Longos anos — não sei se repararam nisso
— o nome de Raul Brandão andou no esquecimento. Feita simultaneamente de
ímpetos e de êxtases (ímpetos como este: «Eu sou um impaciente que
não compreende a paciência diante da desgraça, da escravidão ou da dor.
Paciência nem diante do céu!; ou então o entusiasmo perante um
panorama onde «bóiam ainda restos de sol esquecidos na lividez do
rio, quando um fogaréu se acende e aviva as primeiras sombras num clarão
que seria um achado para um pintor de génio»...) a sua obra parece
que ficou à espera de uma conclusão que nunca se efectuou.
Todavia, que um escritor se não realize,
em absoluto, através da obra máxima em torno de que gira todo o resto, é
uma coisa; e que no desejo de atingi-la nos deixe, por sua vez, a
certeza duma poderosa vitalidade, em páginas sobre que o tempo
atentamente se debruça, num espanto miúdo e sincero, é outra.
Ora, Raul Brandão foi um desses. Obra
que não cabe em nenhuma classificação — eu sou contra as classificações,
no que, em matéria de arte, elas têm de asfixiante e restritivo — a do
autor das «llhas Desconhecidas» lembra a de alguém que, ao fim
duma vida de trabalho infatigável, a braços com sombras que procurou
iluminar e com dúvidas que pretendeu esclarecer, por momentos se
suspendesse a retomar o fôlego para nova investida.
Entretanto, os anos correram, eles que
são cada vez mais breves à medida que se somam. Outras gerações vieram,
à voz duma consciência que se amplia. Novos valores se inscreveram na
curva duma evolução sempre em vias de reajustamento.
Raul Brandão ficou, porém, acima de
todas as contingências e desvios de gostos e de correntes.
Incólumes, impolutos, os seus livros
resistiram ao tempo — mas nem sempre ao esquecimento.
E por isso, quando o releio ou dele me
falam, sinto-o como que recuperado.
O mesmo sucede agora, ao voltar a última
página das «memórias» de Maria Angelina Brandão, viúva do escritor, que
vem recordá-lo num livro cheio de melancólica ternura, conforme se deduz
até da epígrafe editorial, que aproveita duma carta dele, a frase que
sublinha a comunhão íntima dos sentidos e do pensamento do casal: «Um
Coração e Uma Vontade» se designa o volume, cujas «páginas
escritas ao correr da pena» avivam todo um passado não extinto.
Pois bem. Se hoje pode já considerar-se
simplista a ideia de ligar à literatura, dita feminina, um conceito de
fragilidade, de delicadeza e de transparência, é isso mesmo o que
acontece neste caso. Livro dum temperamento genuinamente feminino, «Um «Um
Coração e Uma Vontade» é uma destas obras ditadas mais pela
sensibilidade que pela inteligência.
Compreende-se que assim seja. E que,
portanto, o escritor que nele se evoca, personalidade de contrastes por
vezes violentos, fortemente individualizada, com o nome ligado à mais
trágica visão da existência que a nossa literatura já concebeu, resulte
assim numa imagem que, à primeira vista, parece não corresponder à que
da leitura dele se guardou.
Em todo o caso, ficaria desta forma
mutilada ou incompreendida essa estranha figura literária, a um tempo
vigorosa e magoada, se a não temperasse o conhecimento de certas
atenuantes de carácter agora tão amorosamente dadas.
De facto, o «belo moço, muito alto,
louro, falas mansas (...) um tanto tímido e pouco comunicativo», de
que Maria Angelina nos revela, com parcimónia, a fisionomia, não parece
ser o autor angustiado do «Húmus» e de «A Farsa», antes pelo contrário,
apenas o d’«As Ilhas Desconhecidas» e «Os Pescadores».
As suas cartas íntimas, as suas viagens,
os seus gostos e predilecções, tudo isso ajuda a compor o clima humano
destas «memórias» de Maria Angelina Brandão, prolongamento, no tempo, da
personalidade dum escritor português a quem nunca se agradecera
suficientemente o prazer espiritual da sua presença fiel nas bibliotecas
dos que ainda o sabem ler, porque o estimam, o admiram e o não
esquecem.
por
TABORDA de VASCONCELOS |