BOLETIM CULTURAL E RECREATIVO - SECUNDÁRIA JOSÉ ESTÊVÃO - AVEIRO


 

Multiculturalismo em análise

O Diálogo Intercultural

 

O Clube dos Cidadãos promoveu, no âmbito das comemorações do Dia da Europa, com a colaboração dos professores de Filosofia, a realização de uma conferência, com o intuito de proporcionar aos alunos actividades que contribuíssem para o desenvolvimento de uma atitude consciente e crítica face à realidade e aos problemas culturais que a nossa sociedade enfrenta, porque educar para a Cidadania, para a Liberdade, para o Direito à Igualdade e para o Direito à Diferença, é essencial à edificação de uma Europa mais humanizada e mais capaz de lidar com os futuros desafios. De facto, num mundo em que a violência étnica passou a ser promovida pelos próprios Estados, em que as vítimas da guerra são cada vez mais frequentemente, civis inocentes…

 Num mundo assim… é urgente que o Homem tome consciência da sua identidade e da importância das suas relações dialógicas com os outros.

 

Assim, no dia 8 de Maio o Ginásio da Escola encheu-se de jovens do 10.º e 11.º anos que ouviram o Professor Catedrático da Universidade de Coimbra João Maria André.

Transcrevem-se alguns ecos do seu discurso, no que dizem alguns alunos do 10.º C que foram convidados pela professora de Filosofia a redigir um artigo.

 

Texto 1 - Mafalda Santos

(…) Os conceitos de «globalização», de «mestiçagem» e de «hospedagem» foram dos mais abordados pelo orador.

A globalização que, actualmente, transforma o mundo que habitamos numa «aldeia global», é fortemente apoiada pelas novas formas de comunicação, pelas técnicas que surgiram, principalmente, a partir da década de 40 (matriz cibernética). Isto porque o homem tem necessidade de contactar, de experimentar, de conhecer e de dialogar, até porque “o «ser em» do homem não é como o ser da água no copo, ou o ser do vestido no armário; mas é antes o ser de quem habita e nele mora, com tudo o que o caracteriza em termos sociais e históricos”, como afirma o professor. Mas, em seu entender, não há só um tipo de globalização, mas sim dois, bem distintos. Em primeiro lugar, e mais conhecido, está o da globalização como fenómeno económico. Todos conhecemos esta realidade das multinacionais que espalharam a sua hegemonia pelo mundo, de que o orador destaca, entre outras, a “McDonaldização”. Esta globalização encontra-se na ideologia do neoliberalismo, que adopta “a lei da selva”, “a lei do mais forte”. Inversamente, há outro tipo de globalização, globalização esta que pretende, combatendo a situação anterior, ajudar os mais fracos, até porque todos somos iguais em direitos e dignidade. Estamos, então, perante uma “globalização de solidariedade”, esta mais promovida por políticas com preocupações de índole mais social. Assim, os excluídos pelas assimetrias caracterizadoras do acesso ao “World-system” teriam a oportunidade de alcançar o resto do mundo e de não ficarem ainda mais para trás.

Mas, paradoxalmente, a globalização pode impedir a “mestiçagem”, na medida em que priva as culturas do seu território, do local onde praticam os seus costumes, promovendo, não a mestiçagem, mas sim a homogeneização cultural por parte dos “invasores”. O professor afirma ser “indispensável contrariar a voragem ecossistémica, violenta, desta globalização, quer afastando-nos de uma atitude etnocentrista, quer recusando uma mera coexistência sem diálogo, defendida pelo relativismo axiológico. (…)

Todos observamos a diversidade e o diálogo cultural que são uma realidade, todos somos vítimas da “globalização de rapina”. O que todos precisamos é de uma educação para a diferença e para o verdadeiro diálogo intercultural. Para isso, é preciso criar “espaços utópicos de meditação e mestiçagem” e assim promover a capacidade de acolher o outro. Até porque o diálogo sempre foi uma via que permitiu a mestiçagem, a ligação afectiva com o outro, o que nos remete para a ideia de tolerância no sentido de receber o outro como se fôssemos a sua morada, a sua casa – de o “hospedar”.

