por
ARTUR PORTELA
(FILHO) |
Rodolfo da Cantuária foi o mais cruel dos senhores medievos. Alto como
um pinheiro do país dos citas. Forte como um leão de Magreb. Contam as
crónicas as suas carnificinas de servos, as suas matanças nos feudos
vizinhos, as suas razias em campos inimigos. E uma velha balada, cantada
por menestreis em festins senhoriais e feiras vilãs, diz-nos que os céus
das suas terras eram cruzados, dia e noite, por abutres.
Ninguém mais cioso dos tributos servis. Aí daquele que, por incúria ou
miséria, não pagasse a talha, a finta, a libra de água. Imediatamente
Rodolfo da Cantuária o chamava ante si e o sujeitava às mais fantásticas
torturas. E o corpo do desgraçado era exposto nas muralhas do castelo
para que ninguém repetisse a façanha. E os camponeses, coração ardendo
na mais exaltada e justa das revoltas, abatiam a cabeça, esmagados pelo
medo das lanças negras das hastes de Rodolfo da Cantuária. |
Os
próprios judeus finos e manhosos, vindos do Catal e do Ganges,
habituados às prepotências dos Cãs, marajás e piratas muçulmanos
portadores de gengibre do Malaca, canela de Ceilão, marfins da África
debandavam aterrorizados ao avistarem os estandartes de Rodolfo da
Cantuárla, deixando na estrada as suas riquezas.
O rei
temia-o, cumulando-o de benefícios e honrarias. E às queixas dos
cónegos, bispos e papas Rodolfo da Cantuária respondia com o nome das
suas vitórias sobre a moirama. Vendo nele um barão forte e glorioso,
vinham cavaleiros de todo o Mundo, cansados de quebrarem lanças em busca
de dragões, florestas encantadas e loiras donzelas. E não havia em todo
o Ocidente cavalgadas mais temerárias. O nome de Rodolfo da Cantuária
espalhou-se pela terra, levado por jograis, peregrinos, senhores e
galerianos infiéis. E também trovadores, artífices, escultores,
letrados, feiticeiros, monges e proscritos lhe vieram suplicar mercês.
Muitos destes tiveram os corpos despedaçados pelos carrascos de Rodolfo
da Cantuária. Mas muitos também tiveram coutos, bolsas de morabitinos e
aplausos. Assim Rodolfo da Cantuária viu-se cercado por uma verdadeira
corte de cronistas, músicos, frades e cavaleiros de pulso forte e olhar
torvo.
E o
povo curvava-se sobre a terra querendo e suplicando que ela lhe desse
mais, porque não podia suportar as exigências do seu senhor. E as mães
choravam porque os filhos eram arrebanhados para os exércitos. E as
mulheres choravam porque os homens trabalhavam de sol a sol para
encherem os celeiros de Rodolfo e morrerem de fome. E os homens choravam
porque os chicotes lhes rasgavam as faces. E as crianças choravam porque
os vitelos eram todos abatidos para as cozinhas do castelo e elas comiam
raízes. E os velhos choravam porque já tinham visto tempos melhores e
mais fartos e ninguém acreditava neles. E todo o povo chorava e morria.
Mas uma noite alguém lhes bateu à porta. Era um monge velho entre
todos os velhos. Dir-se-ia /página
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mares. Dir-se-ia que trazia sobre as suas costas todos os pecados dos
homens. Ele disse:
—
Erguei-vos, vinde, trazei archotes e chuços. Está escrito: Amai Deus
sobre todas as coisas e ao próximo como a vós mesmo. E Ele apareceu-me e
disse: Vai e prega a Rodolfo da Cantuária. E eu disse-lhe: Meu Deus, eu
não sou nada. Vi muito e o meu corpo é um tronco nu e ressequido.
Rodolfo da Cantuária é forte, tem exércitos, lanças, maças de ferro. Que
posso eu fazer? E Ele disse-me: vai e prega. E eu disse-Lhe: Senhor, vós
sois o princípio de tudo. Mas Rodolfo da Cantuária tem muralhas. E eu
sou um ancião e nada valho. E Ele disse-me: vai e prega. E eu quis saber
como poderiam as minhas palavras chegar ao coração de Rodolfo da
Cantuária. E Ele disse-me: vai e prega. E desapareceu. E eu caminhei
pelos montes, pelos vales, pelas florestas, chamando-O e pedindo-Lhe a
solução. E Ele não me respondeu. Mas eu olhei a Natureza. E a Natureza e
os animais, que são obras da glória d’Ele, disseram-me que o coração de
Rodolfo da Cantuária é de pedra e que a pedra se quebra com a pedra e
que à força se deve opor a força. Vinde, pois, filhos de Deus, que
sofreis, vinde quebrar a pedra com a pedra.
E
atrás do velho, que era velho entre os velhos, a multidão engrossava, os
chuços e os punhos agitavam-se, as vozes erguiam-se, os olhos
incendiavam-se. E ninguém temia porque iam com um que O tinha visto e
que d’Ele recebera ordens. E todos sabiam que Deus os conduzia para a
vitória e que a pedra só se quebra com a pedra. |
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Rodolfo da Cantuária reuniu os seus cavaleiros de punhos fortes e olhar
torvo. E na Europa não existiam outros cavaleiros tão bravos como os de
Rodolfo da Cantuária. E as turbas que se aproximavam eram fracas e
estúpidas. E elas seriam esmagadas num mar de sangue. E os trovadores
cantavam hinos em louvor de Rodolfo da Cantuárla, o Sempre-Vitorioso. E
os cronistas escreviam já os seus elogios. E os de Rodolfo riam. E os
cavalos couraçados escarvavam o solo. E as lanças tiniam.
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Mas
eis que as multidões caíram sobre os cavaleiros de punhos fortes e olhar
torvo. E as multidões derrubaram os cavaleiros, quebraram as lanças e
estraçalharam o corpo de Rodolfo da Cantuária. E os cavaleiros que não
haviam acreditado nos dragões, nas florestas encantadas e nas loiras
donzelas, morreram às mãos do povo. E o castelo foi saqueado, incendiado
e destruído. E nunca como então os abutres foram tantos. E na manhã
seguinte, o monge levou as turbas para junto de um lago. E falou-lhes:
— E
Ele disse-me: vai e prega. Mas a pedra só se quebra com a pedra.
E
todos acreditaram.
Artur Portela (Filho)
«
Um dos mais veementes desejos de COMPANHA será, no futuro, tentar ir
mostrando aos seus leitores reproduções das obras, que pelo seu
valor intrínseco sejam, efectivamente, contribuições válidas para o
movimento das correntes artísticas em Portugal. No presente número
reproduzimos uma litografia de Rogério Ribeiro e, ao lado, pode
apreciar-se um trabalho do artista Querubim Lapa. Neste número, nada
mais, mas continuaremos. |
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