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Artes - Letras - Ciências
Suplemento do n.º 271 do "Litoral"
Dezembro de 1959, Ano I, n.º 4
págs. 13 e 14

 

Meu caro Mário Sacramento:

Não sei se à maioria dos leitores interessará, tanto como a nós, médicos, este problema das afinidades da nossa profissão com a literatura, embora tenha reparado que um ou outro estrangeiro, de passagem por Lisboa, ao visitar-me pergunte quase invariavelmente e num tom de saudação: «Poderá explicar-me por que motivo os médicos chamam a si uma parcela honrosa da história literária de vários países?» Claro que eles já trazem a explicação — uma das que o público, ou quem o induz, de há muito adoptou. Vejamos uma dessas explicações, a mais falsa mas também a mais frequente: o médico, dia a dia atolado na dor, e tantas vezes na sordidez, necessita de uma fuga: a arte.

As mãos fogem-lhe dos aspectos agrestes e até imundos da existência à procura de uma zona purificada de beleza; a vida com que estão em duro e íntimo contacto, exige uma outra face de contraste, situada muito acima dos pântanos, exige um escape, um alívio, e ao dar-se a coincidência entre o médico e a sensibilidade apurada, ferida, do artista, este encontra na arte um evasão compensadora das agressões da prática profissional.

Não é assim, bem o sabemos. O médico não foge para a arte; o médico procura a arte como irrefreável expressão da sua densa e desmistificada experiência humana, tão densa e tão vasta que pede um diálogo com os outros homens; procura-a porque esta lhe dá o esteio, o impulso e a comoção de que a arte necessita. Com efeito, a medicina permite-nos um convívio singular; e o homem que está presente no médico de tal modo se identifica com essa experiência, ou é obrigado a identificar-se, que, se nele existir o intelectual — e em todas as profissões, é evidente, se pode verificar uma tal coincidência —, este pode ir talvez mais longe e mais apaixonadamente do que outro profissional e a sua voz terá de reflectir uma forte autenticidade. É uma revelação que, além do mais, perdura e em todas as horas se descobre e enriquece. Na verdade, creio que nunca a experiência do médico levou à saturação, quer dizer: ao fastio, ao desencanto — por muito que aos estranhos isto se afigure paradoxal. Claro: à medida que o artista, perante o médico, se individualiza, chegar-se-á a um momento em que os dois se enfrentam, tanto mais que uma e outra actividade, embora de modo nenhum discordem, são igualmente absorventes e igualmente ciosas de uma total dedicação. E, por isso, às vezes uma sacrifica a outra. Nota-se que é o médico quase sempre o sacrificado (refiro-me, escusado seria dizê-lo, aos casos em que o intelectual merece as suas ambições.)

Porquê? A resposta, por qualquer lado por onde a apreciemos, parece-me arriscada. No entanto, julgo que a renúncia será mais dolorosa da parte do escritor, pois, na altura em que a escolha se justifica, o médico já viveu e usufruiu o melhor e o pior da sua profissão; já acumulou uma pesada bagagem ao dispor do intelectual — enquanto que este, na maioria dos casos, só nessa fase atingiu o amadurecimento. E se mais vezes não se dá a renúncia de um deles é porque, enfim, a medicina concede maiores garantias de estabilidade económica — as mesmas razões, portanto, por que grandes escritores são forçada e simultaneamente empregados de escritório, amanuenses, comerciantes, e continuam a ser tudo isso ao mesmo tempo que procuram cumprir, o melhor que lhes é possível, a sua vocação literária.

Agora V., meu caro Amigo, levanta-me outro problema mais espinhoso de esclarecer, ao assinalar que dantes eram em maior número os que desistiam da profissão médica — para, decididamente, se tornarem escritores e apenas escritores. A explicação mais cómoda, na mesma linha utilitária do que acabo de dizer, seria esta: noutros tempos os escritores tinham oportunidades, directas ou indirectas, de desafogo material, mais firmes do que nos nossos dias. Mas, ao desfibrar com mais vagar este aliciante aspecto /página 14/ da sua carta, alvitro uma outra dedução, embora sem invalidar, de todo, aquela: dantes, a expressão literária, pelo menos em certas épocas, brigava frequentemente com a mentalidade do médico: a literatura reagia com indignação perante o realismo verídico, de conteúdo e de forma, em que a profissão mergulhava. Fossem quais fossem os seus desvios líricos, a medicina começava por enumerar e descrever as vísceras do corpo humano e averiguar concretamente das causas e efeitos das suas mazelas. Médico e escritor tinham, pois, linguagens diferentes, pontos de chegada e de partida discordantes. Hoje, pelo contrário, a disciplina científica do médico, o rigor de observação, as vias da sua cultura, a lucidez sem disfarces, o seu comportamento profissional exacto, despido, ajustam-se ao que o homem dos nossos dias espera da mensagem literária. Por outras palavras: nos tempos que correm, o médico e o escritor encontram-se no mesmo ângulo de visão, em idênticos processos de esclarecimento, na mesma busca de uma voz rigorosa, conquanto permita refreadas especulações. Não precisam de se afastar para que se realizem. Ou melhor: podem completar-se. Fica de pé, não obstante, a incompatibilidade das duas tarefas, pelo que diz respeito ao quanto cada uma delas exige do mesmo homem.

Mas V. poderá perguntar-me: se me fosse dado escolher — a mim que, como escritor, tenho seguido com fidelidade as minhas andanças de médico —, sacrificaria urna delas? Decerto. Ficaria o escritor, mesmo tão desvalioso. Até porque, hoje, e tendo já beneficiado do que a medicina me tem para oferecer — benefícios que se prolongam mesmo para além da renúncia à profissão —, as oportunidades de contacto veraz e intenso com a vida são bem maiores do que noutras épocas, mesmo para quem despe o capuz de médico. E escolheria pelas razões já sublinhadas: o amadorismo, em literatura, como afinal em tudo, dificilmente permite uma obra funda, serena, estruturada.

Seu admirador,

Fernando Namora

 

     Alentejanos 1953 / Rogério Ribeiro

O vigor dos volumes, bem marcados, nesta litografia do artista Rogério Ribeiro, revela em toda a sua magnificência a nudeza. que é bela, das gentes do Alentejo. Excelente na feitura técnica, esta litografia é bem uma das obras mais expressivas e representativas do neo-realismo plástico.

 

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