Apresentação
Os peixes do guardião
A cobra e o cordão do frade
O caldo de pedra
A enfiada de petas
Dar vista aos cegos
Manuel Feijão
Se a memória não nos atraiçoa, a partir do
segundo número deste boletim cultural foi dado início a uma colecção de
contos tradicionais portugueses. Ao todo, onze textos, constituindo uma
pequena amostra do valioso espólio etnográfico coligido, em tempos, por
Teófilo Braga.
A colecção
completa de tão importante recolha foi reeditada na década de 1980 por
uma editora nacional, constituindo os volumes 14 e 15 de uma
interessante colecção intitulada «Portugal de Perto».
Chegados ao número
doze deste boletim, mantemos uma «tradição» iniciada há cinco anos, mas
desviamo-nos ligeiramente dela, na medida em que, desta vez, vamos
aceitar uma sugestão feita, em tempos, por uma leitora de um país
lusófono, que apreciou os contos disponibilizados através da versão
electrónica do boletim e nos sugeria que, em cada exemplar, deveríamos
divulgar mais do que um conto, dado que os mesmos são geralmente de
tamanho reduzido e rápida leitura.
Embora
consideremos que em cada boletim não deva ser publicado mais do que um
conto, porque este deverá ser formado por um conjunto de textos da mais
diversa índole, vamos, excepcionalmente, aceitar a sugestão e ir,
inclusive, um pouco mais longe. Em vez de duas, vamos fornecer uma
pequena antologia de seis pequenas histórias tradicionais, formando dois
grupos distintos. Os três primeiros contos caracterizam-se pelo seu
diminuto tamanho e por terem o mesmo elemento comum: um frade que se
destaca pela esperteza, conseguindo levar a água ao moinho, mesmo quando
o ambiente lhe é mais adverso. Além disto, mostram-nos que, num reduzido
número de linhas, é possível apresentar uma história completa, que não
deixa de ser uma pequena pérola da tradição popular não apenas
portuguesa, mas de raiz europeia.
Os restantes
textos são três pequenas histórias muito conhecidas. São daquelas que
ouvíamos contar nos tempos de miúdo, numa altura em que, na infância,
ainda não existiam as maravilhas electrónicas de agora. Eram outros
tempos. Tempos mais calmos, mais abertos às narrativas maravilhosas de
feição popular, longe da violência frenética com que hoje os novos meios
de comunicação bombardeiam constantemente a juventude, contribuindo para a violência
banalizada a granel.
E por falar em
tempos, é tempo de vos deixar na companhia dos seis textos
seleccionados
de entre as largas dezenas que Teófilo Braga nos legou.
(HJCO)
OS PEIXES DO
GUARDIÃO
De uma vez estavam
os frades comendo no refeitório, e coube a um deles um peixe mui
pequenino; este então reparou e viu que no prato do guardião estava um
muito grande, e que o comia à boca cheia. O frade era ladino, e para se
vingar do jejum a que o obrigavam, abaixou a cabeça sobre o seu peixinho
que tinha no prato, e começou a momear, como quem estava a conversar em
segredo. O guardião reparou nisto, e pergunta de lá da cabeceira da
mesa:
— Ó irmão, Frei
Fulano, então o que é isso que está fazendo?
— Reverendo
Padre-Mestre, estava perguntando a este peixinho se ele alguma vez teria
encontrado meu pai que morreu afogado no mar; mas ele respondeu-me que,
como é mui pequenino, não soube disso, e que quem o poderá saber é o
peixe que está no prato de Vossa Reverência, que é muito grande, e pode
bem dar fé de tudo. (Ilha de S. Miguel)
A COBRA E O CORDÃO
DO FRADE
Uns frades comeram
desalmadamente; um deles precisou alargar o cordão que trazia à cinta,
mas não queria dar parte de fraco. Lembrou-se de uma estrangeirinha, e
disse:
— De uma vez
andava ao peditório, e passei por um campo, onde vi deitada ao sol uma
cobra. E que cobra! Era assim (e nisto começa a tirar o cordão) pouco
mais ou menos deste tamanho (e estendeu o cordão).
