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Artes - Letras - Ciências
Suplemento do n.º 271 do "Litoral"
Dezembro de 1959, Ano I, n.º 4
pág. 24

Lembrança de RAUL BRANDÃO

Longos anos — não sei se repararam nisso — o nome de Raul Brandão andou no esquecimento. Feita simultaneamente de ímpetos e de êxtases (ímpetos como este: «Eu sou um impaciente que não compreende a paciência diante da desgraça, da escravidão ou da dor. Paciência nem diante do céu!; ou então o entusiasmo perante um panorama onde «bóiam ainda restos de sol esquecidos na lividez do rio, quando um fogaréu se acende e aviva as primeiras sombras num clarão que seria um achado para um pintor de génio»...) a sua obra parece que ficou à espera de uma conclusão que nunca se efectuou.

Todavia, que um escritor se não realize, em absoluto, através da obra máxima em torno de que gira todo o resto, é uma coisa; e que no desejo de atingi-la nos deixe, por sua vez, a certeza duma poderosa vitalidade, em páginas sobre que o tempo atentamente se debruça, num espanto miúdo e sincero, é outra.

Ora, Raul Brandão foi um desses. Obra que não cabe em nenhuma classificação — eu sou contra as classificações, no que, em matéria de arte, elas têm de asfixiante e restritivo — a do autor das «llhas Desconhecidas» lembra a de alguém que, ao fim duma vida de trabalho infatigável, a braços com sombras que procurou iluminar e com dúvidas que pretendeu esclarecer, por momentos se suspendesse a retomar o fôlego para nova investida.

Entretanto, os anos correram, eles que são cada vez mais breves à medida que se somam. Outras gerações vieram, à voz duma consciência que se amplia. Novos valores se inscreveram na curva duma evolução sempre em vias de reajustamento.

Raul Brandão ficou, porém, acima de todas as contingências e desvios de gostos e de correntes.

Incólumes, impolutos, os seus livros resistiram ao tempo — mas nem sempre ao esquecimento.

E por isso, quando o releio ou dele me falam, sinto-o como que recuperado.

O mesmo sucede agora, ao voltar a última página das «memórias» de Maria Angelina Brandão, viúva do escritor, que vem recordá-lo num livro cheio de melancólica ternura, conforme se deduz até da epígrafe editorial, que aproveita duma carta dele, a frase que sublinha a comunhão íntima dos sentidos e do pensamento do casal: «Um Coração e Uma Vontade» se designa o volume, cujas «páginas escritas ao correr da pena» avivam todo um passado não extinto.

Pois bem. Se hoje pode já considerar-se simplista a ideia de ligar à literatura, dita feminina, um conceito de fragilidade, de delicadeza e de transparência, é isso mesmo o que acontece neste caso. Livro dum temperamento genuinamente feminino, «Um «Um Coração e Uma Vontade» é uma destas obras ditadas mais pela sensibilidade que pela inteligência.

Compreende-se que assim seja. E que, portanto, o escritor que nele se evoca, personalidade de contrastes por vezes violentos, fortemente individualizada, com o nome ligado à mais trágica visão da existência que a nossa literatura já concebeu, resulte assim numa imagem que, à primeira vista, parece não corresponder à que da leitura dele se guardou.

Em todo o caso, ficaria desta forma mutilada ou incompreendida essa estranha figura literária, a um tempo vigorosa e magoada, se a não temperasse o conhecimento de certas atenuantes de carácter agora tão amorosamente dadas.

De facto, o «belo moço, muito alto, louro, falas mansas (...) um tanto tímido e pouco comunicativo», de que Maria Angelina nos revela, com parcimónia, a fisionomia, não parece ser o autor angustiado do «Húmus» e de «A Farsa», antes pelo contrário, apenas o d’«As Ilhas Desconhecidas» e «Os Pescadores».

As suas cartas íntimas, as suas viagens, os seus gostos e predilecções, tudo isso ajuda a compor o clima humano destas «memórias» de Maria Angelina Brandão, prolongamento, no tempo, da personalidade dum escritor português a quem nunca se agradecera suficientemente o prazer espiritual da sua presença fiel nas bibliotecas dos que ainda o sabem ler, porque o estimam, o admiram e o não
esquecem.

por TABORDA de VASCONCELOS

 

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