Uma carta invulgar
Hoje, durante o período da tarde, quando procedia à procura de uns
livros no meio de muita papelada, dei com a cópia de uma carta que
me foi oferecida há já muitos anos, em Coimbra, quando frequentava o
meu 1º ou 2º ano de Filologia Românica na Faculdade de Letras. Como
em 1969 me encontrava já no fim do meu curso — foi este o ano em que
comecei a percorrer grande parte do país para recolha de dados de
etnografia —, o facto que vou relatar deverá, pois, ter-se passado
em 1964 ou 1965.
Tinha então, como estudante, o hábito de passar
os meus tempos livres no Café Arcádia, situado na Baixa de Coimbra.
Numa mesa junto a uma janela, aí passava longas horas na leitura de
romances franceses, que mensalmente adquiria, à medida que iam
saindo os livros de bolso da colecção Garnier Flammarion.
Mas não é destes momentos de leitura que pretendo
agora falar. O mesmo café era frequentado por um grupo de médicos e
professores universitários, entre os quais diariamente também se
encontrava o meu pai, que fora aceite pelo grupo, apesar de apenas
ser professor primário.
Entre o grupo, encontrava-se frequentemente, à
hora da bica, a seguir ao almoço e também, não raras vezes, após o
jantar, um médico muito conhecido de Coimbra e de todo o País, não
pela sua importância como médico, mas por tratar-se de uma
figura conhecida das letras portuguesas.
Era uma figura bizarra, no meio daquele grupo.
Quase sempre atento a tudo quanto se passava e dizia, tinha a
particularidade de raramente intervir nas conversas, a menos que os
companheiros o solicitassem.
Certo dia em que eu andava entusiasmado a
compilar textos de carácter humorístico, que passava à máquina de
escrever de modo a formar um pequeno livro em formato A5, a que dera
o nome de Receitas para O Fígado, calhou trazer um exemplar
para o café, a fim de corrigir o que já tinha passado. Como
estivesse ligeiramente afastado do grupo e, frequentemente, não
conseguisse conter-me e começasse às gargalhadas, em breve fui
assimilado pelos presentes, que, intrigados e cheios de curiosidade,
quiseram saber a razão de tantas e tão fortes gargalhadas que faziam
vir as lágrimas aos olhos.
Saí da mesa onde estava e sentei-me junto do
grupo, a quem mostrei as Receitas para o Fígado. O título
começou por intrigar os presentes, pois pensaram que se trataria
efectivamente de receitas. Mas, quando começaram a leitura dos
textos, as gargalhadas deixaram de ser de uma só pessoa, para se
estenderem a todos eles. Até mesmo o médico escritor que estava no
grupo, geralmente sempre sisudo e calado, acabou por se deixar
contaminar pelo caricato das situações narradas nos pequenos textos
e pelas gargalhadas sonoras que se faziam ouvir.
No dia seguinte, à hora da bica após o almoço,
entrou o médico escritor no café Arcádia. E, para minha surpresa,
não foi sentar-se junto do grupo. Veio ter comigo e sentou-se na
minha mesa, junto da janela onde me encontrava entretido a ler um
livro de Stendhal. Se a memória não me atraiçoa, era o Vermelho e
o Negro, livro que devia ir na segunda ou terceira leitura, já
que a história narrada tinha qualquer coisa que me agradava...
Talvez por o protagonista apresentar uma idade que deveria
corresponder mais ou menos à minha.
Interrompida a leitura e colocado o livro na
mesa, o ilustre interlocutor que me dava a honra de se sentar ao meu
lado, após uns minutos de conversa cujo teor há muito se diluiu como
o fumo de um cigarro, entregou-me uma cópia dactilografada de uma
carta que — segundo creio — escrevera em tempos a um colega.
Oferecia-me uma cópia para eu juntar aos documentos humorísticos já
compilados, apenas com a condição de omitir os nomes dos
intervenientes, inclusive o seu. Era um documento autêntico que
colocava nas minhas mãos pelo conteúdo invulgar e pela forma
original e um tanto humorística como fora escrito. Não era um texto
literário, como os que habitualmente escrevia e publicava, mas um
documento que constituiu uma forma engraçada de abordar um problema
sério e de interesse para um doente.
