Diz o povo «no melhor pano cai a nódoa». Ora, se
eu não posso dizer que me «cubro» do melhor pano, também não é o
pior o que me «adorna». Digamos que é «assim-assim», e já não é nada
mau. Sábia é também a sentença: «nunca digas desta água não
beberei». E eu ainda acrescento: não digas «nunca», nem «sempre», a
não ser nas expressões de amor, quando verdadeiras...
Tudo isto para vos dizer que, se fui conhecido (e
me conheci) durante largos anos, como um ateísta, um incréu não
disfarçado, ímpio indefectível, me senti recentemente — como dizer?
— «abalado» pela universalidade das afirmações que me garantiam que
o «facto» era verdadeiro.
E aí vou eu a caminho da «Senhora de Vagos»,
misto de caminheiro e de peregrino.
— Será verdade? — Não, não podia ser!... Mas a
Cila afiançou-mo muito convicta, embora fosse afirmando que não
vira, mas que, o que já é considerado pelo povo como um «milagre»
foi testemunhado por dezenas de pessoas. E eu rememorava:
— Oh Cila, ora conte, conte lá outra vez o que se
passou.
— Ora, ora, o senhor é que não quer acreditar,
mas que a Senhora deixou cair o menino foi verdade. E mais que uma
vez. É só ver o rodopio em direcção à capela. Todos na expectativa
de verem repetir-se o fenómeno. Há no meio daquela gente quem
proclame: «eu vi». E isso impede-os de arredarem pé.
Foi esta firmeza, esta transparente convicção da
minha companheira de trabalho, que insidiosamente me abalou. E eu
congeminava com os meus botões: «não serão os meus olhos dignos de
verem uma tal maravilha?»
E foi assim que, com as minhas dúvidas, as minhas
esperanças, os meus medos e a minha auto-censura, eu me achei
defronte da capela da muito conhecida e milagrosa santa, a «Senhora
de Vagos». Uma pequena multidão apertava-se junto à larga porta da
frente.
«— Com licença, com licença», ia eu passando pelo
meio daquelas pessoas, ávidas de também serem «escolhidas». Era
chegado o momento culminante. Ali estava eu especado no meio do
portal. A iluminação do altar-mor não fora deixada por mãos
alheias...
Ouve-se, então, um grito estridente, saído da
multidão, grito que eu jamais esquecerei.
A Santa, tendo-me reconhecido, erguera o braço e,
enquanto o sagrado menino se estatelava no chão, em cacos, ela
bradava:
— O povo está / com o M. F. A!
E os crentes, aos quais se juntaram os mendigos,
repetiram, como nas ladainhas:
— O povo está / com o M.F.A!
Ah, mas a tomada de consciência daquele carecido
e não esclarecido povo não iria tardar.
Então, pressentindo um surdo movimento, uma
estranha agitação hostil, em que se salientavam os mendigos, eu, num
súbito gesto, peguei no braço da Senhora e ambos nos esgueirámos
pela porta da sacristia.
Já longe, muito longe daquele inseguro lugar,
ainda ouvíamos o coro ameaçador: comunistas, comunistas!
E a senhora que, pela minha mão, descera à
condição terrena, segurava com força a sua frágil mão ao meu braço.
Enfim, refeita de tamanho susto, e recobrando o
seu luminoso espírito divino, lançou-me um demorado, um profundo
olhar muito terno, abençoou-me e suavemente subiu ao Céu.