Sem favor, Ílhavo é uma terra de
marujos e, talvez paradoxalmente, de artistas. Tornou-se consabido que
grande parte da sua gente anda sôbolas águas do mar, embora passe um
tanto despercebido o gosto com que ela se dá a percorrer os caminhos
arejados e arejantes da Arte e da Cultura.
Para ilustrar a tese, ser-nos-ia fácil
arrolar boa mão-cheia de pintores, escultores e ilustradores, de
ensaístas, jornalistas e poetas. Isto, independentemente ainda de
inumeráveis artífices-artistas cerâmicos, tão fartos de talento como
condenados a doloroso anonimato... Desta maré-alta de sensibilidade que
estua permanentemente na terra dos ílhavos, emergiram agora mais dois
valores, ou, concretizando melhor, dois jovens que são valores
autênticos — Emanuel Macedo e José Paradela. Rondando, qualquer deles,
os vinte anos, apareceram discretamente, para não dizer timidamente, nas
salas do Illiabum Clube. E falamos de tal sorte porque nem se deram à
canseira de editar um modestinho catálogo... Para cúmulo, computaram as
monotipias expostas — cerca de meia centena — em quantias assaz
irrisórias.
Claro se torna que a Arte, pão para o
espírito, deve ser, como o pão para a boca, acessível à bolsa de todos.
Modelado no mesmíssimo barro, humilde e glorioso, ao Homem cabem, é
mister que caibam, fatias de cada um deles.., O genial Abel Salazar, por
exemplo, assim pensava, vendendo a preços populares, nos certames a que
concorria, os seus desenhos e óleos, metais e guachos, esculturas e
águas-fortes.
Mal aquilatando dos próprios méritos e
surgindo, como dissemos, só por aparecer, José Paradela e Emanuel Macedo
sujeitaram-se a que passasse despercebida a sua exposição. Há asas que
se libram sem que ninguém delas dê fé... O público, felizmente, atentou
no certame, principiou a afluir, de começo por mera curiosidade, logo em
seguida com insofismável interesse.
Desprovido embora de frequentes
manifestações culturais e artísticas, susceptíveis de lhe inocularem
espírito crítico, o Povo como que possui o instinto supremo de adivinhar
onde mora a beleza e onde reside o mau gosto... Postas estas atinentes
divagações, cumpre-nos aludir à obra de cada um dos expositores, na
certeza de que, tendo aparecido de braço-dado, denotam contudo
personalidades bem diferenciadas.
|
Paradela, aluno do primeiro ano de
arquitectura e ceramista autodidacta é, quiçá, menos abstractivo do
que figurativo, precisamente ao invés de Macedo, que jamais
frequentou qualquer escola de pintura. Mas se, nos trabalhos deste,
o Homem, do qual os artistas nunca se devem afastar em demasia, está
mais vezes ausente, alguns angustiantes problemas humanos dos nossos
dias são trazidos ali à flor do papel...
Em 1950, salvo erro, Germaine
Joumard, ao expor pintura de tema nuclear, despertou, em Paris,
vivas e compreensíveis atenções. Um crítico — Robert Kemp — foi ao
ponto de a dizer, então, «visionária do invisível». Não vimos o
certame, como Macedo, que contava então apenas dez ou onze anos, o
não viu... A verdade, porém, é que os bons espíritos se encontram e
o jovem ilhavense soube colocar-nos, ele também, diante de mundos
sonhados, ou entressonhados, de mundos espaciais, sem nos deixar
inclusivamente de pôr frente aos olhos, numa visão de autêntico
pesadelo, as terrificantes explosões atómicas.
|
Implicitamente, há transbordante
humanidade nos trabalhos dos dois artistas, onde o desenho de
assinalável ritmo se casa à música das cores, a poesia anda enaipada com
o real... Nestes aspectos, a raiz artística mostra-se comum, talvez
influenciada pelo mesmo solo ilhavense. Poderá redarguir-se, sem dúvida,
que Paradela é sobretudo pintor de superfícies, aliás sem
superficialidades, e que Macedo possui o culto dos volumes. Mas isto
será de somenos, dado meios diferentes propiciarem não raro a consecução
de idênticos fins.
Pena é que o Museu de Ílhavo, possuidor
de maravilhoso recheio, não permita, instalado como está em prédio
exíguo e impróprio, a recolha de trabalhos destes e doutros destacados
artistas locais. Mas esse é outro problema, magno problema de índole
regional e até nacional. O que importava por hoje, e isso fizemos, era
noticiar pura e simplesmente uma espécie de dupla aleluia artística.
João Sarabando
EM CIMA -
«Semântica do amarelo e encarnado», de
José Paradela.
EM BAIXO - «Daflamagração» de
Emanuel Macedo |