Face aos múltiplos desafios que o final
de milénio nos colocou e à forte vertente de mudança e inovação
educacional que consigo arrasta até hoje, é inevitável que teremos de
caminhar, a passos largos, para uma educação aberta, quer no que
concerne aos objectivos e métodos, quer no que diz respeito à
diversificação dos agentes educativos, em virtude da consciencialização
crescente de que a educação não se pode restringir a uma estreita
concepção de escolaridade, nem tão pouco se confundir com a mera
instrução. Eis um dos principais propósitos desta reflexão dedicada à
Didáctica da Filosofa, em particular, e à Educação, em geral.
Não obstante a questão
filosoficamente controversa da existência ou não de uma didáctica
específica da Filosofia – que tem vindo a suscitar um intenso e polémico
debate entre os defensores da sua legitimidade e urgência e aqueles que
perspectivam de um modo assaz suspeito a aproximação desta área do
saber, bem como do seu ensino, às denominadas Ciências da Educação –
considero que a Filosofia é, em si mesma, uma pedagogia e uma didáctica.
O ensino da Filosofia,
por conseguinte, nada tem a pedir de empréstimo às ditas Ciências da
Educação, em virtude da Filosofia compreender em si própria os
fundamentos orientadores do seu peculiar exercício comunicativo.
Porém, afigura-se
indubitável a necessidade de conferir ao ensino da Filosofia a didáctica
de que ela por si mesma requerer, a qual deverá ser edificada, sempre e
inevitavelmente, a partir do seu próprio interior: a melhor formação
pedagógica de um professor de filosofia será, e quiçá irredutivelmente,
uma sólida formação filosófica. Isto não significa afirmar a absoluta
diferenciação disciplinar da Filosofia, nem tão-só a sua tecnicidade.
Mas, antes de mais, indica-nos que a formação de filósofos, ou se
preferirmos, de ensinantes de Filosofia, deve entender-se como formação
de profissionais legítimos, em oposição a qualquer tipo de amadorismo,
naturalmente, repugnante.
A Filosofia afirmou-se
ontem, e afirma-se hoje cada vez mais. Os filósofos jamais ignoram como
os homens são feitos, embora sejam mais "ligeiros do que os anjos" e
nunca experimentem a necessidade de caminhar entre os mortais bicéfalos,
vagueantes, com as suas mentes errantes, por este Mundo em irremediável
confusão.
Independentemente de
aderirmos ou não à questão que indaga sobre a problemática da existência
de uma didáctica específica para a disciplina de Filosofia no Ensino
Secundário, não concebo esta área de abordagem senão enquanto
fundamentada no âmbito da Filosofia da Educação, quer dizer, no espaço
de emergência da reflexão de uma concepção de educação, de ensino e de
aprendizagem, de aluno e de professor, enquadrada no âmbito geral de uma
concepção globalista de Sociedade e de Humanidade.
É preciso criar uma
cultura nova que veja a própria escola como o seu produto e produtor
directo. Só uma interacção deste tipo poderá ser frutífera face às
ambições do mundo actual, cujo motor de desenvolvimento se centra, cada
vez mais, no tipo e nível de educação a ministrar aos seus membros.
O que se pretende,
então? Dar aos espíritos (dos aprendizes de filósofo que, em última
instância, somos todos nós), a capacidade de um contínuo
desenvolvimento, de molde a aperfeiçoar a sociedade em que vivemos na
sua Humanitas. Estes dois objectivos reduzem-se, afinal, à mesma ideia:
“porque desenvolver os indivíduos é aperfeiçoar a sociedade, e porque do
carácter da sociedade depende, por sua vez, o desenvolvimento dos
indivíduos", como afirma António Sérgio, nos seus Ensaios I
[1].
A educação, todos o
sabemos, começa na família, passa pela escola, embora não termine neste
domínio institucional, mas no meio sócio-cultural em que o aluno se
circunscreve, num continuum processo de socialização.
Faço, por isso, a
apologia de uma noção progressiva de educação,
fundada na ideia de uma estreita conformidade entre as capacidades
intelectuais do aluno e os ensinamentos ministrados, de modo a evitar o
obscurecimento da ordem natural do educando, cuja estrutura intelectual
deve ser devida e dignamente respeitada, ao mesmo tempo que
salvaguardada em todo o seu processo evolutivo. Esta ideia permite-nos
ultrapassar a concepção estática da educação, em defesa de uma
perspectiva educativa que prima pela dinamicidade, pelo contínuo porque,
antes de mais, o saber é algo que se vai construindo ou perfazendo ao
longo da existência de cada ser humano, e não uma instância que esteja
pautada por uma rigidez absoluta, apriorística e definitivamente
elaborada: aprender é inventar ou reconstruir por invenção.