Depois tornou a
atar o cordão mais largo e continuou a comer, sem que os outros dessem
pela esperteza. (Porto)
O CALDO DE PEDRA
Um frade andava ao
peditório; chegou à porta de um lavrador, mas não lhe quiseram dar nada.
O frade estava a cair com fome, e disse:
— Vou ver se faço
um caldinho de pedra. E pegou numa pedra do chão, sacudiu-lhe a terra e
pôs-se a olhar para ela para ver se era boa para fazer um caldo. A gente
da casa pôs-se a rir do frade, e daquela lembrança. Diz o frade:
— Então nunca
comeram caldo de pedra? Só lhes digo que é uma coisa muito boa.
Responderam-lhe:
— Sempre queremos
ver isso.
Foi o que o frade
quis ouvir. Depois de ter lavado a pedra, disse:
— Se me
emprestassem um pucarinho?
Deram-lhe uma
panela de barro. Ele encheu-a de água e deitou-lhe a pedra dentro.
— Agora se me
deixassem estar a panelinha aí ao pé das brasas. Deixaram. Assim que a
panela começou a chiar, disse ele:
— Com um bocadinho
de unto é que o caldo ficava de primor.
Foram-lhe buscar
um pedaço de unto. Ferveu, ferveu, e a gente da casa pasmada para o que
via. Diz o frade, provando o caldo:
— Está um
bocadinho insonso; bem precisa de uma pedrinha de sal.
Também lhe deram o
sal. Temperou, provou, e disse:
— Agora é que com
uns olhinhos de couve ficava... que os anjos o comeriam.
A dona da casa foi
à horta e trouxe-lhe duas couves. O frade limpou-as, e ripou-as com os
dedos deitando as folhas na panela.
Quando os olhos já
estavam aferventados, disse o frade:
— Ai, um naquinho
de chouriço é que lhe dava uma graça...
Trouxeram-lhe um
pedaço de chouriço; ele botou-o à panela, e enquanto se cozia, tirou do
alforge pão, e arranjou-se para comer com vagar. O caldo cheirava que
era um regalo. Comeu e lambeu o beiço; depois de despejada a panela
ficou a pedra no fundo; a gente da casa, que estava com os olhos nele,
perguntou-lhe:
— Ó Senhor Frade,
então a pedra?
Respondeu o frade:
— A pedra, lavo-a
e levo-a comigo para outra vez. E assim comeu onde não lhe queriam dar
nada. (Porto)
A ENFIADA DE PETAS
Era uma vez um
homem, que não pôde pagar a renda ao fidalgo de quem era caseiro, e
foi-lhe pedir perdoança; o fidalgo pensou que o que ele estava era a
mentir, e disse-lhe:
— Só te perdoo as
medidas da renda se me disseres uma mentira do tamanho de hoje e amanhã.
Foi-se o lavrador
para casa e contou a coisa à mulher, sem saberem como se haviam de
arranjar com o senhorio, que os podia pôr no olho da rua. Um filho tolo,
que tinha, disse:
— Ó meu pai,
deixe-me ir ter com o fidalgo, que eu hei-de arranjar a coisa de modo
que ele não tenha remédio senão dar a perdoança das medidas.
— Mas tu não atas
coisa com coisa.
— Por isso mesmo.
