BOLETIM CULTURAL E RECREATIVO - SECUNDÁRIA JOSÉ ESTÊVÃO - AVEIRO


 

Etnoliteratura

Uma abordagem aos contos de fadas

 

Aceita-se que em todos os povos existem a canção e o conto. A presença ou ausência duma infra-estrutura métrica seria o traço crucial que distingue este sistema binário.

Os contos, sem terem encontrado no nosso país o direito de cidadania literária, são raízes, uma herança transmitida de geração em geração que se perpetuou até hoje.

Assim, debruçarmo-nos sobre os Contos Maravilhosos é surpreendermo-nos com o conhecimento do muito que há de comum nas narrativas dos diferentes povos do mundo.

O estudo comparativo das línguas dos povos da Europa e Índia fez sobressair a existência de semelhanças consideráveis, que se explicariam pelo facto de o indo-europeu ter constituído em tempos um povo único. Essa herança estender-se-ia às narrativas, também elas análogas.

Há quem defenda que nos tempos da unidade indo-europeia não existiriam contos, mas mitos acerca das divindades.

Acredita-se que a religião mais antiga estava ligada ao sol e a outros elementos da natureza. E nos mitos, nos contos maravilhosos (os mitos antigos originariam os contos maravilhosos), encontrar-se-iam essas representações religiosas da antiguidade.

A luta do herói com a serpente, por exemplo, interpretar-se-ia como a luta entre a nuvem (serpente) e o sol (o herói). O acordar da Bela Adormecida associava-se ao despertar da natureza pela primavera. O herói (sol) beija a princesa (natureza) e ela renasce para a vida. No Capuchinho Vermelho, o dia seria “comido” pelo lobo, que representaria a noite...

Os heróis dos contos remeteriam sempre para as divindades: o Sol, o Céu, a Lua, o Fogo, a Água..., que tinham como inimigos as Trevas, o Inverno, o Frio, as Nuvens...

Sabe-se, porém, que se encontram narrativas semelhantes em povos semitas, chineses, povos de África, da Austrália...

Trata-se de narrativas que reflectem formas de vida social desaparecidas na sua substância, mas idênticas numa correspondência mais profunda. Resumir-se-iam a um esquema que parte de uma “situação final feliz”, a que se segue uma separação imediata (afastamento obrigatório do lar, rapto, viagem). O desenlace inclui o matrimónio, uma recompensa, etc.

Entre as trinta e uma funções descritas por Vladimir Propp, podem destacar-se as viagens, as empresas difíceis a que o herói é submetido, a aquisição do objecto mágico, a intervenção dos ajudantes, a luta com os agressores, o matrimónio, a subida ao trono, só para citar as mais relevantes e comuns

As personagens são sete, a saber, o agressor, o doador, o ajudante, o herói, a vítima, o mandatário e o falso herói.

Estes contos desempenhariam igualmente uma função mágico-religiosa no contexto dos ritos propiciatórios de iniciação. Os elementos do conto poderiam explicar-se como formas simbólicas daquelas práticas.

Contos que se perpetuam e continuam a agradar e a fazer sentido...

Os psicanalistas explicam o gosto, o interesse, porque estes contos recolhem símbolos do inconsciente colectivo, favorecem o ultrapassar das decepções narcísicas, dos dilemas edipianos, das rivalidades fraternas. O conto de fadas a servir de auxílio à resolução de problemas como o medo, a insegurança, o conflito entre o princípio do prazer e o sentimento da realidade.

São narrativas que, para além de distraírem, fazem uso de uma linguagem cheia de colorido, uma linguagem precisa, e tocam toda a galeria social. De forma velada ou às claras, as manhas do pastor, a inteligência dos desfavorecidos perante o poder são enaltecidas. A enorme variedade de contos em que a raposa é protagonista e vence o lobo (detentor da força), encantam pelo engenho e astúcia dos protagonistas que saem vitoriosos de todos os apuros: “Um conto aldeão é uma lição de autodefesa contra todas as opressões”.

Isabel Cardigas, Mestre em Contos de Fadas (Universidade do Algarve), refere que “os reis de que nos lembramos são aqueles das histórias nas quais eles entram”. Diz ainda que “uma sociedade justa” é aquela que não humilha os seus cidadãos; “uma sociedade decente” é aquela em que os cidadãos não se humilham uns aos outros. Neste sentido, os contos de fadas parecem incutir, de modo simbólico, a percepção daquelas nuances.

Ao longo dos tempos, ainda que de quando em quando colocados ao canto das cinzas como a Gata Borralheira, os contos de fadas encontraram sempre “libertadores” e continuam a ser transportados por uma voz que nos conquista pelo prazer de ouvir. Ouvir em presença. Pã, fadas, faunos e duendes. O calor humano, a corporização, a afectividade e o percurso do imaginário. No entanto, ainda que fosse com outros e diferentes suportes, ainda aí, os caminhos do maravilhoso seriam sempre espaço para novos contos de novos encantamentos.

Teresa Castro

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* Recensão integrada das seguintes obras:

- Brito, José (org). Da Literatura Popular à Literatura Infantil: CFCF.

- Bettelheim, Bruno. Psicanálise dos Contos de Fadas: Bertrand Editora.

 

1 - Editorial      2 - Contos tradicionais portugueses     3 - Um olhar sobre 2006-07 
4
- Dia da Poesia: Thiago de Mello    5 - Estrela do Norte     6 - Clube Multimédia: balanço de um ano
7 - Momentos de humor     8 - Parlamento dos jovens     9 - Dia da Escola     10 - Feira Medieval 
11
- Percurso épico em Aveiro     12 - Florinhas do Vouga     13 - 25 de Abril em Exposição
14 - Uma abordagem aos contos de fada    15 - Iniquidades no ensino  16 - Diálogo intercultural
17
- Educar para a autonomia e liberdade    18 - Hora do Recreio


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