Encontro com
Luís de Camões
na obra «A Casa do Pó»
de F. Campos
Um franciscano
chamado Pantaleão, assistindo à chegada de uma nau da
Índia, testemunha o regresso de Luís de Camões à Pátria e
descreve a sua figura envelhecida por uma vida de miséria no
Oriente. Algumas semanas depois, enceta-se um contacto directo
entre ambos na tipografia que imprime, pela primeira vez, «Os
Lusíadas». Pantaleão é confidente da história atribulada
do Poeta e acompanha, emocionado, a publicação da grande
epopeia nacional.
É através da
focalização do protagonista da obra «A Casa do Pó» que a
figura de Luís de Camões é retratada nas vertentes física,
social e psicológica. No momento do seu regresso a Portugal,
a dura vivência no exterior reflecte-se no corpo «magro de
meia-idade», com «o rosto tisnado do mar», a «barba
grisalha» e «um olho vazado». A imagem do poeta é ainda
perspectivada pela mesma personagem com o seguinte vestuário:
«gola de folhos, colete de fendas aveludadas, coçado, capa
pendente do ombro, calções tufados».
Quanto ao
enquadramento social de Camões, o livro de F. Campos
fornece-nos vários dados biográficos: a frequência
atribulada da vida palaciana («Não tardará que de novo a
corte te acolha»); a vida de miséria no Oriente («tão
pobre que vivia de amigos») e a ligação de amizade com
Diogo do Couto («lhe pagara a viagem, mais a do seu pobre
amigo javanês, para poder chegar a Lisboa»; «E esse teu
livro de que fiz o comentário histórico?»). Ao nível do
relacionamento amoroso, também a vida do Poeta é marcada
pelo signo da infelicidade («os seus desiludidos amores»).
No papel de
interlocutor, Pantaleão penetra no mundo íntimo da
confidência e do desabafo e lega-nos um retrato psicológico
de Camões: «É uma alma amargurada e desencantada». A sua
inquietude entusiasma-o a recitar o verso modelar «Esta é a
ditosa pátria minha amada» e castiga-o no reconhecimento da
«terra madrasta». E a obra, principalmente «Os Lusíadas»,
representa a única fonte de motivação para uma existência
ensombrada de pessimismo.
Como autor,
Luís de Camões figura igualado a Homero ou a Virgílio e o
poema «Os Lusíadas» é enaltecido como a «Eneida
portuguesa». Nestas referências emocionadas do franciscano,
fica realçado o valor do Poeta e o carácter épico do poema
à pátria lusa, que mantém algumas afinidades com obras do
mesmo género na cultura greco-latina.
Diogo do Couto
vaticina a recepção da obra D. Sebastião, «exaltado com a
glória da pátria», e é esta faceta que o Poeta consagra e
estimula na Dedicatória ao jovem monarca e no discurso final,
também laudatório, de «Os Lusíadas».
Acompanhando
avidamente a primeira impressão da epopeia, Pantaleão
testemunha o alvará de el-rei que anuncia o livro e menciona
as suas principais características formais: «Eu el Rey faço
saber aos que este Alvara virem que eu ey por bem & me
praz dar licença a Luís de Camões pera que possa fazer
imprimir «nesta cidade de Lisboa hua obra em Octava rima
chamada Os Lusiadas, que contem dez cantos perfeitos...»
O assunto da
obra decorre da intenção, por parte do Poeta, de cantar os
feitos ilustres de um povo «que descobre uma nova dimensão
no espaço e no tempo cósmico, a comunhão das raças e das
crenças, dos usos e maneiras». Estas qualidades ilustram uma
nova visão do Homem, engrandecendo-o como senhor do universo.
A edificante realização colectiva que a epopeia imortaliza
goza de um significativo interesse nacional e de um alcance ao
nível mundial.
O espírito
humanista que envolve a produção camoniana confere-lhe um
sentido de modernidade claramente denunciado na seguinte
passagem do livro de Fernando Campos: «Poeta moderno, desta
corrente que bebe seus cânones nos poetas e artistas
italianos».
Após a
publicação de «Os Lusíadas», a vida de Camões definha
numa vertiginosa decadência. A miséria e a doença são o
prenúncio do fim de uma existência e alastram numa época
também em ruína O desaparecimento do jovem monarca reinante
liquida uma situação estéril e irreversível: «Nos
começos de Agosto chegavam as primeiras vozes da imensa
desgraça e pronunciava-se a medo o nome de Alcácer Quibir...
e em dois anos apenas tudo baqueia. O rei fora morrer lá
longe sem deixar semente.»
A morte do
Poeta coincide com a derrocada de uma nação que ele
imortalizou na memória épica da fértil expansão. Este
desabamento trágico está patente na consciência lúcida do
protagonista do romance de Fernando Campos: «Luís está a
morrer! Ainda corro a tempo de escutar o último pulsar
daquele “peito ilustre lusitano” e de o ungir. Não tem
outros companheiros a seguir-lhe os restos senão a mim e a
Jau... Tudo está perdido! A derrota de Alcântara! O prior do
Crato a fugir pelo Minho e muitos dos seus apoiantes presos e
enviados para as masmorras de Espanha!»
A perda da
independência nacional corresponde ao desmoronamento dos
anseios do franciscano em encontrar a sua própria identidade,
privando-o de reconhecer as suas origens: «Na capela dos
dominicanos, onde penso ajoelhar-me na pedra rasa do túmulo
de minha mãe, nenhum vestígio existe de lajes tumulares
(...) depois de um terramoto que quase destruiu o convento.
Imagino que duas lajes deviam ter estado ali deitadas, lado a
lado, defronte do altar-mor, mas que o Céu nem isso consentiu
que permanecesse.»
Paula Tribuzi
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