— Vamos lá,
enquanto há lixo! — cantarola a velha viúva da vila — Ah, lixo amigo!
Jerónima conhece de cor toda a qualidade de lixo. Os sentidos nunca a
enganam: o ruído que provoca cada qualidade de plástico, há quanto tempo
foi vertido cada resto de comida.
Os animais competem
amigavelmente com Jerónima e ela acolhe-os, acode-lhes e aconchega-os.
Dá-lhes os melhores restos do lixo que eles sorvem como se fossem
meninos mimados. Presenteia-os à ceia com cantilenas avulso que diz
apanhar por aí, talvez até já chapiscadas com um vinho de fundo de
garrafa. Na natureza nada se perde, tudo se transforma, meninos... Ah,
bebida dos deuses! Néctar, ambrósia, hidromel, vem a mim ó moscatel!
Desde que lhe deu
para andar no lixo, já aprendeu mais sobre a vida e sobre as pessoas do
que no resto de toda a sua vida. Porém, não foram bem aquelas as
palavras que Jerónima proferiu. Não que delas não tivesse conhecimento;
mas aviou-se porventura de outras, mais correntes, já que festins
linguísticos não enchem barriga nem decantam zurrapas coalhadas, essa é
que é a verdade.
— Quantos selos já
achou hoje, ti Jerónima? — perguntam-lhe de passagem.
No lixo encontra
selos raros, valiosíssimos, e outras tantas cartas rasgadas com que
recompõe insuspeitadas sagas, revolvendo doloridas relações, ao arrepio
do pacato quotidiano dos casais.
Este selo aqui é do
Brasil, imagine-se! Do Brasil! Ah! Exibe-se. É uma pintura de um
artista. Por isso é que teve coragem para pôr as árvores roxas e o
caminho cor de sulfate...
Com o que sobra de
apontamentos estudantis, vai forrando a sua biblioteca de autodidacta e
fixando os acontecimentos com as velhas revistas mundanas, como se
fossem pertença de alguma eternidade alternativa.
As cantilenas toscas
e descompassadas, as historietas de Jerónima são famosas na vila; e
ninguém sabe dizer ao certo se as acha no lixo ou se as improvisa na
hora, para enganar a solidão:
........................................................
Não queiras piedade
de ninguém
Do teu orgulho faz
uma couraça
A piedade é uma forma
de desdém
Nunca peças esmolas a
quem passa
Mostra em silêncio
que tens nervo, raça.
........................................................
Ó filosofia clara e
certa
Se porventura o é
para desejar
Ter uma alma fechada
mas deserta
E se o mal é porém
justamente amar
Vá lá tocar-se numa
chaga aberta
Sem problemas a fazer
sangrar.
........................................................
Não choro não, por
ti, não choro mais
Já basta o que por ti
chorei outrora.
Ai quantos sonhos
pela vida fora
Despeito nos amargos
vendavais.
Tudo se esvai
Até mesmo os ideais
por que a gente luta
Vão-se embora
Fica o peito vazio
numa hora
Não choro não, por
ti, não choro mais.
........................................................
O amor é um momento
que a gente vive
E nos traz sofrimento
Pois tu, amor,
mataste um coração.
Choro agora por mim
tão tristemente
Que faz de ti todo o
meu dia ardente
De ti, que apenas
foste uma ilusão.
........................................................
Vem, vem, não creias
ver em meus olhos
frieza,
Pois tudo é neste meu
silêncio
A ânsia oculta que
reza
E há, meu amor, no
teu olhar tal enleio
Que eu penso que é
mentira, meu Deus,
E sonho que te creio,
creio
A história sem par, o
sonho luar
A vida é fugaz ilusão
Promessas de amor,
sorrisos em flor
A vida é uma eterna
canção
Subtil feiticeira
Da lua fagueira
Que entra em minh’alma
a quimera
Eu penso que é tua a
promessa da lua
Que diz baixinho a
quem espera.
........................................................
Havia uns caçadores
malvados
Que um patinho
mataram
E assim ficou a mãe
c’os filhos
Para um canto
abandonado
E o pobre pato dizia,
fitando os olhos no rio:
Desde que o papá
morreu que trago o papo
vazio.
........................................................
Por ti a terra
espera, ó semeador
Fecunda-a com teu
gesto omnipotente
Não perderás sequer
uma semente nem teu
labor.
A terra é má
Pois há-de ser melhor
Quando o trigo
ceifares desta semente
Não percas coragem
semeador,
Fecunda-a com teu
gesto omnipotente.
Ó escolas, semeai!
Pela sementeira
espera a cega humanidade.
Ó escolas, semeai
O amor, a vida, a
luz, a límpida verdade
Ó escolas, semeai!
E quando o sol tiver
beijado o trigo
Alguém os bagos de
oiro há-de ceifar
E voltarão da terra a
germinar no quente
abrigo.
Quem ceifará?
Alguém que for
contigo
E para quem estás
agora a semear
Não percas semeador o
loiro trigo
Alguém os bagos de
oiro há-de ceifar.
........................................................
Eu sou a Estrela
límpida do Norte
Abrindo e florescendo
em pleno Céu
Quem de mim num
sentido oculto e forte
Das agulhas
magnéticas...
........................................................
Jerónima foi embora
com a Estrela do Norte. Os animais lançaram guinchos lancinantes
faiscando a manhã gelada de domingo. Um automóvel arrastara-a estrada
fora, projectando-a para junto de um caixote do lixo.
Tereza Sorel
(1)
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(1) -
Agradeço à Sra. D. Alda Lau, da Gafanha da Nazaré, a
disponibilidade e a sabedoria na narração de muitas
Cantilenas Populares,
entre as quais as que foram aqui adaptadas e inseridas. |