Encontrei hoje a cópia dactilografada dessa
carta, que um mero acaso me permitiu reencontrar ao fim de tantos
anos. E como, neste momento, o seu autor apenas se encontra entre
nós pelos muitos contos e diversa obra literária que nos legou, e
também porque os intervenientes há muito terão desaparecido do
número dos vivos, é chegada a altura de aqui transcrever o conteúdo
da carta e a dar a conhecer. Revela-nos uma faceta diferente de uma
personagem importante do nosso tempo, cujo nome continuará por
revelar, para não trair a palavra dada naquele dia em que o
documento me foi confiado.
Coimbra, ... de ....... de 196?
Meu Caro ...
É coisa axiomática que o pénis não obedece a
freio e é coisa de espantar que a Natureza o tenha dado a animal que
lhe não obedece. Mas, como nesta estuporada profissão que exercemos
só aparecem anormalidades, aberrações e coisas em desacordo com a
Natureza, surgiu-me hoje no consultório esse rapazinho que lhe
envio, com um freio de tal dureza e de tal conformação, que o
insubmisso pénis, tradicionalmente indomável, não teve outro remédio
senão ceder.
Calcule os mistérios e os paradoxos desta
ladina Natureza!
Esse moço, na casa dos vinte anos, com uns
corpos cavernosos que devem estar isentos de qualquer esclerose ou
de obstrução e, com certeza, dispondo de um líbido afinado, capaz de
lhe fazer sair, erecto, o próprio umbigo, resolve ir para o
casamento com os seus (dele) três vinténs, e confirma então a
suspeita que já tinha de que, no auge da metálica erecção, o pénis
fica em croça como o báculo de um bispo, por incapacidade de vencer
a brevidade e a dureza do freio que lho verga para terra. Calculará
o meu prezado amigo as acrobacias de alcova que este desgraçado terá
de realizar, para conseguir a penetração dum membro viril, quase tão
torto como uma ferradura, na vagina suplicante da consorte. De modo
que o rapazinho veio pedir-me socorro; e eu, condoído, peço-lhe a
sua colaboração em favor da harmonia conjugal, com a certeza de que,
por isso, ninguém nos irá acoimar de chegadores. Condoa-se a
cirurgia, de braço dado com a medicina, que por intermédio deste
fraco servidor que sou eu, já se condoeu, e endireitemos o
pénis torto (e nada de confusões, que não é mole, pelo que me afirma
o proprietário). Lembremo-nos, sobretudo ao praticarmos esta obra,
que vem aí um tempo em que um pénis destes, mesmo em arco ou em
forma de saca-rolhas, nos faria um jeitão, e ajudemos o pobre do
rapaz, que se comprometeu comigo a fazer um bom uso dele,
emprenhando a mulher da primeira vez que o usar, depois da operação
ortomórfica que o meu Amigo lhe vai fazer, sem sombra de dúvida.
Desculpe mandar-lhe, desta vez, esta tarefa fálica! Ouvi uma mulher
um dia dizer que um Phalus é um excelente amuleto e que dá sorte
verdadeira. Se quiser tirar a prova, não tem mais que
endireitá-lo... e jogar, a seguir, na lotaria.
Desculpe, pois, a remessa de bicho tão
metediço que eu por mim prometo, logo que possa, e em compensação,
mandar-lhe uma vulva virgem e nacarada como uma concha de
madrepérola.
assinatura ..................
P.S. — Como a minha letra é muito má, segundo
a sua opinião, e como o assunto desta carta é muito importante para
duas pessoas, uma das quais do sexo fraco, entendi de meu dever
dactilografá-la. Assim, não haverá nenhuma razão para o meu Amigo
dizer que não entendeu o que queria e, por partida, deixar o
aparelho na mesma, ou pior, ao pobre rapaz.
Quero ainda dizer-lhe que, para sua
compensação, tenciono, depois do êxito que o seu ferro cirúrgico vai
alcançar, comunicar o seu nome à mulher beneficiada que, por certo,
lhe ficará eternamente grata, ficando sempre com a sua pessoa
presente na memória, nos momentos — e oxalá sejam muitos — em que se
sentir penetrada por um pénis, que só o meu Amigo conseguiu
endireitar. E nem sei se o Estado não virá a louvar a sua acção, se
lhe for dado conhecimento de que os filhos que saírem daquele casal
são devidos, em grande parte, não ao seu pénis, mas sem dúvida à sua
mão. E filhos com a mão, nem toda a gente se pode gabar de os fazer.
Henrique J. C. de Oliveira
Aveiro, 3 de Novembro de 1996
Para o grupo da tertúlia.
|