Poderia falar acerca
de como é difícil recomeçar os estudos após quase 20 anos, de
como é difícil deixar diariamente uma família em casa, de como é
cansativo estudar e trabalhar, enfim, tantas coisas poderiam ser
ditas.... Mas não, preferi falar de uma recordação, que de certo
modo me foi inspirada por um tema leccionado na aula de História: a
família ao longo do antigo regime.
A minha história
nada tem que ver com essa época. A semelhança reside apenas no
facto de serem histórias do passado, enterradas no presente. Como
seria bom “desenterrar” a minha história e pô-la em prática
com os meus filhos, que, por sua vez, a contariam aos meus netos e
estes aos meus bisnetos.... numa cadeia sem fim! Mas não... Não é
possível parar o progresso.... Nós não temos mais tempo para
falar... Não temos tempo para respirar a brisa matinal... para
inspirar o cheiro da terra molhada pela chuva após um dia quente de
verão. Não temos tempo.... Não temos tempo para coisas
supérfluas e sem promoção!...
Nasci há 39 anos
numa aldeia da Beira Alta, onde o despertador era o canto dos
rouxinóis e o barulho dos carros de bois na calçada, onde
adormecia ao som do cri cri dos grilos e do piado dos mochos. Lá
não havia stress, nem psicólogos para as crianças, não
havia Dragon Balls, Pokémons, nem jogos de vídeo,
nem computadores, não havia status nem fingimentos, quase
não havia televisões e telefones... Um ou dois.
Bem pequenina saí
daquela aldeia, levada para a grande cidade pela minha mãe. Ainda
me lembro que, nos meus tenros 4 anitos, olhava o horizonte e
tentava visualizar aquela pérola perdida. Lá voltei todas as
férias do Natal, da Páscoa e nas férias grandes (sempre tão
esperadas), enquanto os meus avós foram vivos, levada, é claro,
pela minha mãe, pois era o nosso paraíso.
À noite, não se
ligava a televisão, pois em casa dos meus avós não havia. A minha
avó contava histórias, cantadas com voz aguda, de mouras
encantadas, de amores atribulados que sempre acabavam bem e de
ladrões que roubavam os ricos para dar aos pobres. O meu avô lia
passagens da Bíblia e fazia-nos reflectir sobre elas. Eu e as
minhas irmãs representávamos peças de teatro improvisadas, que
eram aplaudidas com um entusiasmo e um carinho, que só os
corações puros podem ter, e que tanta segurança e contribuição
deram para a construção da minha pessoa.
Como havia tempo para
tanta coisa? Os meus avós não trabalhavam 7 ou 8 horas... Saíam
para o campo ao amanhecer e voltavam ao anoitecer, almoçavam nas
terras e regressavam com uma disponibilidade total, que os levava a
responder a todas as nossas perguntas. Ao recordar-me, agora,
lembro-me que a minha avó pendia com a cabeça para a frente,
enquanto cantarolava as suas cantatas e o meu avô endireitava as
costas num esgar de dor, rendidos pelo cansaço, mas não paravam,
cumprindo dia após dia a missão, pois eles eram a nossa televisão
de hoje...
Na aldeia todos eram
“tios” e “tias”, todos riam quando os outros riam, todos
choravam quando os outros choravam. Havia pobreza e fome naquela
aldeia, como ainda hoje há na nossa cidade, mas aqui ninguém faz
mais uma chávena de arroz, ou mete mais 2 ou 3 batatas na panela,
ou acrescenta a sopa, para saciar a fome de quem bate à porta, numa
noite gelada, como fazia a minha avó.
Partilhei muitas
vezes a mesa, ao jantar, com pessoas desconhecidas e mal vestidas, a
quem o meu avô dava dormida e um voto de confiança, em noites de
inverno. Quem o faria hoje? Onde nos levará este nosso mundo?
Preocupamo-nos que os nossos filhos saibam informática, música,
ballet, pintura, que sejam os melhores na escola, tenham boas notas,
entrem na faculdade, etc. E a sensibilidade? E as coisas puras e
simples da vida? Será que daqui a 10 ou 20 anos os nossos filhos
poderão falar assim de uma recordação?
Odete Nogueira - 12º
Via Ensino Turma M