O 25 de Abril
foi um acontecimento incómodo. Ele vem encontrar-nos em
perfeita sintonia com a rotina instalada, gerada por
anos de vivências impostas, de pressões
interiorizadas, de frustrações fomentadas, de vidas
vigiadas, de negação da cidadania, de silêncios, de
prisões. O regime era proibitivo, castigador,
ameaçador, violento, desumano, castrador. Por isso,
apenas nos era permitido estar de acordo. Daí, a
incomodidade de um acontecimento que nos despertou para
uma outra realidade emergente, para uma realidade por
fazer, para uma realidade a exigir o nosso compromisso
com uma participação activa e reflexiva na
construção de um outro País, que havia sido suspenso
há muitos anos. A Revolução dos Cravos foi, neste
sentido, um gesto histórico incómodo pelo “desassossego
provocado”. Fomos chamados à discussão, às
análises críticas, à participação activa e
esclarecida, à militância política ou ideológica, à
opção, à adesão ou à rejeição, ao combate, à
mobilização em torno de um projecto nascente. E isto
incomoda, porque nos força à reflexão e à
vigilância permanentes, porque nos exige um olhar
atento e descobridor de intenções e caminhos. Teria
sido “mais gratificante”, “mais confortável”, a
permanência na submissão e no silêncio, talvez. Teria
sido mais cómodo o nosso pensamento ter continuado a
sua ausência, a sua aposentação compulsiva e “consentida”.
Sartre exprimia-se deste modo: “O quietismo é a
atitude das pessoas que dizem: os outros podem fazer
aquilo que eu posso fazer”.
Quando o 25 de
Abril saúda o povo português, é o acto de
legitimação das consciências individuais, é o
reconhecimento público da autonomia sentimental e
intelectual, é a afirmação da nossa cidadania.
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Nessa
primaveril madrugada de Abril, acordámos em
liberdade, fomos chamados à vida, fomos apelados
e projectados na história. Em Abril, aconteceu a
Revolução, anunciadora de transformações
políticas, económicas, culturais, sociais e
educativas, profundas e totais. Uma Revolução
encantada e alimentada pela ideia de mudança,
durante tantos anos inibida e agrilhoada. |
O 25 de Abril
reabilitou o futuro português, feito de projectos, de
possíveis, de esperança, de liberdade. Um futuro que
tem escolha, que tem disponibilidades dialogantes e com
rosto. O presente é o local das metamorfoses anunciadas
e desejadas: uma história refundada e posta, de novo,
em questão, porque abre para um futuro novo, uma
história que não é, apenas, o prolongamento do já
feito, porque o homem readquire o direito de assumir a
responsabilidade do seu destino, um projecto novo a
reclamar a invenção do homem novo. O 25 de Abril é o
borbulhar de mundos possíveis.
Daí que,
inerente ao próprio espaço de Abril, esteja o plural,
o diferente, o diverso. Abril não entrou pela mesma
porta nas casa dos portugueses, nem todas as portas se
abriram do mesmo modo. Não há acontecimentos, uniforme
e universalmente, acolhidos. Afinal, não são os homens
e as mulheres, na sua singularidade e individualidade,
fruto de histórias diversas e plurais? Natural que, em
consequência, o 25 de Abril tenha provocado
desequilíbrios, perturbações, desordens, desvios. O
“acto fundador” das nossa história possível é
marcado, de facto, pela perturbação, pela
irregularidade, pela quebra do previsível, pelo desvio
à norma institucionalizada e sagrada dos tempos da
aparente tranquilidade e submissão. Ele surge com a
novidade, com o regresso ao sonho, à imaginação
criativa, a novos caminhos. É o novo espaço, é um
tempo novo.