É esta a mensagem que o professor transmite aos jovens, os quais afirma estarem a sofrer de um retorno às suas origens, ao seu instinto tribal, facilmente demonstrado pelas suas atitudes e maneiras de vestir (por exemplo a pintura do cabelo, o uso de penas, entre outros). Para esclarecer mais atractivamente os conceitos de “mestiçagem” e de “hospedagem” e a forma como estes se processam no nosso universo cultural, o professor proporcionou um momento musical. (…)

Assim terminou a conferência que nos sensibilizou, na continuidade das aulas de Filosofia, para alguns problemas da sociedade contemporânea.

 

Texto 2 - Inês Oliveira

(…)“Mestiçagem”, segundo João Maria André, não é ter um holandês no Alentejo a ver um canal espanhol. Para conseguir atingir o diálogo, precisamos, antes de mais, de ser tolerantes. Muitas vezes, a palavra tolerância tem uma conotação negativa, é usada para nomear um estado de ignorância e de distância. Carrega a coexistência afastada e o isolamento. Mas a tolerância que se requer, é a que conduz à hospedagem do outro. Para isso, é necessário envolvimento e mutualidade, contacto e troca, diálogo e comunhão. Desse modo, a nossa identidade cultural não se perde, mas, naturalmente, evolui, de modo a prosperar.

Olhemos para os artistas, foi uma das sugestões apontadas. Eles sabem, como ninguém, ultrapassar os muros que os povos constroem à sua volta.

Eles procuram, nas suas criações, unir elementos de diferentes culturas, conseguem, em parte, tornar a utopia da harmonia universal uma realidade. A arte é um meio privilegiado de promoção do diálogo interculturas que deve servir de incentivo e de modelo a uma convivência partilhada entre os diferentes modos de sermos e de nos tornarmos humanos, humanos cada vez mais humanos. (…)

 

Texto 3 - Beatriz Ferreira

(…) Na palestra realizada no ginásio da escola, o Professor discursou sobre o tema do multiculturalismo (diversidade cultural) relacionado com a tão falada globalização, um conceito ao qual já nos habituámos, ouvindo por exemplo falar da expansão de multinacionais como a “Coca-Cola” ou o “McDonald’s”. Mas estará a globalização apenas ligada com este tipo de processos? De certo que não, e para nos elucidar sobre o tema, o orador começou por definir Nação como um conjunto de pessoas que vivem num estado politicamente organizado. Inerente a uma Nação/Estado está uma cultura, um povo com os mesmos costumes, língua e religião, todos eles herdados mas todos eles em constante mutação, sendo esta a definição de cultura como sendo algo dinâmico e não estático. Desta forma, existem hoje no nosso planeta inúmeras culturas, algumas que se tocam em certos aspectos, outras completamente divergentes. Como deve ser a relação entre elas e qual deve ser a nossa atitude face a esta situação? Esta é uma pergunta que está cada vez mais em voga no séc. XXI, o século da troca de informação instantânea, e cuja resposta urge.

     Várias respostas e atitudes têm surgido face a esta questão. Nesta conferência, o Professor João Maria André veio defender a sua tese, uma tese que refuta quer o etnocentrismo, quer o relativismo cultural, e que defende a prática do diálogo e do contacto entre todas as culturas, promovendo trocas constantes para que se possam enriquecer mutuamente. Esta ideia é suportada e baseada na tolerância (mas não no seu sentido de mero suportar ou de simples coexistência) e principalmente no conceito de mestiçagem, fundamental para o orador. Todos nós somos mestiços, sendo o nosso “eu” o conjunto de todas as nossas vivências e experiências de vida. De acordo com João Maria André somos mestiços na linguagem (enriquecida com tantos termos de outras línguas de outras culturas), na nossa alimentação (repleta de alimentos de outras culturas), no nosso vestuário e até no nosso conhecimento (inimaginável sem conhecimentos adquiridos por outros). O próprio termo mestiçagem provém do francês “tissage” correspondente a tecer, prova que todos nós somos resultado de várias e diferentes linhas inter cruzadas…    

     Assim, a mestiçagem revela uma hospedagem do outro em nós, uma mistura totalmente desprovida de conflitos, que segundo o Professor é conseguida por excelência e de forma deveras natural pelos artistas, que a expõem na sua arte, quer seja através da pintura, da música, da escultura ou da arquitectura. Para nos demonstrar e exemplificar esta espontânea fusão, João Maria André trouxe duas músicas que fundiam na perfeição, a primeira, o chorinho brasileiro com uma conhecida obra do compositor europeu Bach e, a segunda, a sinfonia nº 40 de Mozart com música antiga egípcia. Como outro bom exemplo, desse trabalho dos artistas, referiu o famoso quadro de Pablo Picasso, “Les demoiselles d´Avignon”, em que para criar os seus rostos, o pintor se inspirou nas máscaras africanas.

