BOLETIM CULTURAL E RECREATIVO - SECUNDÁRIA JOSÉ ESTÊVÃO - AVEIRO


 
Colóquio percursos do acanto
Da planta helénica à folha lusitana
em talha dourada e azulejo
 

Fig. 1: Acantos no jardim da escola.

Como ex-professora de Grego da Escola, as minhas saudações a todos: XAIPE, em grego antigo e Καληςπέρα, em grego moderno. Espero vir aprender convosco e também partilhar alguns dos meus conhecimentos.

Aceitando a sugestão de Carlos Drummond de Andrade, «Chega mais perto e contempla as palavras: cada uma tem mil faces secretas [...]», vamos partir à descoberta do que significa ‘acanto’.

Segundo explicações etimológicas, quer dizer ‘espinho’, ’cardo’ e provém do grego ‘άκανθος, através do latim acanthus, a primeira citada pelo naturalista Plínio, a segunda pelo poeta Vergílio nas "Geórgicas".

 

Observemos, então, a figura 1, com acantos no jardim da nossa escola, para recordardes comigo as características científicas do acanthus mollis, classificação dada por Lineu:

- planta dicotiledónea, da família das acantáceas, espinhosa;
- com duas espécies (a silvestre, espontânea e a cultivada, de folha mais fendida)
- arbusto que pode atingir 1, 5 m de altura, de folha lobada, vivaz, com 1 m de largura;
- a flor, que brota de uma espiga, é branca estriada de amarelo-púrpura;
- o seu ‘habitat’ é o de climas quentes e áridos, do Mediterrâneo.

Também chamada de ‘erva-gigante’, é parente do cardo, do espargo-bravo, acácia e abeto.

 Desde cedo lhe foram reconhecidas pelos gregos — ou não fossem da pátria do deus da Medicina Asclépios e do famoso médico Hipócrates — qualidades terapêuticas de calmante, anti-inflamatório (em diarreias e inflamações da garganta, por exemplo) e de regulador da menstruação. Em relação a estas utilizações não me vou alongar, pois sei que, brevemente, ireis  fazer uma exposição, fruto das vossas pesquisas sobre a matéria.

Mas... para Eugénio de Andrade, «As palavras secretas vêm, cheias de memória, de ramo em ramo voando. [...] São como um cristal [...]» (polifacetadas, com diversos sentidos, espalhando o brilho em várias direcções). A fim de o provar, farei convosco uma ronda pelo TEMPO E ESPAÇO FÍSICO. Assim, ouvireis que Acanto tem ainda uma história mitológica:

...Era uma vez um jovem, de nome Acanto, e mais quatro irmãos (Anto, Eródio, Esqueneu e uma menina, Acântis). Eram filhos de Antónoo e de sua mulher Hipodamia. Cultivavam uma terra de grande extensão; todavia, como pouco a trabalhavam, os campos enchiam-se de cardos e juncos. Faziam criação de cavalos nos pântanos.

Um dia, o filho mais velho usou da força para obrigar as éguas a abandonarem as pastagens. Elas enfureceram-se e despedaçaram-no. Toda a família ficou em desespero e então, Zeus e Apolo, compadecidos do seu doloroso luto, transformaram os elementos da família em pássaros. Consta que Acanto se metamorfoseou, provavelmente, em pintassilgo.

Ora, os Helenos, povo muito antigo, já existente no século XXI a. C. em Creta, foram muito célebres. Sabeis em quê? Exactamente, em mitos, lendas, pensamentos filosóficos, religião,  artes.

Pois, segundo uma das lendas, narrada por um estudioso de arquitectura, o romano Vitrúvio, o primeiro uso da folha de acanto, em pedra, deve-se ao escultor grego Calímaco, no final do século V a. C., o qual, para adornar um capitel de coluna, se teria inspirado num ramo de folhas de acanto, caídas sobre o túmulo de uma menina.

Tal detalhe (ver figura 2) tem a forma de um cesto, envolvido por folhas de acanto, com duas voltas e de extremidades enroladas.

 


Fig. 2: Templo de Zeus em Atenas, vendo-se o pormenor do capitel coríntio.

Valor Simbólico – O acanto passou a ser um ornato nos capitéis coríntios, nos carros fúnebres, nas vestes dos grandes homens, porque indicava que as provações da vida e da morte, simbolizadas pelos espinhos da planta, haviam sido vencidas. Ao triunfarem das dificuldades das suas missões, arquitectos, defuntos e heróis tinham atingido a GLÓRIA.

