(In)comunicação
Num tempo em
que muito se fala de comunicação, afigura-se-nos oportuna
uma breve visita a este universo muito “barulhento”, mas
com muitas interrogações, também. Ela é, seguramente, um
dos símbolos mais brilhantes do séc. XX, cujo ideal é
aproximar os homens, os valores, as culturas, dar testemunho
de todos os combates travados pela emancipação dos povos,
pela liberdade, pelos direitos do homem, pelos ideais da
justiça, da paz e da democracia. Todos nós pertencemos ao
espaço da comunicação, onde se cruzam o público e o
privado. Porém, nada garante, sobretudo no momento do seu
triunfo técnico e económico, que os ideais da comunicação
de ontem se inscrevam nos ideais de amanhã. Mas como salvar a
dimensão humanista da comunicação quando triunfa a sua
dimensão instrumental?
Aqui, ficam
algumas ideias retiradas dos autores referidos na
bibliografia. Para despoletar outras incursões reflexivas
sobre este novo mundo da comunicação.
Propositadamente,
apenas um título geral. Ao longo deste breve apontamento, os
títulos podem ser criados ou imaginados ao sabor da
leitura/das leituras. Texto/leitura inacabados. Forçosamente,
inacabados.
Que
sentido(s) para a palavra comunicação?
(Wolton, 1997:
14-16)
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Antes de tudo,
é uma experiência antropológica fundamental. Comunicar
consiste em estabelecer trocas com outro. É pela
comunicação que se “tocam” e se manifestam, se revelam e
se exprimem o individual e o colectivo. A comunicação
constitui, assim, o fundamento da afirmação pessoal e
colectiva, um modelo cultural produtor de linguagens e de
formas de ser e de estar. Neste sentido, o acto comunicacional
actualiza uma história, uma cultura, uma sociedade,
essencialmente porque “a comunicação remete para o
fundamento de toda a experiência humana” (ibid.: 36).
Comunicar é, nesta lógica de sentido, partilhar, é o meio
de entrar em contacto com outro. É a comunicação directa.
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A comunicação
é o conjunto das técnicas que, ao longo do tempo, foram
substituindo a comunicação directa pela comunicação à
distância. Hoje, comunicação significa quer a relação
directa entre duas ou várias pessoas, quer a relação à
distância mediatizada por tecnologias apropriadas. Hoje,
comunicar é trazer à nossa presença o que se passa algures
no planeta, tarefa simples e banal. A “aldeia global” aí
está.Compreensível dum ponto de vista técnico, mas com
algumas interrogações do ponto de vista histórico e
cultural. É a comunicação técnica.
A comunicação
tornou-se uma necessidade social funcional para economias
interdependentes, pois o mercado mundial assim o requer. A
abertura de “fronteiras” e a queda de “alguns muros”
proporcionaram o terreno para o desenvolvimento da “comunicação
mundial”. É a comunicação funcional (ou instrumental).
Um ponto comum
a estes três níveis de comunicação: a interacção. É
esta que define a comunicação. Mas a aceleração dos
diferentes níveis comunicacionais arrasta o triunfo de uma
ambiguidade: as interacções da comunicação funcional não
são sinónimas de intercompreensão. |
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A comunicação
é o paradigma cultural do século XX. Graças à técnica, é
muito simples comunicar: o telefone, o telefax, a rádio, a
televisão, a imprensa, a Internet, os transportes aéreos,
tudo nos leva longe com uma rapidez que ainda nos surpreende.
Os meios de comunicação, desenvolvidos até ao
inacreditável, constituem o «quarto poder», um poder
indiscutível testemunhado pela irrefutável expressão de que
“só é real o que aparece nos meios de comunicação”,
transformando os media numa referência do quotidiano e as
novas tecnologias da informação nos veículos privilegiados
de tais “transfigurações”. Citemos Lipovetsky: “Se a
ética dos media tem como objectivo declarado criar uma
imprensa mais responsável, mais respeitadora dos cidadãos e
da verdade, também é, de facto, um vector inédito de
sobre-exposição do poder mediático: a voz crítica da
moral, nova maneira de reforçar a ideia do império dos media”,
a ponto de se transformarem no “epicentro do real social,
como instâncias superpoderosas, capazes de fabricar a
opinião, de retocar as representações do mundo, de ser
actores da história”. A omnipresença mediática constitui
uma marca dos tempos, contribuindo este fenómeno para o
reforço do seu “poder simbólico” e para a consagração
do “quarto poder” (1994: 238-239).