A ruptura com o
passado está impressa neste gesto irreversível
anunciado pelo 25 de Abril. E essa ruptura é um acto
cultural nas suas origens, porque inovadora, promotora
de uma nova mentalidade, anunciadora de uma nova imagem
do homem económico e do homem político. Infelizmente,
reconheçamo-lo, os agentes e os actores da vida
política pouco espaço têm reservado ao cultural,
adiando, assim, a interiorização consciente e
esclarecida de uma data que marcou e marcará o Portugal
contemporâneo, por uma parcela significativa do povo
português. O importante não se reduz à constatação
dos factos. O importante e essencial é compreender como
se geram as novas realidades: na investigação
científica, na criação estética, na intervenção
social e política. Daí que o “desvio inovador”
trazido pelo 25 de Abril não possa ser ignorado por
homens e mulheres do nosso tempo. A data que
assinalamos, marca, efectivamente, a ruptura com o
velho, com a norma, com o sagrado, com o instituído,
para anunciar a construção do novo, da mudança, de um
humanismo digno do homem com rosto. Sonho plenamente
realizado? Quem terá alguma vez realizado o sonho
total? Nenhuma revolução respondeu vez alguma ao sonho
total de um povo. Os sonhos são diversos, como diversos
são os projectos que os alimentam.
Por isso,
reconheçamos potencialidades num 25 de Abril ainda não
totalmente presente. O tempo é, ainda, um tempo
suspenso, um tempo a fazer-se. Os novos modos de vida
emergentes de Abril trazem consigo as hesitações, os
avanços e os recuos do inacabado e do provisório.
Fruto de uma transformação feita de ritmos
diferenciados, de instantâneos fragmentados. O elemento
integrador e globalizante de uma revolução anunciada
situa-se, ainda, no por fazer. O trabalho cultural a
desenvolver é imenso. A compreensão global e
integradora desta data de referência da nossa história
recente passa pela relação cultural do homem com o
mundo, com a vida, com o trabalho, com a política, com
os acontecimentos de um universo em saltos permanentes.
Somos, ainda, pedaços de uma história que nos
anunciaram numa madrugada de Abril, onde nos inscreveram
e nos disseram que, de facto, Abril existiu. Somos os
herdeiros do acto (re)fundador da nossa cidadania.
Vivemos numa
sociedade e num tempo marcados pela complexidade e pela
diversidade, o que não constitui em si mesmo elemento
impeditivo de, em unidade na diversidade, assumirmos,
simbolicamente, o esforço colectivo construtor de um
humanismo identificado, com rosto, com nome. Um
humanismo aberto que se empenhe em elaborar uma cultura
que não se limite a respostas do passado, mas centrada
nas questões postas pela invenção do futuro, uma
cultura que não seja o privilégio e o ornamento de
alguns, mas a possibilidade da realização humana de
todos, uma cultura que não feche o homem em si
próprio, mas que o abra a uma criação continuada do
futuro. O “nosso” Abril não pertence ao espaço
clandestino, à marginalidade, ao mundo da exclusão.
Pertence-nos. Ele é do nosso quotidiano, porque nos “revelou”
um outro modo de estar no mundo e de lidar com o tempo e
com o espaço que nos envolve. Ele é, hoje, o
referencial privilegiado da nossa contemporaneidade.
E que anunciou
ele a este Portugal? Apenas isto: a esperança da
mudança. Uma esperança a fazer-se, a desfazer-se, a
refazer-se. O 25 de Abril não esconde a sua alegria por
ter devolvido a um povo inteiro a dimensão do mundo em
que está inserido, abre um espaço de liberdade,
expressa na participação colectiva na vida política,
na discussão ideológica, na determinação do futuro
de todos nós enquanto cidadãos e actores e autores de
novas realidades e de novas oportunidades, de novos
mundos e de novas culturas, coisa que, efectivamente,
estava coarctada pelo sistema imposto pelo velho regime.
Na antiguidade, apenas uma minoria tinha o nome de “homem
livre”. Hoje, todos os homens se pretendem livres,
porque parte integrante da sua condição humana e de
cidadão. Com o 25 de Abril, a liberdade instala-se. É
o homem novo que desperta e afirma a sua ânsia de
liberdade, que abandona as suas fobias, que arquiva as
correntes que bloquearam os seus movimentos, os seus
gestos, o seu pensamento, os seus afectos. O homem
reconcilia-se com o seu tempo e com o seu mundo, porque,
finalmente, tem vez e voz, tem direito, de novo, à
fala, ao discurso, ao silêncio, à tranquilidade e à
intimidade, ao questionamento e à argumentação, à
discordância e à presença no espaço público. Esta
liberdade e estes direitos reclamam a nossa presença e
vigilância permanentes, pois o mundo em que ela se
anuncia e se propagandeia, não lhe dá segurança ou a
certeza do seu direito a uma vida secular ou milenar, a
uma vida escolhida e vivida. Ser livre implica
compromisso e militância.
