ruptura com o passado está impressa neste gesto irreversível anunciado pelo 25 de Abril. E essa ruptura é um acto cultural nas suas origens, porque inovadora, promotora de uma nova mentalidade, anunciadora de uma nova imagem do homem económico e do homem político. Infelizmente, reconheçamo-lo, os agentes e os actores da vida política pouco espaço têm reservado ao cultural, adiando, assim, a interiorização consciente e esclarecida de uma data que marcou e marcará o Portugal contemporâneo, por uma parcela significativa do povo português. O importante não se reduz à constatação dos factos. O importante e essencial é compreender como se geram as novas realidades: na investigação científica, na criação estética, na intervenção social e política. Daí que o “desvio inovador” trazido pelo 25 de Abril não possa ser ignorado por homens e mulheres do nosso tempo. A data que assinalamos, marca, efectivamente, a ruptura com o velho, com a norma, com o sagrado, com o instituído, para anunciar a construção do novo, da mudança, de um humanismo digno do homem com rosto. Sonho plenamente realizado? Quem terá alguma vez realizado o sonho total? Nenhuma revolução respondeu vez alguma ao sonho total de um povo. Os sonhos são diversos, como diversos são os projectos que os alimentam.

 

Por isso, reconheçamos potencialidades num 25 de Abril ainda não totalmente presente. O tempo é, ainda, um tempo suspenso, um tempo a fazer-se. Os novos modos de vida emergentes de Abril trazem consigo as hesitações, os avanços e os recuos do inacabado e do provisório. Fruto de uma transformação feita de ritmos diferenciados, de instantâneos fragmentados. O elemento integrador e globalizante de uma revolução anunciada situa-se, ainda, no por fazer. O trabalho cultural a desenvolver é imenso. A compreensão global e integradora desta data de referência da nossa história recente passa pela relação cultural do homem com o mundo, com a vida, com o trabalho, com a política, com os acontecimentos de um universo em saltos permanentes. Somos, ainda, pedaços de uma história que nos anunciaram numa madrugada de Abril, onde nos inscreveram e nos disseram que, de facto, Abril existiu. Somos os herdeiros do acto (re)fundador da nossa cidadania.

Vivemos numa sociedade e num tempo marcados pela complexidade e pela diversidade, o que não constitui em si mesmo elemento impeditivo de, em unidade na diversidade, assumirmos, simbolicamente, o esforço colectivo construtor de um humanismo identificado, com rosto, com nome. Um humanismo aberto que se empenhe em elaborar uma cultura que não se limite a respostas do passado, mas centrada nas questões postas pela invenção do futuro, uma cultura que não seja o privilégio e o ornamento de alguns, mas a possibilidade da realização humana de todos, uma cultura que não feche o homem em si próprio, mas que o abra a uma criação continuada do futuro. O “nosso” Abril não pertence ao espaço clandestino, à marginalidade, ao mundo da exclusão. Pertence-nos. Ele é do nosso quotidiano, porque nos “revelou” um outro modo de estar no mundo e de lidar com o tempo e com o espaço que nos envolve. Ele é, hoje, o referencial privilegiado da nossa contemporaneidade.

E que anunciou ele a este Portugal? Apenas isto: a esperança da mudança. Uma esperança a fazer-se, a desfazer-se, a refazer-se. O 25 de Abril não esconde a sua alegria por ter devolvido a um povo inteiro a dimensão do mundo em que está inserido, abre um espaço de liberdade, expressa na participação colectiva na vida política, na discussão ideológica, na determinação do futuro de todos nós enquanto cidadãos e actores e autores de novas realidades e de novas oportunidades, de novos mundos e de novas culturas, coisa que, efectivamente, estava coarctada pelo sistema imposto pelo velho regime. Na antiguidade, apenas uma minoria tinha o nome de “homem livre”. Hoje, todos os homens se pretendem livres, porque parte integrante da sua condição humana e de cidadão. Com o 25 de Abril, a liberdade instala-se. É o homem novo que desperta e afirma a sua ânsia de liberdade, que abandona as suas fobias, que arquiva as correntes que bloquearam os seus movimentos, os seus gestos, o seu pensamento, os seus afectos. O homem reconcilia-se com o seu tempo e com o seu mundo, porque, finalmente, tem vez e voz, tem direito, de novo, à fala, ao discurso, ao silêncio, à tranquilidade e à intimidade, ao questionamento e à argumentação, à discordância e à presença no espaço público. Esta liberdade e estes direitos reclamam a nossa presença e vigilância permanentes, pois o mundo em que ela se anuncia e se propagandeia, não lhe dá segurança ou a certeza do seu direito a uma vida secular ou milenar, a uma vida escolhida e vivida. Ser livre implica compromisso e militância.