Foi o tolo e pediu
para falar ao fidalgo, dizendo que vinha ali pagar a renda. O fidalgo
mandou-o entrar; ele então disse:
— Saberá Vossa
Senhoria, que a anesa foi má, mas isso não faz ao caso; meu pai tinha
tantos cortiços de abelhas que não lhe dava conta; pôs-se a contar as
abelhas e acertou de lhe faltar uma; botou o machado às costas e foi
procurar a abelha; achou-a pousada na carucha de uma amieira; vai ele
cortou a amieira para caçar a abelha, que por sinal vinha tão
carregadinha de mel, que ele crestou-a, e não tendo em que guardar o mel
meteu a mão no seio e tirou dois piolhos e fez da pele dois odres que
encheu, mas quando vinha a entrar em casa, uma galinha comeu-lhe a
abelha; atirou à galinha com o machado para a matar, mas o machado
perdeu-se entre as penas; chegou o fogo às penas, e depois que elas
arderam é que achou o olho do machado; dali foi ao ferreiro para lho
arranjar, e o ferreiro fez-lhe um anzol, com que foi ao rio apanhar
peixes, e saiu-lhe uma albarda, tornou a deitar o anzol e apanhou um
burro morto há três dias que pestanejava; botou-se a cavalo nele e foi
ao ferrador para lhe dar uma mezinha, e ele deu-lhe o remédio de sumo de
fava seca, mas nisto caiu-lhe um bocado num ouvido, onde lhe nasceu
tamanho faval, que tem dado favas, que ainda aí trago quinze carros
delas para pagar a renda a Vossa Senhoria.
O fidalgo, já
enfadado, com tanta patranha, disse:
— Ó rapaz, tu
mentes com quantos dentes tens na boca.
— Pois, senhor,
está a nossa renda paga.
(Airão)
NOTA
- Há uma variante de Ourilhe, nos Contos Populares Portugueses, n.º LVII.
(Na Biblioteca de las Tradiciones populares españolas, vol. IV, p. 91.)
No Romanceiro do Arquipélago da Madeira p. 434 publicou Rodrigues de
Azevedo uma versão metrificada: Conto das Mentiras: Lindo conto de
mentiras / Eu agora vou contar; / Quem quiser que venha ouvir / Novos
casos de pasmar: / / Era eu homem para tudo, / Eu ia a todo o lugar; /
Eu fiz o que ninguém fez, / Vi o que não há sonhar. / Onde o mundo se
acaba, / Fui uma vez eu parar; / O que lá me aconteceu, / Ninguém pode
adivinhar: / Em terra, colhi sardinhas, / E rosas pesquei no mar; /
Encontrei um pessegueiro / Grandes maçãs a criar, / E, quando voltei os
olhos, / Tinha ameixas a vergar; / Assubi a riba d'ele, / Com marmelos
vou topar; / Chega o dono da terra / Por figos a perguntar; / Respondi
que eram pepinos / O que eu estava a apanhar; / Dando-lhe eu o
salve-Deus, / Ele salta a praguejar, / A querer pague em dinheiro / O
que eu não quero comprar; / Mas logo lhe dei o troco, / Antes do preço
pagar / Atirei-lhe com um assopro, / Uma pedra lhe foi dar; / Deu-lhe a
pedra na canela, / Mas quebrou o calcanhar; / Ele foi quem apanhou / Eu
quem rompeu a gritar: / A justiça d'el-rei veio / Começou a devassar; /
É agora lo mentir, / Testemunhas vão jurar: / Juraram que eu fui
roubado, / Que viram outrem furtar; / O queixoso ficou preso, / E eu
fiquei a folgar.
DAR VISTA AOS CEGOS
Um cego tinha uma
filha muito linda, que o acompanhava para toda a parte, julgando assim
defender a sua honra. A rapariga combinou com o namorado um estratagema:
em um caminho estava uma cerejeira, e ele devia esconder-se aí, e quando
passasse com o pai arranjaria as cousas de modo a poderem abraçar-se.
As cousas
dispuseram-se a seu talante.
Ao passar perto da
cerejeira, diz a rapariga:
— Ó pai, está ali
uma cerejeira, tão carregadinha, que parece um andor. Deixe-me apanhar
algumas?
O cego concordou,
e depois que a filha subiu à cerejeira, ficou agarrado ao tronco, para,
segundo seu intento, guardar a honra da filha.
Os namorados não
perderam tempo; mas no seu enlevo, passavam dois peregrinos, que eram
Jesus Cristo e São Pedro, que andavam pelo mundo.