Evolução – O estilo coríntio depressa se expandiu no continente e por todo o mundo grego. Entretanto, a guerra do Peloponeso e a rivalidade entre Atenas e Esparta deixaram as cidades gregas empobrecidas. Os artistas passaram a trabalhar para clientela privada. Afastaram-se do idealismo, aproximando-se do realismo, das emoções humanas, produzindo obra mais subjectiva. O sentimento e graciosidade ocuparam o lugar da majestosidade.

A ordem coríntia, a mais rica de pormenores, foi aplicada em edifícios de pequenas dimensões.

Quais foram, pois, as características helenísticas, as do século IV a. C.?

Na arquitectura - edifícios altos, impressionantes, com exagero de motivos, muitas colunas;

Na escultura – temas do quotidiano, corpos retorcidos, vestes com movimento, expressividade dramática, grandes dimensões (ver, por exemplo, nos livros expostos, a conhecidíssima Vitória da Samotrácia).

Posteriormente, que facto marcante aconteceu?

Roma venceu os Gregos mas foi vencida pela sua cultura. Mantiveram-se as linhas de criatividade, assentes em princípios clássicos (greco-romanos) por excelência:

- equilíbrio
-
proporção
-
harmonia
-
monumentalidade.

Quanto à coluna coríntia, romanizou-se. É que «Em Roma, sê romano»...Tornou-se compósita, ou seja, formada por um capitel tipo sino invertido, também com duas filas de folhas de acanto estilizadas, mas rematando com volutas, próprias da ordem jónica. Difundiu-se por templos, casas de habitação, basílicas.


Fig. 3: Ruínas de um templo romano com capitéis coríntios romanos existentes na Via Ápia, em Roma.

Reparem na imagem da Via Ápia (fig. 3), nas ruínas da Cidade Eterna!

Na época do Cristianismo, continuou a ser usada a coluna com acanto. Nos arredores de Roma, nasceu uma das primeiras igrejas cristãs, a basílica de S. Paulo, por ordem do imperador Constantino, no século IV.

E, como vestígios da Romanização na Península Ibérica, todos vocês retêm na memória o lindo teatro de Mérida ou o templo de Diana em Évora.

Durante a Idade Média, lavra o estilo gótico, baseado numa profunda espiritualidade centrada em Deus para alcançar o céu. Daí, o arco em ogiva representar o gesto de «mãos erguidas», em atitude de oração. O acanto silvestre serviu, então, de modelo aos escultores deste período e também a uma iluminura, desenhada por monges, no livro de coro de Sto Isidoro, em León, com esse motivo decorativo cercando a pintura de Nicolau Francês – Nascimento de Jesus.
 

E o que é que vem a seguir? A extensa época clássica que, em Portugal, abrange:

- Renascimento (período italiano) – Século XVI
-
Barroco > Rococó (período espanhol) – Século XVII
-
Neo-classicismo (período francês) – Século XVIII

Da Renascença, evoco o altar-mor da capela de D. Duarte Lemos, 3º senhor da Trofa (Águeda) e a Basílica de S. Pedro no Vaticano.

 

E eis-nos no Barroco.

Que peça do Museu de Aveiro andam os vossos colegas a estudar? Precisamente, a Barca da Senhora da Boa Morte.

Quem sabe o que significa o termo ‘barroco’? Alguns responderam: ‘pérola disforme’ > ‘bizarria’ > ‘extravagância’.

Neste período, projectam-se as artes da azulejaria e talha dourada nacionais. Às linhas rectas sucedem-se as curvilíneas, como se pode  observar na figura 4 — pormenor da Igreja da Sr.ª de Brotas, entre Mora e Montemor-o-Novo. Relembremos as características barrocas:

- horror vacui
-
exuberância de ornamentos
-
extravagância
-
o tema da fragilidade da vida
-
o estado de espírito de frustração.

Na pintura, nomeadamente em Rubens, notam-se contrastes de tons (claro-escuro) e de temas.

Na música, Bach, autor de concertos para instrumentos solistas, cria um ritmo muito rápido, com partitura repleta de semicolcheias em cada compasso, tal como nesta suite para cravo.

Na literatura, a condizer com a procura de majestosidade e fausto da vida de então, abuso de antíteses, extravagância de metáforas, imagens e construções frásicas ou de jogos de conceitos – artifícios chamados, respectivamente, de cultismo e conceptismo.


Fig. 4: Painel de azulejos da Igreja da Srª de Brotas.

Exemplificando, vamos ouvir um vosso colega de Humanidades, Filipe Marques, no soneto de Francisco de Vasconcelos, Esse baixel nas praias derrotado.

Na transição para o século XVIII, os excessos reduplicaram (estilo rococó) e o azulejo passa a ter as cores azul e amarela, como se pode ver na Igreja da Sr.ª da Boa Fé, no Escoural (Évora).

