boletim cultural e recreativo da tertúlia joão sarabando

 

Depoimentos de um «ex-incréu»

 

Diz o povo «no melhor pano cai a nódoa». Ora, se eu não posso dizer que me «cubro» do melhor pano, também não é o pior o que me «adorna». Digamos que é «assim-assim», e já não é nada mau. Sábia é também a sentença: «nunca digas desta água não beberei». E eu ainda acrescento: não digas «nunca», nem «sempre», a não ser nas expressões de amor, quando verdadeiras...

Tudo isto para vos dizer que, se fui conhecido (e me conheci) durante largos anos, como um ateísta, um incréu não disfarçado, ímpio indefectível, me senti recentemente — como dizer? — «abalado» pela universalidade das afirmações que me garantiam que o «facto» era verdadeiro.

E aí vou eu a caminho da «Senhora de Vagos», misto de caminheiro e de peregrino.

— Será verdade? — Não, não podia ser!... Mas a Cila afiançou-mo muito convicta, embora fosse afirmando que não vira, mas que, o que já é considerado pelo povo como um «milagre» foi testemunhado por dezenas de pessoas. E eu rememorava:

— Oh Cila, ora conte, conte lá outra vez o que se passou.

— Ora, ora, o senhor é que não quer acreditar, mas que a Senhora deixou cair o menino foi verdade. E mais que uma vez. É só ver o rodopio em direcção à capela. Todos na expectativa de verem repetir-se o fenómeno. Há no meio daquela gente quem proclame: «eu vi». E isso impede-os de arredarem pé.

Foi esta firmeza, esta transparente convicção da minha companheira de trabalho, que insidiosamente me abalou. E eu congeminava com os meus botões: «não serão os meus olhos dignos de verem uma tal maravilha?»

E foi assim que, com as minhas dúvidas, as minhas esperanças, os meus medos e a minha auto-censura, eu me achei defronte da capela da muito conhecida e milagrosa santa, a «Senhora de Vagos». Uma pequena multidão apertava-se junto à larga porta da frente.

«— Com licença, com licença», ia eu passando pelo meio daquelas pessoas, ávidas de também serem «escolhidas». Era chegado o momento culminante. Ali estava eu especado no meio do portal. A iluminação do altar-mor não fora deixada por mãos alheias...

Ouve-se, então, um grito estridente, saído da multidão, grito que eu jamais esquecerei.

A Santa, tendo-me reconhecido, erguera o braço e, enquanto o sagrado menino se estatelava no chão, em cacos, ela bradava:

— O povo está / com o M. F. A!

E os crentes, aos quais se juntaram os mendigos, repetiram, como nas ladainhas:

— O povo está / com o M.F.A!

Ah, mas a tomada de consciência daquele carecido e não esclarecido povo não iria tardar.

Então, pressentindo um surdo movimento, uma estranha agitação hostil, em que se salientavam os mendigos, eu, num súbito gesto, peguei no braço da Senhora e ambos nos esgueirámos pela porta da sacristia.

Já longe, muito longe daquele inseguro lugar, ainda ouvíamos o coro ameaçador: comunistas, comunistas!

E a senhora que, pela minha mão, descera à condição terrena, segurava com força a sua frágil mão ao meu braço.

Enfim, refeita de tamanho susto, e recobrando o seu luminoso espírito divino, lançou-me um demorado, um profundo olhar muito terno, abençoou-me e suavemente subiu ao Céu.

José Gouveia
para os amigos da «Tertúlia J. Sarabando».


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