Como sublinha Kant –
filósofo que muito prezo no que concerne a assuntos desta natureza – o
aluno não deve "aprender pensamentos, mas aprender a pensar; não se
deve levá-lo, mas guiá-lo, se se pretende que no futuro seja capaz de
caminhar por si mesmo (...). É uma maneira de ensinar deste tipo que
exige a natureza peculiar da filosofia. O adolescente que saiu da
instrução escolar estava habituado a aprender. Agora, ele pensa que vai
aprender Filosofia, o que é, porém, impossível, porque agora ele tem de
aprender a filosofar”.[2]
Para se aprender
Filosofia, considera ainda Kant, era necessário que existisse realmente
uma, concebida à maneira de uma disciplina acabada, perante a qual
pudéssemos dizer: eis aqui a Filosofia; aqui está a sabedoria e o
critério seguro para a sua cabal aprendizagem.
Não obstante a
legitimidade da polémica questão kantiana – assim compreendida mediante
as características da sua época, e obviamente defensável mediante um
certo ponto de vista, que não nos cabe agora discutir – afirmo, sem
reservas, a possibilidade inegável do ensino da Filosofia, pelo menos
enquanto postura existencial perante o Mundo, enquanto uma forma
específica de mundivisão.
Cada filósofo
estudado, que serve de base ou de ponto de partida para tal
ensinabilidade, embora jamais deva ser considerado como modelo absoluto
de um qualquer juízo emerge, no entanto, como uma das grandes
oportunidades para cada qual – professor e aluno – pronunciar um juízo
sobre ele, ou até mesmo contra ele, ao mesmo tempo que proporciona, pelo
método de reflectir por si mesmo, o despoletar de um pensar que é capaz
de produzir autonomamente uma certa interpretação indicadora do caminho
a seguir enquanto “ser-lançado” no Mundo.
Nesta perspectiva, a
Filosofia, enquanto disciplina integradora do curriculum do
Ensino Secundário, surgiria como um domínio essencialmente reflexivo,
como uma espécie de "higiene mental", que permitiria ajudar os alunos a
situarem-se no espaço e no tempo que são efectivamente os seus.
A educação filosófica
torna-se um processo de auto-construção-guiada,
reservando-se para o pedagogo o papel de orientador, de formador ou
"modelador" de uma matéria, que não obstante todos os germens potenciais
que intrinsecamente a compõem, ainda se encontra de certo modo
desenformada.
O professor de
Filosofia não pode ser mais o simples conferenciador; não pode mais
contentar-se em debitar soluções previamente resolvidas, devendo
situar-se, ao invés, num espaço de abertura e de flexibilidade que o
direccionem ao concretamente vivido.
Deve mover-se numa esfera que alargue o restrito espaço da sala de aula
não só à comunidade, mas ao Mundo, pois o alargamento das fronteiras da
escola exige um correspondente alargamento das fronteiras do professor e
da sua metodologia de ensino.
Esta mudança não é
apenas o resultado calculável ou previsível do novo conceito de escola
que agora se impõe – a escola-comunidade-educativa
–, mas quiçá o resultado mais imediato das exigências que o actual corpo
discente coloca imperativamente a cada instante, jamais de olhos
vendados perante o “magistral” e irrepreensível saber do professor. Os
alunos de hoje, contrariamente aos alunos de ontem, dispõem, sem
qualquer espécie de freios, de meios de informação que lhe oferecem
gratuitamente, de um modo fácil e diversificado, o conhecimento.
O aluno de hoje jamais
poderá ser encarado como um escravo do mestre, como aquele que se limita
a escutar e a repetir as "verdades" proferidas por este. Muito pelo
contrário: deverá ser convidado a substituir a postura passiva em que
geralmente era colocado pelo "ensino tradicional", por uma participação
activa e criativa, que fará dele um elemento realmente interveniente no
processo de ensino-aprendizagem, pelo exercício pleno da sua liberdade e
responsabilização correspondente.
A educação não
pressupõe, propriamente falando, a introdução de algo novo, mas o fazer
desabrochar do já existente. Esta ideia aproxima-nos, em grande medida,
da metodologia socrática – relativamente à qual manifesto também a minha
preferência, em virtude da sua pragmaticidade – por oposição aos
tradicionais métodos "caquécticos" que introduzem a mecanização nas
jovens mentes em formação.