     Para finalizar, João Maria André desejou que todos pudéssemos ser como os artistas, ver mais além e conseguir fundir de forma tão pacífica os melhores aspectos das várias culturas, pois todas, sem excepção, têm aspectos mais negativos, que são inaceitáveis e aspectos muito positivos, conseguindo-se assim atingir, em pleno século XXI, uma partilha enriquecedora para todas as partes interessadas, ou seja, todos os seres humanos.

Depois desta conferência, ficámos todos ainda mais sensibilizados para esta ideia.   

        

Texto 4 - João Nogueira

(…) O multiculturalismo não é um fenómeno que se possa escolher ter no nosso país ou não. É um fenómeno actual e globalizado de tal modo que a única forma de nos posicionarmos perante esta situação é encará-la da melhor maneira possível. O que devemos fazer? Devemos fingir que nada se passa? Porque não aprender com outras culturas? Será isso mau? Implicará perder a identidade?

Como João Maria André sublinhou: “Somos todos mestiços”. Mas, afinal, o que significa isso? Mestiçagem é a combinação cultural. Nós aprendemos a ser o que somos em casa, na escola, com as histórias que lemos, com os filmes a que assistimos, com as obras de arte que contemplamos, enquanto viajamos e contactamos com outras pessoas, quando emigramos, etc. Por isso, somos mestiços, pois em cada um de nós e na cultura de que somos herdeiros, se cruzam traços muito distintos que estão ligados a diversas civilizações (celta, árabe, greco-romana, hebraico cristã, etc.).

Consequentemente, devemos deixar de ter medo do outro, do que é de fora da nossa casa, da nossa cidade, do nosso país, da nossa Europa. Devemos sair das trevas da ignorância, “respirar a luz” do conhecimento e das culturas diferentes da nossa, procurando conhecê-las, olhando-as com o mesmo respeito e a mesma postura crítica que a nossa cultura nos merece, assentes na exigência do respeito pelos Direitos Humanos. Não podemos deixar que a par do multiculturalismo ocorram “comportamentos e atitudes de segregação, de marginalização e exclusão social”. O confronto cultural deve ser pacífico e, sem fundamentalismos, deve resultar no melhoramento de cada cultura a partir da partilha com outras formas de ser, de pensar e de actuar. (…)

Pessoalmente, agradaram-me as ideias defendidas por este filósofo, pois vieram ao encontro das reflexões que sobre este assunto realizei nas aulas.

 

Conclusão

Dos testemunhos recolhidos, fica-nos a certeza de que este evento foi um momento importante na dinâmica do ensino-aprendizagem que a nossa Escola promoveu neste ano lectivo, mas nesta área da educação intercultural há ainda muito a fazer. Partilhamos, com João Maria André, as ideias de que “O desenvolvimento de uma consciência crítica face às situações de injustiça e às suas causas, àquilo que perverte um igual acesso ao exercício do direito de cidadania, não só política mas também cultural, abre uma vertente que constitui já o chão indispensável para um diálogo intercultural despreconceituoso e empenhado. Mas se assume esse diálogo com toda a radicalidade ele implica muito mais: uma praxis de transformação interior que se repercute numa praxis de transformação social de todas as situações que geram vítimas e excluídos do universo cultural e político dominante e maioritário. É por isso que a educação intercultural pode e deve ser assumida como uma prática num empenhamento sócio-político, numa perspectiva holística e como educação para a cidadania plena.”

(Diálogo Intercultural Utopia e Mestiçagens em tempos de Globalização, 2005)

Clube de Cidadãos

 

1 - Editorial      2 - Contos tradicionais portugueses     3 - Um olhar sobre 2006-07 
4
- Dia da Poesia: Thiago de Mello    5 - Estrela do Norte     6 - Clube Multimédia: balanço de um ano
7 - Momentos de humor     8 - Parlamento dos jovens     9 - Dia da Escola     10 - Feira Medieval 
11
- Percurso épico em Aveiro     12 - Florinhas do Vouga     13 - 25 de Abril em Exposição
14 - Uma abordagem aos contos de fada    15 - Iniquidades no ensino  16 - Diálogo intercultural
17
- Educar para a autonomia e liberdade    18 - Hora do Recreio


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