A possibilidade
de comunicarmos é um valor do nosso século, um valor que
muito provavelmente ocupou o lugar dos valores ilustrados do
progresso e da razão, pois o facto do paradigma da
comunicação se ter convertido no paradigma da nossa cultura
deve-se, é claro, à inovação técnica, mas também a uma
série de descobertas teóricas das ciências humanas e
sociais. A importância concedida à linguagem na filosofia
contemporânea, a tese da própria sociologia do conhecimento
de acordo com a qual «a realidade é uma construção
social», têm uma relação directa com a suspeita sobre a
verdade como anseio das ciências e com a aceitação do
relativismo. De facto, “hoje, toda a gente sabe e aceita que
não há uma visão do mundo única e privilegiada, que todo o
saber é relativo ao ponto de vista do investigador ou do
estudioso. As epistemologias não confiam na capacidade do
sujeito para alcançar a verdade: falam da nossa realidade
intersubjectiva, da inevitabilidade do diálogo. Só existe
objectividade intersubjectiva, o consenso é o que existe de
mais aproximado à verdade, a validade das teorias
científicas repousa, em última análise, nas decisões das
comunidades de cientistas e não em referentes empíricos
indiscutíveis. A única episteme que existe é a que surge do
confronto de doxas” (Camps, 1996: 144).
Admitamos, sem
dúvida, que cada dia comunicamos mais e melhor, que vivemos
na sociedade da comunicação. Mas só em certo sentido. O
individualismo é uma realidade, a competitividade
inevitável, o tempo não abre janelas para estreitar os
laços afectivos: “a surdez, o ruído, a incompreensão
tornam-se insuportáveis nos núcleos urbanos, assistimos
impotentes, se não indiferentes, a frequentes expressões de
insolidariedade, racismo e intolerância” (ibid.: 145).
Tanto no plano
pessoal e afectivo, como no profissional, o interesse por ou
pelo outro, primeiro passo para a comunicação, não é
generalizado. Os vizinhos de um mesmo edifício nem sequer se
conhecem; o historiador e o matemático não se entendem, na
suposição de que sintam uma mínima curiosidade mútua; as
linguagens do saber revelam-se um obstáculo às
aproximações desejadas e anunciadas pela proliferação de
formas múltiplas de comunicação. Somos “átomos” de um
universo feito de “solidões”.
Assim, a
comunicação, paradigma da nossa cultura, é um conceito
equívoco, invadido pela(s) ambiguidade(s). Designa a
facilidade informativa que nos permite saber muito mais coisas
do que antes e sermos também mais conscientes das
limitações de cada ponto de vista e das necessidades
mútuas. Mas comunicação deveria designar também a
existência de uma relação interpessoal assumidamente plena
e humanizada, a realidade de uma convivência mais conseguida.
Se o primeiro sentido é, efectivamente, uma constante do
nosso tempo, e uma constante positiva, o segundo é só uma
ideia ou um desejo com muitas barreiras e obstáculos, pese
embora todo o apoio e sustento tecnológico. A comunicação e
a compreensão entre os seres humanos não melhorou pelo facto
das comunicações serem mais fáceis e rápidas. Pelo
contrário, os protagonistas das sociedades da comunicação
mostram-se incapazes de comunicar no segundo sentido. As
intolerâncias não param. Cresce a desconfiança mútua.
Aumentam os suicídios de adolescentes. As “distâncias”
de todo o tipo estão “instaladas”.
Devemos
perguntar-nos se não é precisamente o tipo de comunicação
fornecido pela inovação técnica, a Internet e o audiovisual
de uma forma geral, o que prejudica a outra comunicação,
essa comunicação humana que a linguagem teria de tornar
possível. Todos, de facto, estamos unidos pela linguagem, mas
é também um facto que a «cultura da comunicação» não
ajuda nem à escrita nem à leitura, não ajuda à linguagem:
é uma cultura da imagem. O que tem valor é ver, ou fazer-se
ver, não escutar. Para ver não é necessária a presença
material do outro que é, em troca, imprescindível para
falar. Tudo isso tem as suas repercussões no funcionamento da
vida em comum.
Mas, o que é
comunicar? Falar por telefone? Trocar faxes? Navegar em
espaços virtuais?
«Comunicar»
tem um parentesco comum com «comunhão» e «comunidade». A
comunicação implica reciprocidade. Na informação, pelo
contrário, o emissor é o actor principal. Os meios de
comunicação fazem fracassar, em vez de promover, aquilo que,
de acordo com Habermas, nos constitui como seres humanos: a
acção comunicativa.
