boletim cultural e recreativo da tertúlia joão sarabando

 

Tradição Popular


Desde a nossa meninice nos habituámos a ouvir os mais diversos géneros textuais, que vão passando de geração em geração, e cuja autoria caiu há muito no esquecimento. São textos de feição popular, em prosa e em verso, criados por pessoas que, nem sempre tendo frequentado os bancos da escola, nasceram, todavia, com uma prodigiosa capacidade de observação, criatividade e, não raro, um cristalino veio poético, donde brotam composições em verso, geralmente em redondilha — a medida tradicional e mais à feição do povo — suscitadas por factos e observações da própria vida social.

Sabemos que esta capacidade criadora e improvisadora da gente portuguesa tem raízes em tempos recuados da nossa História. Já na Idade Média, durante o denominado período galaico-português, eram frequentes as tenções entre poetas — trovadores e segreis — de que chegaram até nós alguns exemplares. E esta veia poética repentista tem-se conservado entre nós através dos tempos, brotando não só de poetas populares, mas também de algumas mulheres, que ficaram conhecidas e foram perenizadas por alguns dos nossos novelistas. Recorde-se, por exemplo, a novela de Tomás da Fonseca, Filha de Labão, em que a protagonista, a Maria do Aljão, cuja vida nos é apresentada no momento do seu passamento, era uma figura querida de todos, quer pela suas grandes qualidades humanas, quer pelo virtuosismo poético, que a tornava o centro das atenções quando se deslocava em romaria ao S. Paio da Torreira (cap. XXVIII): «Deite lá duas cantigas / Daquelas que você sabe / Fechei-as numa gaveta / E perdi o tino à chave».

O nosso companheiro de tertúlia, Bartolomeu Conde, teve a oportunidade de conhecer dois poetas populares — Armando de Oliveira e Rosa de Vessadas — de quem registou um despique em 1950, no S. Paio da Torreira, de que nos facultou uma cópia em homenagem à memória de João Sarabando, também ele apaixonado pelas tradições populares.

       ELE

Deus te salve ó cantadeira
Já que és tão nomeada
Neste recinto brilhante
Por mim vais ser ‘logiada.

 

Tenho passado bem mal
Num martírio sem cessar
Agora já ‘stou melhor
Por contigo m’encontrar

 

Não m’admira cantadeira
Qu’reres chorar e não poder
Que tu que me tens amor
Estou farto de o saber

 

Elas a mim não me enganam
Que eu ando acautelado
Muita gente me tem dito
Que a mulher é fraco gado

 

Neste lindo auditório
Soube que estavas cantando
Para admirar teu saber
De pronto me vim chegando
Podes ficar a saber
Que não chegas pró Armando

 

Tira daí o sentido
Que aos pés não ficarei
Se te agarro na cama
Por cima me botarei

 

Eu só qu’ ria poder ver-te
Ao pé de mim sem camisa
Tenho arma competente
E pólv’ra que for preciso

 

Se ela está enferrujada
Eu não sei se sim ou não
Ela depressa se limpa
Se tu me caíres na mão


 

Ainda há pouco foi limpa
Está bem conservadinha
Tu já deves ter limpado
Armas mais sujas que a minha



Nunca pegaste em armas
Porque nunca te calhou
Qu’rendo pegares na minha
Às tuas ordens já’ stou




Diabo de cantadeira
Dá-me vontade de rir
Dou-te o cordão se me deres
Aquilo que te eu pedir

 

À frente de toda a gente
Dás sempre a tua chalaça
Sabes lá se o que eu te peço
Tu m’ o vens a dar de graça


 

Como tu fazes esmolas
Quando posso por lá ir
Eu trago sempre comigo
Os alforges de pedir

 

Tu ainda não conheces
O segredo do moleiro
Se arrebentares os alforges
Já não sou eu o primeiro

 

Já falas em t’ ires embora
Já te vês atrapalhada
Não sabes é responder
Eu não te direi mais nada

 

   ELA

 


Viva lá seu cantador
Como é que tem passado?
Se for’s homem de valor
Serás sempre respeitado

 

Eu tenho um grande int’resse
Em saber da tua saúde
O eu já não te ter visto
Já quis chorar e não pude

 

Já deves saber há muito
Como é uma mulher
Chor’ e ri ao mesmo tempo
Engana a quem ela quer

 

Se a mulher é fraco gado
É o qu’ ouvistes dizer
Tu não sais da minha beira
Que vens tu aqui fazer?

 

 

Ó cantador corta a barba
E semeia-a numa eira
Qu’ inda hoje vais ficar
Aos pés desta cantadeira

 

Se tal coisa acontecer
Dás o último suspiro
Pois tu nem ‘spingarda tens
P’ra me poderes dar um tiro


 

Essa arma que tu falas
Eu não a posso temer
Ela ‘stá enferrujada
Pouco mal podes fazer



Se eu te caísse na mão
Estava eu bem arranjada
Que eu não podia limpar
Coisa tão enxovalhada



Eu nunca peguei em armas
Nem às armas dou valor
Meu pai não foi militar
Nem tampouco caçador


 

Eu bem sei que és muito rico
Tens libras mais de um milhão
Não sei por que não me of’ reces
Dinheiro p’ ra um cordão



Tira daí os sentidos
Tira a pata lambareiro
Tenho coisas que não dou
Nem por rios de dinheiro

 

Sou muito religiosa
P’ra dizer tudo a eito
Eu trago sempre comigo
O Nosso Senhor no peito


 

Se bateres à minha porta
Tens de ter tod’ os cuidados
Podes ir de lá embora
C’ os alforges arrombados

 

Vê se mudas de conversa
S’ não adeus te vou dizer
Cantigas desse quilate
Pouco valor podem ter

 

Adeus senhores e senhoras
Que presentes aqui estão
Adeus lindo cantador
Até oitra ocasião
P’ ra ficarmos sempre amigos
Dá cá um aperto de mão


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