O homem não é
um simples objecto submetido a estranhos e redutores
determinismo. Está permanentemente a assumir a sua
situação de ser-no-mundo com os outros, dando-lhe um
sentido, uma dimensão histórica, uma permanente
abertura ao possível. O homem é aventura e esta gera o
excesso que o lança na conquista e defesa de um espaço
de liberdade, de humanidade, de individualidade, de
socialidade. A liberdade do homem radica na plena
libertação de si mesmo, que ele procura, em luta
permanente, alcançar e, assim, tornar-se em agente da
história e da sociedade, da cultura e da vida. Nesta
perspectiva, o homem entra no domínio da política,
onde cabem os seus actos intencionais e conscientes, os
seus apontamentos do quotidiano e os seus gestos
mobilizadores de energias e de vontades colectivas.
Mas a liberdade
não se limita ao uso legítimo e exclusivo da linguagem
como forma de expressão do pensamento, ao acesso à
palavra e sua combinação livre. Ser livre não
equivale, apenas, a deixar escapar a liberdade do
pensamento. Ser livre é, também, escapar à morte. O
25 de Abril anunciou essa esperança. Mas o confronto
com a morte, a humilhação e o sofrimento permanece no
activo do nosso quotidiano. Não é lícito pedir ao
homem que exerça a sua liberdade enfrentando a morte,
pois não é livre e aquilo a que aspira, é,
simplesmente, viver e evitar o acontecimento que mata. O
confronto com a morte “mata” o acesso à liberdade.
A morte tem nome: fome, pobreza, doença, guerra,
subdesenvolvimento, desemprego, sem abrigo. A história
legitima estas situações e, “normalmente”, absolve
os verdadeiros responsáveis. Que resta, então, ao
homem? Assumir a coragem histórica da sua libertação,
a fim de que o sofrimento e a humilhação se apaguem.
Antoine de Saint-Exupéry exprimia-se deste modo:
Respeito pelo Homem! Respeito pelo Homem! Se o respeito
pelo homem radica no coração dos homens, os homens
acabarão por criar, em contrapartida, o sistema social,
político ou económico que consagre esse respeito.
Mas a liberdade
consagra, igualmente, o direito â diferença. Um
direito esclarecido e vivido na necessidade de intervir
ao nível do real. Assumir, passivamente, um
acontecimento é submissão, auto-anulação,
auto-exclusão. Liberdade e responsabilidade estão
condicionadas pela história. A
consciencialização-intervenção do ser humano é a
única forma possível de assumir uma liberdade
responsável. A mulher/o homem devem reentrar na
história como os soberanos esclarecidos do Universo.
Hoje, aqui,
realizamos, simbolicamente, a reconquista da nossa
cidadania, em ambiente de unidade na diferença, em
ambiente democraticamente assumido.
Hoje, aqui,
repensamos a mensagem de Abril. Hoje, em que cada vez
mais as sociedades coisificam o ser humano, reduzindo-o
a um mero instrumento lucrativo, retoma toda a
actualidade o tema do homem libertado anunciado por um
25 de Abril repleto de humanidade e de dignidade. Os
homens que fizeram Abril e que mobilizaram um povo
inteiro de cravo vermelho em todo o lado, não podem ser
retirados da nossa história. Foram eles os obreiros
directos desta ruptura, desta revolução, desta
recuperação do direito à rua, ao nome, ao corpo, ao
pensamento, à razão.
Termino citando
Marcuse: os escravos da civilização industrial
avançada são escravos sublimados, mas continuam
escravos porque a escravatura pode definir-se, não pela
obediência, nem pela rudeza dos trabalhos, mas pelo
estatuto de instrumento e pela redução do homem ao
estado de coisa (...) Existir como instrumento, como
coisa, é a forma pura da servidão. O rosto humano de
Abril é um facto, independentemente dos incidentes de
percurso de tonalidades diferentes. A liberdade e a
democracia, valores reabilitados por Abril, são uma
realidade. Haveremos de voltar a encontrar-nos. Em cada
ano, o calendário anunciará o 25 de Abril Português.
Em cada dia, ecoará o 25 de Abril da liberdade e da
democracia.
Alcino Cartaxo