Para melhor vos confrontardes com a nova versão, não resisto a servir-me do meu telemóvel (objecto que, nas aulas, deveis manter desligado).

Soou um toque musical. Quem foi o compositor? Isso mesmo, o genial Mozart, na sua inesquecível Marcha turca!

 


Fig. 5: Partitura com a Suite Francesa n.º 5 em Mi menor de Bach.

 

 

Fig. 6: Mecanismo do carrilhão do Convento de Mafra.

Entretanto, a pretexto de cortarem com tamanhos exageros, os neo-clássicos repõem os cânones das épocas áureas das velhas Grécia e Roma. Façamos uma visita a Mafra, ao convento mandado erigir por D. João V, de 1717 – as colunas usam o acanto com volutas e até no mecanismo do carrilhão está reproduzida a folha de acanto, como também o está no papel de parede dos aposentos reais. Outra visita pode ser realizada a Paris, a fim de examinar as 52 colunas da Église de la Madeleine.

E como vão reagir os Românticos no século XIX?

Alexandre Herculano confessa em O Monge de Cister, II, p. 253 que «[...o portal da Sé de Lisboa] tem podido escapar ao dente voraz dos séculos, ao boião canonical e aos acantos, repolhos e caramujos da arte.»

Mas basta olhar para o azulejo representando o claustro do Convento de S. Francisco, na estação ferroviária de Santarém, ou para o do retrato da Joaninha dos olhos Verdes, numa fonte da Ribeira santarena ou ainda para o do portal de um edifício da Golegã, onde esteve aquartelado o exército de Napoleão Bonaparte, para nos apercebermos facilmente de que o século XIX, tanto como o século XX, é caracterizado por um ecletismo de motivos (góticos + clássicos ou clássicos + românticos + barrocos).

Durante o século passado, o acanto vulgarizou-se na cerâmica – em paredes e beirais de telhados, em fontanários, em placas toponímicas, em decorações nas fachadas de casas,   diversificando-se na sua estilização, ora mais complexa, ora mais simples.

Também se utilizou em peças de ourivesaria, em mobiliário e nos têxteis (em lindos   bordados, saídos das mãos das nossas avós, feitos em linho!).

Que perspectivas são, então, as actuais, no dealbar do século XXI?

Fala-se de neobarroco em Salamanca, citando Jan Favre.

Características anunciadas:

- imagens de forte cunho visual
-
horror vacui’
-
supradecoração
-
grotesco
-
complexidade formal
-
hiperteatralização.

 

No mundo da moda do ano corrente, é o acanto que impera de novo – em guarnições bordadas nas saias e blusas, nos coloridos estampados com flores e folhas decalcadas e mesmo em tecidos para revestir sofás-camas!

Em suma, a cultura do BELO, iniciada na Grécia, reproduzindo ou reinventando a NATUREZA, torna-se universal, necessária e de aplicações múltiplas.

Ouçamos, pela aluna do 12º J, Mariana Estêvão, o poema de Sophia de Mello Breyner Andresen,  Ressurgiremos.

É um apelo à JUSTIÇA, à VERDADE, ao que é ETERNO.

Deixo-vos ainda com Sofia, quando nos esclarece acerca das motivações da sua poesia:

«Não trago Deus em mim mas no mundo o procuro, / Sabendo que o real o mostrará»  (in Geografia).

Para tanto sugere:

«É preciso estar atento e exercitar os cinco sentidos», porque lembra «Cada dia te é dado uma só vez... / Mais tarde será tarde e já é tarde» (in Homenagem a Ricardo Reis).

E enquanto ressoam os maravilhosos acordes da Marcha Turca de Mozart, aproveitamos para fazer os agradecimentos ao Conselho Executivo, ao clube do Museu, na pessoa da Dr.ª Maria Luísa Fonseca que mais uma vez me convidou a participar nos seus projectos, ao Dr. Henrique de Oliveira, meu ex-Orientador de Estágio e que me continua a orientar e a ajudar agora nos meandros da Tecnologia e Informática, às minhas filhas, Helena Sofia e Fátima Manuela, pelo apoio e entusiasmo contagiante, ao Artista José António Moreira, Autor do Cartaz, aos meus ex-alunos, Mariana e Filipe, pela disponibilidade e colaboração, aos Drs. Teresa Castro e Albano Rojão por, na oportunidade, me haverem familiarizado com as pesquisas na Biblioteca Nova, às funcionárias D. Glória e D. Marilda pelo bonito arranjo floral de acantos que adorna a sala e a vós todos, colegas e discentes, que tiveram a enorme paciência de me escutar.

Maria de Fátima Bóia


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