BOLETIM CULTURAL E RECREATIVO - SECUNDÁRIA JOSÉ ESTÊVÃO - AVEIRO


Os cais da Cidade

 

Canal das Pirâmides vendo-se, à direita, a ponte de S. João, em tempos chamada de S. Gonçalo, e, do lado esquerdo, a velha estrada para as praias e casas actualmente inexistentes. Fotografia de Américo Carvalhinho.

 

Muito se falou e escreveu, há não muitos anos, sobre o estado calamitoso a que chegaram os cais da cidade, em consequência de dragagens efectuadas.

Era uma dor de alma ver aquele espectáculo degradante ali mesmo no nosso Canal Central, que deveria ser, sempre, o cartão de visita de Aveiro. Durante anos, manteve-se essa nódoa na cidade, nada abonatória dos brios de que sempre a nossa terra se arrogou. Felizmente que a situação se remediou; melhor: se tem vindo a remediar. Mas ainda andam obras pelo Canal das Pirâmides; e o Cais do Alboi, desde que ruiu a sua margem sul, continua a apresentar-se com um aspecto digno de país do terceiro mundo.

Sabemos que são trabalhos morosos, muito sensíveis e muito dispendiosos. E, mais do que tudo isso, de manutenção recorrente. Um dia destes virei de novo a terreiro, com umas fotografias que há dias colhi ali mesmo em frente ao edifício da ex-Capitania, bem reveladoras da já evidente necessidade de novas dragagens, não só aí mas também ao longo de todo o canal do Cojo, ou da Fonte Nova como agora se lhe chama, e, principalmente, no espelho de água onde o Hotel Meliá se deveria sempre remirar, ali para os lados do Centro de Congressos.  

O que passo a narrar refere-se ao tema. Só que com um salto no tempo. Um salto de centúria.

Com efeito, perfizeram-se 100 anos sobre a data em que Adolfo Loureiro, Inspector-Geral das Obras Públicas do Reino, deu à estampa, em edição da Imprensa Nacional, uma curiosíssima separata de "Os Portos Marítimos de Portugal e Ilhas Adjacentes", referente ao nosso porto de Aveiro.

De páginas 71 a 74 da referida separata, fala-nos o senhor inspector das vicissitudes da reconstrução dos cais da nossa cidade. E começa assim:

«A cidade de Aveiro tem acesso do mar por um belo canal, limitado lateralmente por muros de alvenaria argamassados, com guardas de cantaria. Neste canal desembocam outros esteiros e valas, que passam sob pontes de alvenaria, que mantêm ininterrompida a comunicação marginal dos dois lados do canal, comunicação que é feita por uma bela estrada macadamizada.

Não pode fixar-se ao certo a data da construção das primeiras muralhas, nem qual foi o seu custo. Consta somente que, por provisão de D. Pedro II, em 1680, fora a Câmara autorizada a lançar um imposto por três anos, de um real em cada quartilho de vinho vendido, para ocorrer às despesas da restauração do cais, que já então se achava muito arruinado.

D. Maria I encarregou da obra, que principiou em 31 de Agosto de 1780, o desembargador António Gravito Simões da Veiga. Parece que não se ultimaram então aqueles trabalhos, ou que pouco duraram, se acaso se fizeram, porque, por provisão de 24 de Maio de 1810, se tomaram novas providências, lendo-se naquele diploma régio o seguinte:

"Querendo promover a reparação da importante obra do cais da cidade de Aveiro, que se acha ameaçando ruína, e cuja reparação exigiria maiores despesas... "

Por aviso de 3 de Setembro de aquele ano foi ordenado a Luís Gomes de Carvalho se encarregasse daquela reparação, em consequência de uma representação dirigida ao príncipe regente e relativa à ruína em que se achava o cais da cidade, "assim em razão do extraordinário temporal que houve em Maio daquele ano, como pela falta de solidez do mesmo cais".

Por uns avisos de 1811 e 1816 se mandou proceder à ampliação do cais antigo, sua reedificação e limpeza.

Esta muralha, em consequência da má construção que de há muito se lhe notara, sem argamassa, ou com péssima argamassa, já por diversas vezes havia carecido de reparos, mesmo posteriormente aos de 1810; mas, não obstante esses reparos, em 1857 havia chegado ao último estado, ameaçando a perda total de uma das mais belas obras de Aveiro, na extensão de 1.113 metros, que tanta era a do canal revestido de muros, que conduz à cidade.

Por isso, em 10 de Setembro desse ano de 1857, elaborou o engenheiro Júlio Augusto Leiria um projecto de reparação daquelas muralhas, aproveitando-se das fundações antigas para os novos muros de cais, fazendo os trabalhos às marés e estabelecendo os respectivos estaleiros e amassadores em barcas, ou saleiras, fundeadas no local da obra. O seu orçamento era de 7.248$00 reis.

 O Conselho de Obras Públicas, apoiando o projecto e reconhecendo a urgência da obra, aconselhava, contudo, o emprego, em lugar de pedra, que era ali muito cara, de tijolo feito com vasas ou lodos da ria.

