Mário Sacramento
Mário Sacramento sabia, como poucos, distinguir o mundo em que se
vive do mundo melhor em que um dia poderá e deverá viver-se!
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Esta figura cimeira
de Mário Sacramento, não só para o meu coração agradecido mas,
sobretudo, para o meu espírito de cidadão consciente da sua
acção, na passagem que pela vida fez, vai servir para encerrar
esta série de chamadas a gente que, neste ou naquele campo de
acção ou do pensamento, foi vida não só pelo que directamente
fez mas ainda e talvez sobretudo pela vida que continuaram a ser
através daquilo que deixaram, fosse em escritos que perduram,
fosse em exemplos que frutificaram nas vergônteas de discípulos.
Já um dia escrevi, no
saudoso «Diário de Lisboa», que Mário Sacramento fora um
pedagogo cívico, um desses homens que, sem deixarem de voar
alto, de pico em pico nas cordilheiras do pensamento, só
acessíveis a poucos, nunca deixou de ser, pelo seu sentido de
iniciativa e organização, um cabouqueiro de alicerces simples,
um mero seareiro de princípios que reputava fundamentais para
que o homem-cidadão se conhecesse melhor e, mais do que saber
onde estava e de onde vinha, soubesse para onde ia em respeito
de si próprio e dos seus companheiros de jornada. |
Marxista de formação e sem desdenhar das razões
superiores daquela fase de esmagamento necessário para chegada à
democracia pura a que Lenine se refere, coincidente, teoricamente,
com a quase ausência de Estado como poder, por desnecessidade dele
após a sua sublimação, era, lá bem no fundo de si e como homem que
nunca enjeitou a qualidade de parte, alinhando nos colectivos sem
nunca pretender impor, através da sua lúcida inteligência, os
princípios que ainda não eram de todos, mas o poderiam vir a ser,
quando por todos fossem aceites como os melhores, por necessários ao
bem comum.
Sendo ateu nunca hesitou em dialogar com
católicos categorizados, de boa fé; sendo colectivista, deu a mão e
o braço a individualistas que lutavam pelo restabelecimento de uma
qualquer liberdade; sendo culto, nunca hesitou em vestir, com a seda
da sua cultura, as serapilheiras da acessibilidade para que melhor a
pudesse transmitir aos dela carecidos; sendo sisudo de seu natural e
feitio, não hesitava em afivelar o sorriso, mesmo a gargalhada
sóbria, se tanto fosse necessário para, por piedade ou necessidade
de contraste, mostrar melhor os deslizes ou as contradições dos
adversários de ocasião, a quem sempre procurava convencer antes de
derrotar.
E é por tudo isso que nunca hesitei em olhar o
Mário Sacramento como um são pluralista, embora o geral das gentes e
dada a sua estrutura mental marxista o considerasse, sempre ou quase
sempre, como homem de um lado só, como um político defensor cego da
tal fase de esmagamento de que fala Lenine.
Mário Sacramento sabia, como poucos, distinguir o
mundo em que se vive do mundo melhor em que um dia poderá e deverá
viver-se!
Não ignorava que o pluralismo, aparentemente
contraditório, das sociedades capitalistas de agora, pode e deve
servir para melhor mostrar que esse mundo poderá ser melhor se forem
sacrificados certos focos geradores de situações de desigualdade
gritante, que altamente ofendem a própria natureza humana.
Mais que o pensador profundo, o crítico lúcido e
o companheiro-piloto, Mário Sacramento foi o pedagogo, como já disse
e não é de mais repetir.
A sua figura, aparentemente «bonacheirona» e por
de mais fazendo lembrar isolamentos mentais, aparentemente
contraditórios, sabia desnudar-se, em mostra integral de si,
passados que fossem os momentos de hesitação em legítima defesa
daqueles que, por parecerem diferentes do que mostravam, constituíam
perigo, principalmente nos arrastamentos-pretexto que propiciavam.
Era firme a sua postura no campo das ideias e nas
acções que estas ditavam como caminho certo para o tal «mundo
melhor» de que tanto gostava de falar.
Tinha, contudo, uma enorme maleabilidade, sem
perda de verticalidade e coerência, que ajudava a abrir as portas de
muitos convencimentos, sem jamais os obter por cansaços,
condescendências ou até reconhecimento da superioridade da sua
lógica de ferro.
Convencia ou, pelo menos, tentava convencer, para
que a sua semente pudesse germinar com as forças que trouxesse e não
à custa de adubos, estrumes ou calores de laboratório ou estufas
contranatura.
E é por tudo isto que, nesta chamada à ribalta da
memória, lhe aponto as luzes para o cidadão que foi, em período
difícil, sem nunca esquecer as linhas vertebradoras do seu
pensamento mas pondo-as a aguardar o momento azado de intervenção
útil, já que a liberdade pela qual lutou e tantas vezes viu
sacrificada, em si e nos outros, era a conquista imediata a
realizar, aquela sem a qual o homem não poderia, nunca, fazer o
«mundo melhor»!
Costa e Melo,
publicado em "O Primeiro de Janeiro" em 2/11/1996, p. 32
(Oferecido ao grupo da tertúlia J. Sarabando)