boletim cultural e recreativo da tertúlia joão sarabando

 

Mário Sacramento


Mário Sacramento sabia, como poucos, distinguir o mundo em que se vive do mundo melhor em que um dia poderá e deverá viver-se!

Esta figura cimeira de Mário Sacramento, não só para o meu coração agradecido mas, sobretudo, para o meu espírito de cidadão consciente da sua acção, na passagem que pela vida fez, vai servir para encerrar esta série de chamadas a gente que, neste ou naquele campo de acção ou do pensamento, foi vida não só pelo que directamente fez mas ainda e talvez sobretudo pela vida que continuaram a ser através daquilo que deixaram, fosse em escritos que perduram, fosse em exemplos que frutificaram nas vergônteas de discípulos.

Já um dia escrevi, no saudoso «Diário de Lisboa», que Mário Sacramento fora um pedagogo cívico, um desses homens que, sem deixarem de voar alto, de pico em pico nas cordilheiras do pensamento, só acessíveis a poucos, nunca deixou de ser, pelo seu sentido de iniciativa e organização, um cabouqueiro de alicerces simples, um mero seareiro de princípios que reputava fundamentais para que o homem-cidadão se conhecesse melhor e, mais do que saber onde estava e de onde vinha, soubesse para onde ia em respeito de si próprio e dos seus companheiros de jornada.

Marxista de formação e sem desdenhar das razões superiores daquela fase de esmagamento necessário para chegada à democracia pura a que Lenine se refere, coincidente, teoricamente, com a quase ausência de Estado como poder, por desnecessidade dele após a sua sublimação, era, lá bem no fundo de si e como homem que nunca enjeitou a qualidade de parte, alinhando nos colectivos sem nunca pretender impor, através da sua lúcida inteligência, os princípios que ainda não eram de todos, mas o poderiam vir a ser, quando por todos fossem aceites como os melhores, por necessários ao bem comum.

Sendo ateu nunca hesitou em dialogar com católicos categorizados, de boa fé; sendo colectivista, deu a mão e o braço a individualistas que lutavam pelo restabelecimento de uma qualquer liberdade; sendo culto, nunca hesitou em vestir, com a seda da sua cultura, as serapilheiras da acessibilidade para que melhor a pudesse transmitir aos dela carecidos; sendo sisudo de seu natural e feitio, não hesitava em afivelar o sorriso, mesmo a gargalhada sóbria, se tanto fosse necessário para, por piedade ou necessidade de contraste, mostrar melhor os deslizes ou as contradições dos adversários de ocasião, a quem sempre procurava convencer antes de derrotar.

E é por tudo isso que nunca hesitei em olhar o Mário Sacramento como um são pluralista, embora o geral das gentes e dada a sua estrutura mental marxista o considerasse, sempre ou quase sempre, como homem de um lado só, como um político defensor cego da tal fase de esmagamento de que fala Lenine.

Mário Sacramento sabia, como poucos, distinguir o mundo em que se vive do mundo melhor em que um dia poderá e deverá viver-se!

Não ignorava que o pluralismo, aparentemente contraditório, das sociedades capitalistas de agora, pode e deve servir para melhor mostrar que esse mundo poderá ser melhor se forem sacrificados certos focos geradores de situações de desigualdade gritante, que altamente ofendem a própria natureza humana.

Mais que o pensador profundo, o crítico lúcido e o companheiro-piloto, Mário Sacramento foi o pedagogo, como já disse e não é de mais repetir.

A sua figura, aparentemente «bonacheirona» e por de mais fazendo lembrar isolamentos mentais, aparentemente contraditórios, sabia desnudar-se, em mostra integral de si, passados que fossem os momentos de hesitação em legítima defesa daqueles que, por parecerem diferentes do que mostravam, constituíam perigo, principalmente nos arrastamentos-pretexto que propiciavam.

Era firme a sua postura no campo das ideias e nas acções que estas ditavam como caminho certo para o tal «mundo melhor» de que tanto gostava de falar.

Tinha, contudo, uma enorme maleabilidade, sem perda de verticalidade e coerência, que ajudava a abrir as portas de muitos convencimentos, sem jamais os obter por cansaços, condescendências ou até reconhecimento da superioridade da sua lógica de ferro.

Convencia ou, pelo menos, tentava convencer, para que a sua semente pudesse germinar com as forças que trouxesse e não à custa de adubos, estrumes ou calores de laboratório ou estufas contranatura.

E é por tudo isto que, nesta chamada à ribalta da memória, lhe aponto as luzes para o cidadão que foi, em período difícil, sem nunca esquecer as linhas vertebradoras do seu pensamento mas pondo-as a aguardar o momento azado de intervenção útil, já que a liberdade pela qual lutou e tantas vezes viu sacrificada, em si e nos outros, era a conquista imediata a realizar, aquela sem a qual o homem não poderia, nunca, fazer o «mundo melhor»!

Costa e Melo,
publicado em "O Primeiro de Janeiro" em 2/11/1996, p. 32
(Oferecido ao grupo da tertúlia J. Sarabando)


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