Aceita-se que em todos os povos existem a
canção e o conto. A presença ou ausência duma infra-estrutura métrica
seria o traço crucial que distingue este sistema binário.
Os contos, sem terem
encontrado no nosso país o direito de cidadania literária, são raízes,
uma herança transmitida de geração em geração que se perpetuou até hoje.
Assim, debruçarmo-nos
sobre os Contos Maravilhosos é surpreendermo-nos com o conhecimento do
muito que há de comum nas narrativas dos diferentes povos do mundo.
O estudo comparativo
das línguas dos povos da Europa e Índia fez sobressair a existência de
semelhanças consideráveis, que se explicariam pelo facto de o
indo-europeu ter constituído em tempos um povo único. Essa herança
estender-se-ia às narrativas, também elas análogas.
Há quem defenda que
nos tempos da unidade indo-europeia não existiriam contos, mas mitos
acerca das divindades.
Acredita-se que a
religião mais antiga estava ligada ao sol e a outros elementos da
natureza. E nos mitos, nos contos maravilhosos (os mitos antigos
originariam os contos maravilhosos), encontrar-se-iam essas
representações religiosas da antiguidade.
A luta do herói com a
serpente, por exemplo, interpretar-se-ia como a luta entre a nuvem
(serpente) e o sol (o herói). O acordar da Bela Adormecida associava-se
ao despertar da natureza pela primavera. O herói (sol) beija a princesa
(natureza) e ela renasce para a vida. No Capuchinho Vermelho, o dia
seria “comido” pelo lobo, que representaria a noite...
Os heróis dos contos
remeteriam sempre para as divindades: o Sol, o Céu, a Lua, o Fogo, a
Água..., que tinham como inimigos as Trevas, o Inverno, o Frio, as
Nuvens...
Sabe-se, porém, que se
encontram narrativas semelhantes em povos semitas, chineses, povos de
África, da Austrália...
Trata-se de narrativas
que reflectem formas de vida social desaparecidas na sua substância, mas
idênticas numa correspondência mais profunda. Resumir-se-iam a um
esquema que parte de uma “situação final feliz”, a que se segue uma
separação imediata (afastamento obrigatório do lar, rapto, viagem). O
desenlace inclui o matrimónio, uma recompensa, etc.
Entre as trinta e uma
funções descritas por Vladimir Propp, podem destacar-se as viagens, as
empresas difíceis a que o herói é submetido, a aquisição do objecto
mágico, a intervenção dos ajudantes, a luta com os agressores, o
matrimónio, a subida ao trono, só para citar as mais relevantes e comuns
As personagens são
sete, a saber, o agressor, o doador, o ajudante, o herói, a vítima, o
mandatário e o falso herói.
Estes contos
desempenhariam igualmente uma função mágico-religiosa no contexto dos
ritos propiciatórios de iniciação. Os elementos do conto poderiam
explicar-se como formas simbólicas daquelas práticas.
Contos que se
perpetuam e continuam a agradar e a fazer sentido...
Os psicanalistas
explicam o gosto, o interesse, porque estes contos recolhem símbolos do
inconsciente colectivo, favorecem o ultrapassar das decepções
narcísicas, dos dilemas edipianos, das rivalidades fraternas. O conto de
fadas a servir de auxílio à resolução de problemas como o medo, a
insegurança, o conflito entre o princípio do prazer e o sentimento da
realidade.
São narrativas que,
para além de distraírem, fazem uso de uma linguagem cheia de colorido,
uma linguagem precisa, e tocam toda a galeria social. De forma velada ou
às claras, as manhas do pastor, a inteligência dos desfavorecidos
perante o poder são enaltecidas. A enorme variedade de contos em que a
raposa é protagonista e vence o lobo (detentor da força), encantam pelo
engenho e astúcia dos protagonistas que saem vitoriosos de todos os
apuros: “Um conto aldeão é uma lição de autodefesa contra todas as
opressões”.
Isabel Cardigas,
Mestre em Contos de Fadas (Universidade do Algarve), refere que “os reis
de que nos lembramos são aqueles das histórias nas quais eles entram”.
Diz ainda que “uma sociedade justa” é aquela que não humilha os seus
cidadãos; “uma sociedade decente” é aquela em que os cidadãos não se
humilham uns aos outros. Neste sentido, os contos de fadas parecem
incutir, de modo simbólico, a percepção daquelas nuances.
Ao longo dos tempos,
ainda que de quando em quando colocados ao canto das cinzas como a Gata
Borralheira, os contos de fadas encontraram sempre “libertadores” e
continuam a ser transportados por uma voz que nos conquista pelo prazer
de ouvir. Ouvir em presença. Pã, fadas, faunos e duendes. O calor
humano, a corporização, a afectividade e o percurso do imaginário. No
entanto, ainda que fosse com outros e diferentes suportes, ainda aí, os
caminhos do maravilhoso seriam sempre espaço para novos contos de novos
encantamentos.
Teresa
Castro
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* Recensão integrada das seguintes obras:
- Brito, José (org). Da Literatura Popular à
Literatura Infantil: CFCF.
- Bettelheim, Bruno. Psicanálise dos Contos de
Fadas: Bertrand Editora. |