— Divino Mestre!
exclamou São Pedro, como é louvável um pai que guarda a honra da filha.
Por um ar do
divino Mestre o cego recuperou subitamente a vista; e espantado de ver a
filha entre a ramagem da cerejeira abraçada pelo namo rado, ela com toda
a frescura acudiu de pronto:
— Não se zangue
comigo pai: o que fiz foi para lhe dar vista.
São Pedro olhou
para o divino Mestre, que na sua infinita bondade, disse sorrindo:
Mulheres hão-de ser sempre mulheres. (Açores)
MANUEL FEIJÃO
Dois casados
viviam muito tristes por serem já velhos e não terem filhos.
Vai a mulher disse
uma vez:
— A coisa que eu
mais queria neste mundo era ter um filho, ainda que ele fosse do tamanho
de um feijão.
Passados tempos,
quando menos o esperavam, a velha teve um filho, tão pequerruchinho, tão
pequerruchinho, que era mesmo do tamanho de um feijão. Criou-se o
menino, e puseram-lhe o nome de Manuel Feijão; a mãe nunca tirava o
sentido dele, e ainda assim muitas vezes o perdia. De uma vez foi botar
umas gavelas ao boi, e entre elas tinha-se perdido Manuel Feijão e o boi
engoliu-o. A mãe muito apoquentada começou a gritar por toda a parte:
— Manuel Feijão!
Manuel Feijão!
Ele respondia
dentro da barriga do boi:
— Crós, crós!
— Manuel Feijão,
onde estás?
— Crós, crós! na
barriga do boi.
A mãe pôs-se a
aparar o que o boi fazia, e assim tornou a achar Manuel Feijão todo
sujinho; lavou-o muito bem lavado, mas o pequeno era muito traquina, não
tinha medo dos bois, e até os queria levar para o campo. Metia-se-lhes
numa venta, e assim os guiava para pastar e para voltar para casa, e até
para levar no carro o jantar ao pai. De uma vez teve necessidade, e
acocorou-se debaixo de uns feitos; ora andava por ali uma cabra a
pastar, e indo comer os olhinhos do feito, engoliu Manuel Feijão. A mãe
ficou desta vez mais aflita porque o pequeno não aparecia; a cabra com
as dores de barriga, corria por combros e valados, mas sempre vinha dar
à horta do pobre lavrador; mas por fim cansado de escorraçar a cabra, e
temendo que fosse coisa ruim, o pai de Manuel Feijão deu uma estourada
na cabra, e matou-a, e atirou com ela para o meio da estrada. Veio de
noite um lobo e comeu as tripas da cabra, e lá se foi Manuel Feijão aos
tombos dentro da barriga do lobo. Começou a dar-lhe voltas nas tripas e
o lobo com as dores subiu por um pinheiro acima. Nisto vêm uns ladrões
carregados com uns sacos de dinheiro, em cima de um macho; Manuel Feijão
faz com que o lobo se atire lá de cima, arrebentou no meio do chão, e os
ladrões fugiram espantados. Manuel Feijão assim que apanhou o lobo com
as tripas de fora, saiu lá de dentro, e subiu para o macho, meteu-se
dentro de uma orelha e começou a beliscá-lo. O macho botou a fugir, a
fugir, e ele guiou-o para casa do pai, e chegou à porta ainda de noite,
a fazer muito estrupido. Perguntaram de dentro:
— Quem é que está
aí?
— É Manuel Feijão.
Crós! Crós!
A mãe conheceu-o,
veio abrir à pressa; abraçou-o, lavou-o, e o pai foi descarregar o macho
e guardar os sacos de dinheiro, e foram todos muito felizes. (Porto e
Açores)
Nota — Foram omitidas as notas de Teófilo Braga, onde se referem as
versões estrangeiras desta mesma história.
Apresentação
Os peixes do guardião
A cobra e o cordão do frade
O caldo de pedra
A enfiada de petas
Dar vista aos cegos
Manuel Feijão
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