Informar é dar
conta dos factos, do que aconteceu, é dar vez e voz ao
quotidiano do espaço humano, é fazer falar os “silêncios”.
Se é certo que a informação dos meios de comunicação
sensibiliza e cria atitudes e opiniões, transformar o
particular em interesse geral é apenas tratar de sensibilizar
toda a sociedade em relação a determinados temas e
situações que, ainda que, de facto, não nos afectem,
deveriam afectar-nos e mobilizar-nos. A boa informação
deveria formar as pessoas, deveria ter um fim educativo
consciente e fomentar uma apreensão crítica dos
acontecimentos, já que toda a informação, em qualquer dos
casos, tenha ou não essa intenção, influi nos seus
receptores. A informação nunca é apenas informação. Aqui,
reside a responsabilidade dos mass media. Um jornalista não
se reduz a ser um mero informador de factos, é, também, um
formador. A informação tem que reservar, para si, um espaço
educativo, já que o dado puramente objectivo ocupa um
território de reduzida dimensão. Poder-se-á, assim, afirmar
que não há informação neutra? Por detrás dos textos há
cidadãos que falam de lugares sociais próprios.
Acima,
referimo-nos a dois significados diferentes de
«comunicação»: a que é realizada pelos meios de
comunicação e a comunicação interpessoal. A primeira
poderia ser um veículo, um meio para a segunda, se
propiciasse efectivamente a comunicação entre os povos,
entre os grupos, entre os poderosos e os mais «incomunicados».
Também os meios de comunicação poderiam ter realmente uma
função «educativa» na sociedade, para contrariar o
consumismo e a mercantilização de tudo, dando a conhecer,
dando publicidade (boa publicidade, não simples espectáculo)
àquilo que ninguém sabe nem quer saber, aos aspectos mais
vergonhosos do nosso mundo. Deveriam ser esses critérios a
avaliar a informação boa e justa, que é condição para que
se estabeleça uma comunicação real, uma comunicação “cerebrada”
e contextualizada na agenda existencial do quotidiano da
humanidade.
Um remate
A nossa
civilização edificou-se sobre as facilidades da
comunicação, onde as fronteiras se esconderam ou se
limitaram a um texto simbólico, onde o saber circula e se
disponibiliza de forma quase total, onde a notícia surge
instantaneamente, onde o tempo desaparece. Tudo pode ser visto
em directo. Este cenário faria pressupor um universo “partilhado”,
promotor de intersubjectividades e de companheiros.
Mas temos
saudade da vida em comum que já não existe. O
individualismo, marca do nosso tempo, criou outras fronteiras,
legítimas, mas produtoras de distâncias e de outros muros. |
A
mediatização tecnológica da comunicação aí está a
assumir, no nosso ponto de vista, a sua cumplicidade, nesta
matéria. Reconheça-se, porém, o papel da técnica na quebra
de solidões e de incomunicações: os idosos, os doentes, as
situações de risco, etc. |
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O telefone móvel ou fixo e os
meios informáticos postos ao dispor de situações como estas
poderão despertar solidariedades e transformar as ausências
em presenças. Do seu nicho, cada um pode, através do meio
técnico ao seu alcance, fazer soar o alarme da comunicação.
Estamos perante o que poderíamos designar de “técnica com
rosto”. Esta assume-se como o porta-voz da inquietação e
do(s) silêncio(s). |
Mas, a
comunicação directa escasseia. Os meios de comunicação,
por estranho que pareça, não nos fazem comunicar,
verdadeiramente, contribuindo antes para nos isolar no nosso
próprio mundo.
Com Victoria
Camps, diremos que “a sociedade da comunicação não é
mais solidária nem mais afectiva. Não soube pôr os meios e
o progresso técnico ao serviço da democracia e do
entendimento mútuo. Muito menos ao serviço do ser humano. A
técnica vale por si própria e só se submete ao poder
económico” (1996: 21).
Alcino Cartaxo
BIBLIOGRAFIA:
● Camps,
Victoria (1996), Paradoxos do Individualismo, Lisboa, Relógio
d’Água.
●
Fontcuberta, Mar de (1999), A Notícia: pistas para
compreender o mundo, Lisboa, Notícias Ed.
●
Lipovetsky, Gilles (1994), El crepúsculo del deber. A ética
indolor de los nuevos tiempos democráticos, Barcelona, Ed.
Anagrama.
●
Wolton, Dominique (1997), Penser
la Communication, Paris, Flammarion.
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