O homem não é um simples objecto submetido a estranhos e redutores determinismo. Está permanentemente a assumir a sua situação de ser-no-mundo com os outros, dando-lhe um sentido, uma dimensão histórica, uma permanente abertura ao possível. O homem é aventura e esta gera o excesso que o lança na conquista e defesa de um espaço de liberdade, de humanidade, de individualidade, de socialidade. A liberdade do homem radica na plena libertação de si mesmo, que ele procura, em luta permanente, alcançar e, assim, tornar-se em agente da história e da sociedade, da cultura e da vida. Nesta perspectiva, o homem entra no domínio da política, onde cabem os seus actos intencionais e conscientes, os seus apontamentos do quotidiano e os seus gestos mobilizadores de energias e de vontades colectivas.

Mas a liberdade não se limita ao uso legítimo e exclusivo da linguagem como forma de expressão do pensamento, ao acesso à palavra e sua combinação livre. Ser livre não equivale, apenas, a deixar escapar a liberdade do pensamento. Ser livre é, também, escapar à morte. O 25 de Abril anunciou essa esperança. Mas o confronto com a morte, a humilhação e o sofrimento permanece no activo do nosso quotidiano. Não é lícito pedir ao homem que exerça a sua liberdade enfrentando a morte, pois não é livre e aquilo a que aspira, é, simplesmente, viver e evitar o acontecimento que mata. O confronto com a morte “mata” o acesso à liberdade. A morte tem nome: fome, pobreza, doença, guerra, subdesenvolvimento, desemprego, sem abrigo. A história legitima estas situações e, “normalmente”, absolve os verdadeiros responsáveis. Que resta, então, ao homem? Assumir a coragem histórica da sua libertação, a fim de que o sofrimento e a humilhação se apaguem. Antoine de Saint-Exupéry exprimia-se deste modo: Respeito pelo Homem! Respeito pelo Homem! Se o respeito pelo homem radica no coração dos homens, os homens acabarão por criar, em contrapartida, o sistema social, político ou económico que consagre esse respeito.

Mas a liberdade consagra, igualmente, o direito â diferença. Um direito esclarecido e vivido na necessidade de intervir ao nível do real. Assumir, passivamente, um acontecimento é submissão, auto-anulação, auto-exclusão. Liberdade e responsabilidade estão condicionadas pela história. A consciencialização-intervenção do ser humano é a única forma possível de assumir uma liberdade responsável. A mulher/o homem devem reentrar na história como os soberanos esclarecidos do Universo.

Hoje, aqui, realizamos, simbolicamente, a reconquista da nossa cidadania, em ambiente de unidade na diferença, em ambiente democraticamente assumido.

Hoje, aqui, repensamos a mensagem de Abril. Hoje, em que cada vez mais as sociedades coisificam o ser humano, reduzindo-o a um mero instrumento lucrativo, retoma toda a actualidade o tema do homem libertado anunciado por um 25 de Abril repleto de humanidade e de dignidade. Os homens que fizeram Abril e que mobilizaram um povo inteiro de cravo vermelho em todo o lado, não podem ser retirados da nossa história. Foram eles os obreiros directos desta ruptura, desta revolução, desta recuperação do direito à rua, ao nome, ao corpo, ao pensamento, à razão.

Termino citando Marcuse: os escravos da civilização industrial avançada são escravos sublimados, mas continuam escravos porque a escravatura pode definir-se, não pela obediência, nem pela rudeza dos trabalhos, mas pelo estatuto de instrumento e pela redução do homem ao estado de coisa (...) Existir como instrumento, como coisa, é a forma pura da servidão. O rosto humano de Abril é um facto, independentemente dos incidentes de percurso de tonalidades diferentes. A liberdade e a democracia, valores reabilitados por Abril, são uma realidade. Haveremos de voltar a encontrar-nos. Em cada ano, o calendário anunciará o 25 de Abril Português. Em cada dia, ecoará o 25 de Abril da liberdade e da democracia.

Alcino Cartaxo

Este artigo foi escrito para assinalar o 13º Aniversário do 25 de Abril, em Vagos, no ano de 1987. Os cartazes foram obtidos a partir do «site» do «Centro de Documentação 25 de Abril» da Universidade de Coimbra.


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