Quando o Sr. engenheiro Silvério Augusto Pereira da Silva, tomando conta da direcção das obras públicas do distrito de Aveiro, deu parte para o governo do estado desta obra, em 22 de Janeiro de 1858, ponderou que a fabricação daqueles tijolos exigia a construção de fornos e de outros trabalhos caros e demorados, que não estariam em proporção do custo da obra propriamente dita, e disse que lhe parecia preferível o emprego de pedra com argamassa de cal, areia e "pozzolana" de S. Miguel, tanto mais que havia no Rocio de Aveiro pedra que poderia empregar-se nela, e que era muito melhor e ficaria muito mais barata do que o grês de Eirol, esperando ainda obter muito economicamente as madeiras para a construção de uma ensecadeira móvel, que serviria para toda a obra.

Em 22 de Julho de 1859 ponderou ainda aquele engenheiro que a tal verba de 7 000$00 reis era muito diminuta para reparar os muros, que dos dois lados do canal tinham a extensão de mais de 2 km, e que estavam completamente arruinados, acusando inflexões, desnivelamentos e a perda do primitivo jorramento, tudo em consequência da falta de espessura necessária, apresentando em alguns pontos depressões que revelavam a falta de fundação, e em outros profundas cavernas, ou cavidades, de onde se haviam destacado as pedras que compunham as alvenarias da parede."

E o relatório que vimos citando continuava:

"Sendo, portanto, mister fazer de novo quase todo o muro, adoptara para ele um outro tipo, com major espessura e com reforços de espaço a espaço, ou contrafortes de 6 em 6 metros para o interior, e com maior jorramento. E, tendo de refazer quase todas as fundações da muralha, fizera uso de uma ensecadeira volante, que punha completamente a enxuto a parte em que se trabalhava e em que empregava a pozzolana de S. Miguel.

Segundo o seu sistema, estavam construídos naquela época 136 m de cais, e gasta a quantia do 2.777$935 reis, incluindo materiais e ferramentas, calculando que para reparar a extensão que faltava seriam precisos ainda 16.000$00 reis. Foram atendidas as suas judiciosas considerações e, em 13 de Outubro de 1868, tendo continuado a obra da grande reparação do cais de Aveiro, que antes deveria chamar-se reconstrução, estavam construídos 1.517 metros de cais, faltando somente 476 metros, e tendo importado todo o trabalho feito em 34.560$030 reis.

Pelo preço médio da obra a sua conclusão viria a importar ainda em:

- 476 metros de cais a 2$720 reis — 10.843$280

- Pontes da Dobadoura e S. Gonçalinho — 3.000$000

- Imprevistos  — 156$720

- Total — 14.000$000

O respectivo inspector, o conselheiro Plácido de Abreu, informando este projecto, disse que o cais de Aveiro, entre as pirâmides e a ponte da cidade, media 2.063 metros, sendo de enxilharia 277 metros e de betão 1.344 metros; e que em 1868 estavam em construção 42 metros de muro e por construir 330 metros, com duas pontes tendo 70 metros de avenidas.

Cais da cidade no Canal Central com moliceiros, aspecto actualmente quase impossível de observar, se exceptuarmos algumas raras ocasiões em que estes barcos entram no coração da cidade, movidos pelos seus meios tradicionais. Fotografia de Américo Carvalhinho.

Os cais de betão, ultimamente empregados, eram feitos a seco, em uma ensecadeira de duplo taipal com terra calcada, mas sendo hidráulica a argamassa empregada, podia endurecer debaixo de água, não havendo por isso necessidade de fazê-la a seco, e devendo portanto suprimir-se um taipal, dragando-se dentro da ensecadeira até à profundidade necessária. Este era o seu parecer.

A média do custo da obra tinha sido de 22,775 reis por metro linear, ou 4$102 reis por metro cúbico de trabalho feito, cubando por metro corrente, a guarda 0,227 m3 de alvenaria, o muro 5,130m3 de betão, e o cordão e capeamento de cantaria 0,141m3.

Esta obra foi feita por sistema muito engenhoso e económico, foi terminada em 1872, apresentando um belo aspecto, e havendo-se comportado muito bem até 1888, em que principiou a carecer de alguns pequenos reparos, devido principalmente a haverem as varas ferradas dos barqueiros atacado em alguns pontos o rebouco e mesmo o betão, que se apresentava em geral muito rijo e consistente.

A obra, porém, conquanto, absolutamente falando, muito barata, subiu muito acima das primitivas previsões, elevando-se o seu custo para os 2.145 metros de cais a 55.939$725 reis, compreendendo, porém, as pontes da Dobadoura, de S. Gonçalinho e da Praça. "

Nenhuma destas pontes, então construídas, existe hoje.

A da Dobadoura foi substituída pela que hoje aí está, feita pelo engenheiro Zagalo, no consulado do Dr. Artur Alves Moreira.

A que então se chamava de ponte de São Gonçalo, veio a ser alargada quando era director do porto de Aveiro, o engenheiro Barrosa, já sendo conhecida como ponte de São João, por certo para honrar a memória da capela do mesmo nome que existia no Rossio e que entretanto foi destruída.

A da Praça, possivelmente uma das duas pontes que desapareceram no centro da cidade para dar lugar à actual ponte-praça.

O tempo voa; e já lá vai a circunstância em que era possível estimar o custo de duas pontes - a da Dobadoura e a de São Gonçalo - numa importância de 3.000$000 reis.

Hoje a realidade é outra.

GASPAR ALBINO


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