O matador dos bichos
Mantendo a tradição começada no exemplar n.º 2 deste boletim, damos
agora a conhecer um conto tradicional recolhido por Teófilo Braga na
Ilha de S. Miguel, nos Açores, e publicado no volume I dos
Contos
Tradicionais do Povo Português, da colecção ”Portugal de
Perto” n.º 14, páginas 160-162, editado pelas Publicações D. Quixote em
1987.
Tal como nos é dito no final, trata-se de uma das lendas mais apreciadas
na Idade Média, cujas origens se perdem nos tempos.
Houve em certo tempo
um rei, que era sozinho mais a rainha, e não tinha filho nenhum para bem
de herdar a coroa. Desejaram muito um filho, e nasceu-lhes uma menina. O
rei tratou logo de ir ver ao livro do Sino qual seria a sorte da menina,
e viu o seguinte:
— Que ao cabo de doze
anos ela seria metida numa torre sem porta, senão uma gateira por onde
só aceitasse o comer, e em roda de sete anos a carne que lhe dessem para
comer não havia de levar osso nenhum.
Ao cabo de sete anos
o rei seu pai foi convidado para ir jantar fora, e deixou recomendado às
suas aias que quando mandassem o comer à princesa, que lhe não levassem
carne com osso. Aconteceu por desgraça o contrário. Andava por ali um
duque, vestido em trajo de mulher falando com ela pela gateira. Naquele
dia em que lhe foi o jantar com osso ela tratou logo de fazer com isso
um martelo, e esborralhou um lado da gateira por onde pudesse caber, e
quando veio o duque conversar, disse por estas palavras:
— Minha sorte está
acabada antes do tempo por via do osso do jantar, e o meu intento é sair
já daqui.
Aí vão os dois
fugidos; o duque passou um rio que mais ninguém sabia passar, e
estiveram por espaço de dois anos em uma brenha de pedra muito seguros.
Ali teve a princesa um menino, e como já tivesse três anos, e como
estivesse por baptizar, foi preciso tornar a passar o rio, para irem a
uma ermida longe. Passou o duque o menino para a outra margem, e quando
vinha para buscar a mãe, prendeu-se num passo e desapareceu, ficando a
mãe de um lado e o filho de outro.
A princesa ficou
chorando muito a sua desgraça, porque não sabia o caminho.
Respondeu-lhe o
menino:
— Não tome a mãe
moléstia, que sou eu quem a vou passar.
— Filho, vais pelo
rio abaixo!
E dobrou ainda mais o
choro. Mas o menino passou o rio bem, e guiou a mãe, e lá foi a uma
igreja onde pediu para ser baptizado, e quis o nome de José, Matador dos
Bichos. Depois foram andando pela freguesia abaixo, e chegando a uma
casa com um postigo meio aberto, ele meteu o braço, abriu a porta como
se fosse sua, e entrou com a mãe. Não acharam ninguém; como não achassem
que comer, ele foi pedir, e aconteceu ser ao palácio do rei, onde lhe
deram muito. A mãe ficou admirada, e temendo que lá o conhecessem,
pediu-lhe para não tornar ali mais. Ele das esmolas arranjou com que
comprar uma espingarda, e começou a apanhar caça real que ia levar de
presente ao palácio. Indo um dia para a caça lá para uns matos feios,
avistou umas fortes casas e essas medonhas. Com o muito ânimo que tinha
entrou e viu sete homens deitados a dormir. Não teve ele mais que fazer
senão pegar numa machadinha que ali viu, e com ela foi picando os
pescoços dos sete homens, cada um por sua vez. Agora, cuidando que
estava sozinho, corre todos os quartos, mas chegou a um em que estava o
quadrilheiro-mor, que era um gigante, que lhe perguntou:
— Que fazes por aqui,
franguinho de vintém?
— Com eu ser
franguinho de vintém talvez me não tema de ti.
O gigante atira-lhe
um pescoção, e o menino agarrou-se-Ihe às gadelhas e traçou-lhe o
pescoço. Viu então muitas riquezas, e correu a dar parte à mãe, para
irem para lá viver; a mãe disse-lhe que fosse dar parte ao rei. Ora o
rei, pasmado da valentia do pequeno, perguntou:
— De quem és tu?
— Eu, senhor, sou
filho de uma princesa, que fugiu com um duque, de uma torre em que
estava fechada.
E como ia contando o
acontecido, o rei interrompeu-o dizendo:
— Pelo que percebo,
então és tu meu neto. Onde está tua mãe?
— Senhor, está numa
pobre cabana de palha.
E mandou-a buscar,
para ela vir para o palácio, onde houve muitas festas. Ora o menino
pediu ao avô para ir com uma força às tais casas dos ladrões buscar
aqueles grandes massames que lá vira. Assim foi; e correndo todos os
quartos ajuntou todos os empregos que ali havia de ouros e prata tudo
num monte, pegaram a carregar quanto puderam, e mandou escangalhar as
casas para não servirem mais de covil dos ladrões.
Por morte do avô foi
o menino rei, e lá está vivendo muito bem.
(Ilha
de S. Miguel — Açores)
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NOTA
– É uma das lendas mais queridas da Idade Média, do pai ou avô que
conhece o filho ou neto abandonado pela sua valentia extraordinária. As
gestas desenvolveram este tema épico. Trago Pompeu cita um fragmento de
um poema dos Turdetanos, que é o conto do rei Abidis, neto do rei
Gargoris, nascido de uma fragilidade de sua filha; tendo-o exposto a
todos os perigos para que a criança morresse, sobrevive a tudo e é
nomeado pelo avô sucessor do seu reino.
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