As mãos fogem-lhe dos aspectos agrestes
e até imundos da existência à procura de uma zona purificada de beleza;
a vida com que estão em duro e íntimo contacto, exige uma outra face de
contraste, situada muito acima dos pântanos, exige um escape, um alívio,
e ao dar-se a coincidência entre o médico e a sensibilidade apurada,
ferida, do artista, este encontra na arte um evasão compensadora das
agressões da prática profissional.
Não é assim, bem o sabemos. O médico não
foge para a arte; o médico procura a arte como irrefreável expressão da
sua densa e desmistificada experiência humana, tão densa e tão vasta que
pede um diálogo com os outros homens; procura-a porque esta lhe dá o
esteio, o impulso e a comoção de que a arte necessita. Com efeito, a
medicina permite-nos um convívio singular; e o homem que está presente
no médico de tal modo se identifica com essa experiência, ou é obrigado
a identificar-se, que, se nele existir o intelectual — e em todas as
profissões, é evidente, se pode verificar uma tal coincidência —, este
pode ir talvez mais longe e mais apaixonadamente do que outro
profissional e a sua voz terá de reflectir uma forte autenticidade. É
uma revelação que, além do mais, perdura e em todas as horas se descobre
e enriquece. Na verdade, creio que nunca a experiência do médico levou à
saturação, quer dizer: ao fastio, ao desencanto — por muito que aos
estranhos isto se afigure paradoxal. Claro: à medida que o artista,
perante o médico, se individualiza, chegar-se-á a um momento em que os
dois se enfrentam, tanto mais que uma e outra actividade, embora de modo
nenhum discordem, são igualmente absorventes e igualmente ciosas de uma
total dedicação. E, por isso, às vezes uma sacrifica a outra. Nota-se
que é o médico quase sempre o sacrificado (refiro-me, escusado seria
dizê-lo, aos casos em que o intelectual merece as suas ambições.)
Porquê? A resposta, por qualquer lado
por onde a apreciemos, parece-me arriscada. No entanto, julgo que a
renúncia será mais dolorosa da parte do escritor, pois, na altura em que
a escolha se justifica, o médico já viveu e usufruiu o melhor e o pior
da sua profissão; já acumulou uma pesada bagagem ao dispor do
intelectual — enquanto que este, na maioria dos casos, só nessa fase
atingiu o amadurecimento. E se mais vezes não se dá a renúncia de um
deles é porque, enfim, a medicina concede maiores garantias de
estabilidade económica — as mesmas razões, portanto, por que grandes
escritores são forçada e simultaneamente empregados de escritório,
amanuenses, comerciantes, e continuam a ser tudo isso ao mesmo tempo que
procuram cumprir, o melhor que lhes é possível, a sua vocação literária.
Agora V., meu caro
Amigo, levanta-me outro problema mais espinhoso de esclarecer, ao
assinalar que dantes eram em maior número os que desistiam da profissão
médica — para, decididamente, se tornarem escritores e apenas
escritores. A explicação mais cómoda, na mesma linha utilitária do que
acabo de dizer, seria esta: noutros tempos os escritores tinham
oportunidades, directas ou indirectas, de desafogo material, mais firmes
do que nos nossos dias. Mas, ao desfibrar com mais vagar este aliciante
aspecto /página
14/ da sua carta, alvitro uma outra
dedução, embora sem invalidar, de todo, aquela: dantes, a expressão
literária, pelo menos em certas épocas, brigava frequentemente com a
mentalidade do médico: a literatura reagia com indignação perante o
realismo verídico, de conteúdo e de forma, em que a profissão
mergulhava. Fossem quais fossem os seus desvios líricos, a medicina
começava por enumerar e descrever as vísceras do corpo humano e
averiguar concretamente das causas e efeitos das suas mazelas. Médico e
escritor tinham, pois, linguagens diferentes, pontos de chegada e de
partida discordantes. Hoje, pelo contrário, a disciplina científica do
médico, o rigor de observação, as vias da sua cultura, a lucidez sem
disfarces, o seu comportamento profissional exacto, despido, ajustam-se
ao que o homem dos nossos dias espera da mensagem literária. Por outras
palavras: nos tempos que correm, o médico e o escritor encontram-se no
mesmo ângulo de visão, em idênticos processos de esclarecimento, na
mesma busca de uma voz rigorosa, conquanto permita refreadas
especulações. Não precisam de se afastar para que se realizem. Ou
melhor: podem completar-se. Fica de pé, não obstante, a
incompatibilidade das duas tarefas, pelo que diz respeito ao quanto cada
uma delas exige do mesmo homem.
Mas V. poderá perguntar-me: se me fosse
dado escolher — a mim que, como escritor, tenho seguido com fidelidade
as minhas andanças de médico —, sacrificaria urna delas? Decerto.
Ficaria o escritor, mesmo tão desvalioso. Até porque, hoje, e tendo já
beneficiado do que a medicina me tem para oferecer — benefícios que se
prolongam mesmo para além da renúncia à profissão —, as oportunidades de
contacto veraz e intenso com a vida são bem maiores do que noutras
épocas, mesmo para quem despe o capuz de médico. E escolheria pelas
razões já sublinhadas: o amadorismo, em literatura, como afinal em tudo,
dificilmente permite uma obra funda, serena, estruturada.
Seu admirador,
Fernando Namora |