Ora, como o que
interessa desenvolver no aluno é a razão prática reflexionante, e não a
razão meramente especulativa, e como verificamos que cada indivíduo
aprende, ou seja, retém mais facilmente e de um modo mais sólido o
"manancial teórico" que extrai de si próprio, deveremos proceder
socraticamente na educação da razão.
Sócrates, que se
nomeia "parteiro" dos conhecimentos dos seus interlocutores, por ajudar
a "dar à luz" os conhecimentos que latentemente se encontram nas suas
almas adormecidas, hoje cada vez mais proliferantes, dá-nos vários
exemplos do modo como podemos conduzir os alunos a extrair muitas coisas
do seu próprio intelecto.
Trata-se de um
método investigativo, progressivo e não dogmático,
naturalmente estimulador da capacidade intelectual dos alunos, da sua
actividade e espontaneidade, através do qual são chamados a reinventar a
verdade que é necessário assimilar.
Na aula de Filosofia
não há modelos a seguir, mas pistas indicadoras que se destinam a
promover uma busca contínua, sobre as quais é susceptível exercerem-se
juízos pessoais que não obedecem, necessariamente, aos cânones
estabelecidos pela exterioridade. O professor de filosofia deve entender
a educação, de que é um condutor privilegiado, como um processo
interior progressivamente realizado mediante as potencialidades que
comandam a ordem natural do educando.
A educação visada pela
Filosofia deverá encontrar na natureza a sua justificação e razão de
ser: a educação consuma aquilo que a natureza deu ao homem como gérmen e
possibilidade; é o cumprimento supremo e aperfeiçoado da natureza. É
precisamente neste sentido que devemos interpretar a tese que afirma "que
o homem só se pode tornar homem pela educação", pois "ele não é senão o
que a educação faz por ele”[3].
Urge, pois, trabalhar no plano de uma educação conforme aos princípios
humanos, legando à posteridade as instituições fundamentais que
permitirão a sua realização plena.
Não deveremos encarar
esta ideia como quimérica ou simplesmente rejeitá-Ia por a considerarmos
como um belo sonho minado pela utopicidade de um ideal meramente
inalcançável, mesmo se encontrarmos obstáculos que se oponham à sua
consumação, pois uma ideia não é senão o conceito de uma perfeição que
não está ainda concretizada na experiência.
A ideia da existência
de uma educação que desenvolva plenamente todas as disposições naturais
do homem é certamente verídica, e a humanidade presente e futura deve
canalizar todos os esforços para levar a cabo este brilhante e
necessário ideal.
A educação deve
compreender o indivíduo no seio do progresso geral da humanidade, de
modo a fazer dele um homem do futuro, um elemento intrinsecamente
pertencente ao conjunto de gerações que ocuparão o palco da História
vindoura: é em vista do futuro, em vista do progresso parcial que cada
indivíduo pode representar, que devemos educar os nossos alunos. O
futuro será sempre certamente o critério de todas as nossas aspirações
educacionais.
A educação, tal como a
filosofia da história, descobre um outro tempo, uma outra temporalidade.
Não é em função do passado que se constrói o presente, mas sim em função
do futuro. A escola dever-se-á fundar sobre a ideia de humanidade e da
sua destinação total, concretizada pela visão de um futuro possível e
melhor, pois o tempo da educação não é o tempo do ser mas o tempo do
dever-ser; o seu fundamento originário é a fé no futuro, como princípio
e norma orientadora do presente.
Caberá à educação do
futuro concretizar o ideal da Aufklãrung
(Iluminismo), para o qual nos devemos
direccionar desde já, que consiste em extirpar o homem da
menoridade de que é culpado, quer dizer,
da "incapacidade de se servir do entendimento sem a orientação de
outrem", e despertá-lo para a maioridade, para a conquista da sua
própria autonomia e liberdade, para a libertação da razão que se
pretende que seja devidamente esclarecida[4].
Eis os grandes objectivos a concretizar na aula de Filosofia.
Isabel Rosete - Janeiro de 2007
______________
[1]
- António Sérgio, Ensaios, Tomo VII, p. 225.
[2]
- Kant, Informação Acerca da Orientação dos seus Cursos no Semestre
do Inverno de 1765 – 1766, in Filosofia,
Publicação Periódica da Sociedade Portuguesa de Filosofia, Vol. 11 - N°
1/2 – Primavera/88.
[3]
- Kant, Reflexões sobre a Educação, p.73.
[4]
- Kant, Resposta à Pergunta: O que é o lIuminismo?, in A Paz
Perpétua e Outros Opúsculos, pp. 11-19. |